«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 29 de março de 2021

A tragédia brasileira

 Bolsonarismo é a mais perversa máquina de destruição de nossa história republicana

 João Cezar de Castro Rocha

Ensaísta e professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de “Guerra Cultural e Retórica do ódio (Crônicas de um Brasil Pós-político)” 

Professor comenta os elementos que compõem a visão de mundo bélica, expressa numa retórica de ódio, do presidente

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

[resumo] Apoio ao presidente em camadas expressivas da população, a despeito da atuação irresponsável ou mesmo criminosa de seu governo na pandemia, simboliza a vitória do bolsonarismo na guerra cultural, travada em redes sociais e canais alternativos de comunicação que propagam torrentes de notícias falsas, escreve professor. Esse êxito, contudo, acarreta o colapso da gestão pública e leva o Brasil a viver a maior tragédia de sua história. 

Você não sabe o que é caminhar com a cabeça na mira de um HK

Jocenir e Mano brown 

O paradoxo bolsonarista 

O fenômeno bolsonarista é condicionado por um paradoxo que tanto assegurou seu êxito eleitoral em 2018 quanto anuncia agora o colapso da gestão pública; ruína tornada tragédia na gestão negacionista da crise sanitária. 

Eis o paradoxo: o êxito, incontestável, do bolsonarismo implica o fracasso, incontornável, do governo Bolsonaro. Quanto mais impactante for o triunfo da guerra cultural, tanto mais desastrosa será a administração da coisa pública.

O acerto da hipótese infelizmente se confirma na imagem de um Brasil exausto por tantas vidas perdidas, vidas que poderiam ter sido salvas se a vacinação em massa não tivesse sido sabotada pelo governo federal, que só voltou atrás em um cenário propriamente apocalíptico. No dia 23 de março, ultrapassamos a infame marca de mais de 3.000 mortes de brasileiros em apenas um dia. 

(Cada crime uma sentença?) 

Um livro que vale a pena ler!

O paradoxo e sua potência 

No momento em que se publicar este texto, teremos superado o trágico número de 300 mil mortes provocadas pela peste da Covid-19. Ao mesmo tempo, surgem novas cepas do vírus, ao que tudo indica de contágio mais célere e de letalidade mais grave. De igual modo, o sistema hospitalar, público e privado, entra em colapso em todo o país. 

(O ser humano é descartável no Brasil?) 

No entanto, como se a situação estivesse sob controle, o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciado no dia 15 de março, somente foi empossado no dia 23, em uma cerimônia discreta que não constava da agenda oficial, como se o ato em si mesmo tivesse algo de vergonhoso. 

Ou seja, por uma longuíssima semana, durante o período mais dramático da crise, o ministro demissionário, o general Eduardo Pazuello, converteu-se em uma incômoda sombra assustada, ao passo que o novo titular da pasta buscava desvencilhar-se de empenhos comerciais. 

(Ninguém trabalha no Gabinete de Segurança Institucional? Não se investigou esse “pequeno” contratempo no Gabinete da Surpresa Infinita?) 

Ainda assim: apesar dos tropeços não somente irresponsáveis como também criminosos no enfrentamento da pandemia, há uma faixa da população que insiste em apoiar cegamente o governo.

E a turma é eclética: senhores encanecidos fantasiados de soldadinhos de chumbo, senhoras decididas envelopadas em surradas bandeiras, guerrilheiros destemidos do éter, valentões tímidos das redes sociais e, não se esqueça, exóticos empresários tagarelas e elegantes banqueiros muito apaziguados pelo tanto que sempre lucram em qualquer circunstância. Vale dizer, enquanto as UTIs do Copa Star, do Einstein e do Sírio-Libanês estiverem devidamente reservadas. 

Como entender esse apoio, que implica a incomum capacidade de deixar de ver a pilha de corpos que se avoluma dia a dia? 

A resposta obriga a um reconhecimento inquietante: na guerra cultural da pandemia, se a expressão for aceitável, Bolsonaro está vencendo. Triunfo, bem entendido, fabricado no circuito comunicativo paralelo do bolsonarismo. 

Máquina incansável de fatos alternativos, moto-contínuo de notícias falsas, usina permanente de vídeos de impacto: parafernália disseminada em correntes multitudinárias de WhatsApp, em canais de YouTube e por meio de aplicativos como, por exemplo, Mano, que reúne uma constelação de estações de TV e de rádio, todas gratuitas. 

Ao escolher qualquer programa, o usuário é literalmente assediado por caixas de diálogo, cujo conteúdo é invariavelmente favorável aos delírios bolsonaristas. 

No dia 10 de março, assisti à TV Clima de Ribeirão Preto e fui recebido com uma mensagem ameaçadora: “Para mim é: Jesus no céu e Bolsonaro na Terra. Tamu junto”. No dia 22 de março, me arrisquei na Rede Tiradentes de Manaus. Um usuário, depois de enviar incontáveis mensagens, disse a que veio: “Os governos estaduais, municipais e muitos empresários ligados a eles têm muito a explicar à Justiça, à população e, principalmente, a Deus”. 

Em grupos de WhatsApp, um vídeo-tsunami mostra um homem de bem celebrando sua “ressurreição” graças à milagrosa nebulização feita com um comprimido diluído de hidroxicloroquina. Em vista disso, precisamos de hipóteses novas para dar conta da complexidade da midiosfera bolsonarista. 

Vamos lá: diante da evidência do fracasso do governo, a guerra cultural radicalizou seus processos. Não mais se trata de esposar teorias conspiratórias ou de papaguear narrativas polarizadoras em busca do novo inimigo de plantão. Não é mais suficiente limitar a pulsão bélica a períodos eleitorais.

Pelo contrário, a guerra cultural se converte em um princípio existencial.

Não basta o blablablá do STF-impediu-o-presidente-de-agir, do tratamento-precoce, da cloroquina-sim-vacina-não, do Bolsonaro-pai-da-vacina. 

Agora, o caos cognitivo deve ser traduzido em uma forma de vida:

1) ostentar a cloroquina como se fosse uma hóstia profana;

2) não usar máscaras, de preferência em manifestações a favor da intervenção militar, com Bolsonaro no poder, por óbvio;

3) tomar overdoses de ivermectina como se não houvesse amanhã, tampouco sistema hepático;

4) apressar os passos em um arremedo cômico de marcha militar;

5) deixar de ler a “extrema imprensa” e somente se informar com a “mídia independente”;

6) nunca assistir à “Globolixo” em detrimento dos canais confiáveis da rede de youtubers bolsonaristas;

7) confirmar os delírios conspiratórios no eco que encontram em “jornalistas” e “subcelebridades” em programas da mídia tradicional. 

(Ratatatá, caviar e champanhe) 

A guerra cultural passa a ser a própria realidade para os seus militantes. A palavra torna-se a coisa: o desastre se avizinha.

O bolsonarismo e sua tragédia 

Corolário da hipótese: o governo Bolsonaro pretende desidratar o financiamento do Censo do IBGE em uma proporção selvagem, sem paralelo em qualquer sistema político contemporâneo: nada menos que 90% dos recursos destinados à coleta sistemática de referências sobre o país poderão ser cortados.

Metáfora acabada da guerra cultural bolsonarista, que, em sua monomania narrativa, dispensa dados objetivos — afinal, sempre há um inimigo à espreita, não é mesmo? Contudo, como desenvolver um planejamento mínimo da gestão pública sem dispor de informação confiável? 

Qual o resultado palpável dessa desconsideração do mais elementar princípio de realidade que guiou todos os pronunciamentos irresponsáveis e negacionistas do presidente? 

A ironia bate à porta: recordemos alguns poucos fatos para demonstrar, sem perder tempo com disputa de narrativas, que o bolsonarismo é incompatível com governança — e nem sequer penso no luxo de uma “boa governança”, dada a onipresença paranoica da guerra cultural. 

No dia 18 de janeiro, o general Pazuello e sua equipe de especialistas conseguiram a proeza de falhar na entrega de vacinas para 19 estados — muitos governadores e autoridades esperaram por horas em aeroportos porque o Ministério da Saúde não foi capaz de organizar uma planilha de horários de voos! O mestre da logística confundiu-se no preenchimento de um singelo documento em Excel? 

Em fevereiro, depois do inaceitável colapso do sistema hospitalar em Manaus, o Ministério da Saúde superou seu generoso histórico de equívocos tontos: 76 mil doses da vacina AstraZeneca/Oxford destinadas ao Amazonas foram enviadas para o Amapá, que deveria ter recebido apenas 2.000 doses. Uma operação de emergência foi necessária para desfazer a troca. 

O ex-ministro general apresentou com voz firme e olhar perdido nada menos que quatro planos nacionais de vacinação, com datas propriamente heraclitianas e números infelizmente fictícios. Preciso acrescentar que plano algum foi implementado? 

Passemos do levemente pitoresco ao erro mais obviamente criminoso? Nos dias 14 e 15 de janeiro, um cenário de terror se abateu sobre Manaus: o oxigênio acabou nos hospitais da cidade, levando muitas pessoas à morte por asfixia. Cenas chocantes e comoventes de familiares passando dias inteiros para levar para casa balões de oxigênio no esforço de salvar seus parentes dominaram os noticiários. 

(Mário de Andrade: Esse homem é brasileiro que nem eu...) 

E tudo sempre pode ficar pior no Brasil bolsonarista: 61 bebês prematuros estavam no meio desse caos. O Ministério da Saúde sabia da iminência da falta de oxigênio desde o dia 8 de janeiro. No dia 14, em Manaus, no momento mesmo do desespero, o general Pazuello lançou o aplicativo-guerra-cultural TrateCOV, programado para receitar o kit-guerra-cultural tratamento precoce. 

Pasmem!!! Publicação do próprio Ministério da Saúde de Pazuello

Há mais: em agosto de 2020, o governo cancelou a compra de parte do chamado kit intubação, incluindo sedativos e relaxantes musculares, sem os quais a intubação exige que o paciente seja amarrado à cama, a fim de suportar a dor intensa provocada pelo procedimento particularmente invasivo. A simples ideia produz horror: nessas condições, intubar alguém é uma autêntica sessão de tortura... 

A ação do presidente é inqualificável:

1) sabotou a Coronavac e, sem a vacina do Instituto Butantan, quase não teríamos pessoas imunizadas no país;

2) em agosto de 2020, recusou a oferta de 70 milhões de doses da vacina Pfizer;

3) provocou metodicamente aglomerações todo o tempo;

4) recusou-se a usar máscara;

5) mentiu sobre a determinação do STF acerca da competência de seu governo no combate à pandemia;

6) antagonizou prefeitos e governadores no afã de inventar inimigos em série. 

Bolsonaro pode imaginar que, na guerra cultural, esteja triunfando. Por isso mesmo, o Brasil vive a pior tragédia de sua história. O bolsonarismo, vale repisar, é incompatível com qualquer princípio básico de governança. 

O cão de três cabeças, guardião do Hades (inferno), denominado Cérbero - Mitologia Grega

Coda 

Numa mímica demoníaca, em sua live em 18 de março, Bolsonaro reproduz o desespero dos que sentem o oxigênio faltar e, emitindo um som gutural, arfa três vezes. Três vezes arfa e na última parece que ladra. Autorretrato involuntário, coincidem o guardador e a coisa guardada. No mesmo CPF, dupla identidade: Cérbero e o Hades. 

(Sorri no inferno) 

Fonte: Folha de S. Paulo – Ilustríssima – Domingo, 28 de março de 2021 – Págs. C6-C7 – Internet: clique aqui  (acesso em: 29/03/2021).

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