E Deus...
Onde está Deus nesta Pandemia?
João Fernandes Splinter
Prefiro crer num Deus que não pode tudo magicamente, mas está conosco sempre, especialmente na mais cruel dor, que crer num Deus que pode tudo e deixa seus filhos e filhas sofrendo
Versões que surgem sobre Deus e Pandemia
Para conciliar a existência do mal e a onipotência de Deus
surgem as desculpas mais problemáticas e cruéis:
1) A pior é a que diz que “Deus mandou o
mal para punir” (a pandemia é resultado da “blasfêmia” do carnaval);
2) outra versão é a que diz que isso faz parte da pedagogia divina, “Deus manda o mal para daí tirar um bem”, ou então, “Deus não manda um problema que você não possa resolver”.
3) A versão “menos ruim” é a clássica de Santo Agostinho que,
inclusive, é recolhida pelo Catecismo da Igreja Católica no parágrafo 311: “Deus
não é de modo algum, nem direta nem indiretamente, a causa do mal moral.
Todavia, permite-o, respeitando a liberdade de sua criatura e, misteriosamente,
sabe auferir dele o bem”, ou seja, Deus não cria o mal, mas o permite e
dele tira algum bem.
4) Muito mais lúcida, nesse sentido, foi a resposta do Papa Francisco
em sua viagem às Filipinas: “quando nos fizerem a pergunta ‘porque sofrem as
crianças, porque acontece isto ou aquilo de trágico na vida’, que a nossa resposta seja o silêncio ou a palavra que nasce das
lágrimas” (PAPA FRANCISCO, 2015).
Mais que arriscar uma resposta estúpida ou que transpareça uma imagem deturpada de um Deus cruel cuja pedagogia é mais demoníaca que divina, o papa prefere assumir a ignorância diante da razão do sofrimento e pede unicamente a compaixão diante de quem sofre. Assumir a dor do outro chorando.
O Deus revelado pelas
Sagradas Escrituras
Porém, uma questão mais profunda pode ser colocada. A
partir da Escritura, qual visão se tinha de Deus e de seu poder? Afirmamos
que Jesus é a plena revelação de Deus; esse é o princípio fundamental do
cristianismo. Mas que Deus, então, Jesus revelou?
Na verdade, apesar da crença explícita num Deus pessoal,
muitas vezes, a imagem implícita de deus que foi assumida pela tradição, em
diálogo com a filosofia grega, é de um deus mais conforme o pensamento grego
antigo que o Deus da bíblia revelado plenamente em Jesus. Às vezes, nosso
deus parece mais o Motor-imóvel de Aristóteles, que só pode pensar o que é
perfeito, portanto só pensa a si mesmo e nem sabe da existência do mundo, é
pensamento de pensamento. Isso porque imaginamos um deus separado do mundo,
a-histórico, que transcende a história; um deus apático, que é tão absoluto que
não pode sofrer, porque sofrimento seria fraqueza, seria falta, e nada falta
num ser perfeito. Deus é tão poderoso, pode tudo, de modo que poderia destruir
o mundo com estalar de dedos (se os tivesse) e refazer de novo. Porque então
esse Deus não acaba com o sofrimento?
Quando mergulhamos no estudo da Escritura, percebemos a
necessidade de nos convertermos dessa visão de Deus.ABRAHAM HESCHEL (1907-1972): nascido na Polônia, radicou-se nos Estados Unidos, onde foi professor no Seminário Teológico Judaico da América
O grande rabino judeu Abraham Joshua Heschel nos recorda que...
“o Deus dos filósofos é como o
ananke* grego, desconhecido e
indiferente ao homem; Ele pensa, mas não fala; está consciente de Si mesmo, mas
abstraído do mundo, enquanto o Deus de Israel é um Deus que ama, um
Deus conhecido pelo homem e preocupado com ele… Deus não está fora do
alcance do sofrimento e da dor humana. Ele está pessoalmente envolvido e até
mesmo perturbado pela conduta e destino do homem” (HESCHEL, 1973, p.
119–120).
Que escândalo, Deus sofre! Sim, o Deus da Bíblia não é apático como a visão
filosófica grega antiga, que em certa medida absorvemos; Deus sofre quando o
povo sofre, Ele é afetado sim pela dor do povo. Isso tem sua expressão
máxima em Jesus Cristo que nos revelou um Deus
crucificado, expressão cujas implicações foram tão bem desenvolvidas por
Moltmann em sua obra de título homônimo [veja imagem abaixo]. Jesus nos revelou um Deus que viveu
a impotência, um...
... Deus que sofre e morre e ao fazer isso, assume a dor de todos
os sofredores e sofredoras da história.
Jon Sobrino observa a partir das formulações dogmático-cristológicas,
embebidas em boa medida pela filosofia grega, que...Publicado, no Brasil, em janeiro de 2011, pela Academia Cristã Editora
... “a dificuldade fundamental
consiste em que as formulações deem a impressão de que já se sabe de antemão
quem é Deus, que é ser homem. Mas o problema que a cristologia coloca é precisamente
o contrário. Sabe-se quem é Deus e que é ser homem a partir de Cristo e não
vice-versa. Deus não é qualquer divindade, mas em primeiro lugar o Pai
de Jesus; e ser homem não é possuir simplesmente uma essência animal
racional, mas ser como Jesus” (SOBRINO, 1983, p. 339).
Mais que afirmar que Jesus é Deus, é preciso afirmar Deus é Jesus.
Não podemos olhar pra Jesus com nossa compreensão de Deus e
dizer: Jesus é Deus. Pelo contrário, é olhando pra Jesus que
aprendemos como Deus é. E olhando pra Jesus, aprendemos que Deus é um Deus crucificado, que não pode acabar com o
sofrimento magicamente, mas sofre com os que sofrem. Ligado a isso está à
própria concepção de Messias como podemos ver de forma mais clara na própria
estrutura do Evangelho de Marcos. O
autor trata isso em sua obra dois momentos. Num primeiro, até a confissão de
Pedro em Cesareia, vem a pergunta quem é Jesus. “‘E vós, perguntou Ele, quem
dizeis que EU SOU?’ Pedro respondeu: ‘Tu és O Cristo’” (Mc 8,29). Aqui vem a
resposta certa. Jesus é o Cristo. Mas a segunda parte do Evangelho
é um desenvolvimento sobre que tipo de Cristo é Jesus, pois Pedro deu a
resposta certa, mas o sentido errado. Ele, 3 versículos depois, não aceitou que
Jesus fosse um Cristo sofredor, quando este anunciou sua morte: “Pedro,
chamando-o de lado, começou a recriminá-lo” (Mc 8,32). A verdadeira
revelação de quem é Jesus nesse Evangelho só vem no final, pela boca de um
pagão, quando viu Jesus morrer na cruz: “o centurião, que se achava bem
defronte d’Ele, vendo que havia expirado desse modo, disse: ‘Verdadeiramente
este homem era Filho de Deus!’” (Mc 15,39).
Só podemos saber quem é Jesus e, portanto, quem é Deus, a partir da
cruz.
Deus não pode resolver, magicamente, o sofrimento humano
Imaginemos uma mãe que tem poderes miraculosos de cura. Ela
tem dois filhos com uma doença terminal. Se ela tem o poder para curar, ela vai
deixar seus filhos morrerem? Ou pior, vai curar um e deixar o outro morrer?
Claro que não. “Ora, se vós que sois maus sabeis dar boas dádivas aos vossos
filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará coisas boas aos que lhe
pedem” (Mt 7,11).
Se Deus pudesse magicamente
resolver os problemas do mundo, sendo ele bom e misericordioso, Ele não
resolveria? Claro que sim.
Não basta apelar para os desígnios misteriosos de Deus etc.
Claro que nunca entenderemos plenamente o mistério de Deus, somos finitos
demais para isso. Mas algumas coisas podemos conhecer olhando pra Jesus. Se nós
que somos pais e mães pecadores, imperfeitos, curaríamos nossos filhos se
tivéssemos esse poder, quanto mais Deus que é Sumo Bem. Seria Deus impotente?
Em certo sentido sim. Seria Deus onipotente? Em certo sentido também
sim.
A onipotência de Deus está no amor, não num poder mágico.
O poder do seu amor vai até as últimas consequências
numa cruz, e é tão grande que vai além da morte e gera ressurreição.
Por isso, como diz Sobrino, “o que resta, acredito, é
viver com uma teodiceia não resolvida na teoria e uma prática que continua
abrindo caminho — junto com um Deus também caminhante — na história do
sofrimento” (SOBRINO, 2007, p. 191–192), pois...
... “se Deus estava
na cruz de Jesus, não é o Deus em quem costumamos pensar. Ou, em outras
palavras, ao seu poder na criação, no êxodo, na ressurreição, é preciso
acrescentar agora seu silêncio, sua inanição, sua impotência na cruz”
(SOBRINO, 2007, p. 194).
Isso mesmo sabendo que “relacionar Deus com sofrimento, impotência e vulnerabilidade provoca vertigem metafísica” (SOBRINO, 2007, p. 195).
Onde está Deus nessa pandemia?
Está nos doentes sem ar, entubados ou sofrendo fome e desemprego devido às
desigualdades agravadas; está nas médicas, enfermeiros, faxineiras, cuidadores
que servem aos sofredores. Está enfrentando o mal do seu jeito, como ensinou
Jesus, junto conosco pela práxis do amor. Essa reflexão encerra o problema?
De forma alguma, nem anda perto. Esse Deus é sem graça? Pra alguns sim.
Mas prefiro crer num Deus que não pode tudo magicamente, mas está
conosco sempre, especialmente na mais cruel dor,...
que crer num Deus que pode tudo e deixa seus filhos e filhas sofrendo apesar de ter o poder para livrá-los e não o faz, sabe-se lá porque razões.
Referências Bibliográficas
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição típica vaticana. São
Paulo: Edições Loyola, 2000.
HESCHEL, Abraham J. Los profetas II: Concepciones
históricas y teológicas. Buenos Aires: Paidos, 1973.
PAPA FRANCISCO. Viagem apostólica ao Sri Lanka e às
Filipinas, 2015. Disponível em: <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/january/documents/papa-francesco_20150118_srilanka-filippine-incontro-giovani.html>.
SOBRINO, Jon. Cristologia a partir da América Latina.
Petrópolis: Vozes, 1983.
SOBRINO, Jon. Onde está Deus? São Leopoldo: Sinodal, 2007.
Notas
* Ananke, a partir do substantivo grego ἀνάγκη ("força", "restrição", "necessidade"), na mitologia grega, era a deusa da inevitabilidade, mãe das Moiras e personificação do destino, necessidade inalterável.
Fonte: Construindo o Reino – Notícias – Internet: clique aqui (acesso em: 19/03/2021).
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