Por que o vírus está levando a melhor?
Entenda o motivo de nossa derrota diante dessa pandemia que nos assola há mais de um ano
Fernando Gabeira
Jornalista
O desprezo pelo conhecimento fez do Brasil campo fértil para a devastação, a ignorância está levando a melhor
Com todo o respeito aos médicos e demais trabalhadores da saúde que batalham na linha de frente, comunicadores que tentam transmitir a dimensão do drama sanitário e grupos que se dedicam diuturnamente à solidariedade, todos combateram o bom combate, mas o saldo nacional é um grande fracasso.
Como é possível que um
vírus triunfe sobre uma comunidade humana, neste momento de fácil comunicação e
avanço da ciência? O que torna o
Brasil tão vulnerável a um vírus mutante?
Uma
das razões é exatamente a nossa incapacidade de mudar com rapidez para enfrentar
a nova situação.
Nenhum
país teve um negacionista tão ativo na Presidência como o Brasil de Bolsonaro.
Ele imaginou que o vírus seria uma grande ameaça ao seu governo, o impacto econômico poderia derrubá-lo. Daí seu esforço em negá-lo. E não apenas quanto à gravidade da contaminação, mas, sobretudo, no tocante às medidas necessárias para combatê-lo, como isolamento social e suspensão de algumas atividades.
Quando o novo coronavírus
apareceu em Wuhan, na China, escrevi que ao chegar ao Brasil a única forma de
combatê-lo seria uma resposta nacional e solidária.
O comportamento de Bolsonaro mandou para o espaço a esperança de uma resposta nacional.
Graças ao STF, governadores e prefeitos tiveram reconhecido seu papel constitucional no combate ao vírus. Mas as constantes denúncias de corrupção enfraqueceram sua liderança em muitos Estados do País. No Rio, Witzel perdeu o cargo. A Polícia Federal fez incursões no Pará e no Amazonas. Respiradores foram comprados em lojas que vendem vinho. Em Santa Catarina o escândalo abalou o governo.
Esse
processo na cúpula fortaleceu o ceticismo na base. O comportamento
coletivo para atenuar os efeitos da pandemia não foi conseguido. Faltaram
estímulos. Poucas foram as iniciativas de oferecer lugar para a quarentena,
ou para levar água e facilitar a higiene. Poucas também para estabelecer
conexão e facilitar aulas para as crianças, diversão para os adultos.
O negacionismo de Bolsonaro desarmou grande parte das iniciativas que a ciência aconselha. Testes foram esquecidos num depósito em Guarulhos. Para que testar? Não houve intenso esforço tanto para sequenciar o vírus quanto no caso das vacinas. Então o Brasil ocupou um lugar único: o presidente se opunha a elas, seja por ignorância científica ou por ignorância política, bloqueando os melhores produtos ocidentais e ironizando os do Oriente vermelho.
A luta contra o coronavírus numa população como a do Brasil é difícil. O vírus é invisível. Mesmo na Europa, os problemas radioativos provocados pelo desastre de Chernobyl encontraram muito ceticismo precisamente porque não eram visíveis.
Mas a ignorância de Bolsonaro não influencia apenas os 30% que o apoiam.
Quando Bolsonaro, na sua campanha obscurantista contra a vacina, insinuou que ela poderia transformar pessoas em jacarés, não estava pregando no vazio. Ele conta com a superstição popular. E não está totalmente equivocado. A ideia de pessoas se transformarem em bichos é presente no Brasil. A mula sem cabeça, por exemplo, é um mito que percorreu a nossa infância. Diziam que era uma linda mulher que virou animal porque transou com um padre. E quem se dedicar a estudar a religião tupi verá que os caraíbas, espécie de sacerdotes, difundiam suas crenças contra a religião colonial, mas se diziam capazes de transformar gente em bicho.
O
Brasil perdeu a guerra contra o vírus porque ela dependia não só de disciplina,
mas de conhecimento. Não somos disciplinados como os vietnamitas,
por exemplo.
Mas, para além do individualismo, o desprezo pelo conhecimento fez do Brasil um campo fértil para a devastação. O governo subestimou remédios consagrados, como a vacinação em massa, e optou por falsas saídas, como a hidroxicloroquina.
Em todos os momentos o conhecimento foi espancado. Até mesmo na batida musical das festas clandestinas o Brasil celebrou a ignorância.
Pode ser que no balanço final
alguns desses termos se alterem. Mas vista de agora,...
...
nossa derrota para o vírus foi a derrota de nossas lacunas educacionais,
entendidas em sentido mais amplo, desde o estudo convencional, que nos faça
acreditar no invisível, até o flagelo do obscurantismo oficial, a corrupção
e uma incipiente cidadania que não acredita na ideia de um país.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço aberto / Opinião – Sexta-feira, 5 de março de 2021 – Pág. A2 – Internet: clique aqui (acesso em: 07/03/2021).
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