“Escolham os bispos entre aqueles que não são ambiciosos”

Andrea Tornielli
Vatican Insider
21-06-2013
O Papa Francisco posa para foto ao lado dos núncios apostólicos,
nesta sexta-feira (21/06), no Vaticano
(Foto: AP / L'Osservatore Romano)

Os núncios apostólicos, ao avaliarem os candidatos para o episcopado, devem indicar pastores que estejam próximos das pessoas, que “não sejam ambiciosos”, que não aspirem ao posto e que, uma vez nomeados, não procurem ser nomeados para uma sede mais importante. O pedido é do Papa Francisco aos seus representantes nas Igrejas e nos governos de todo o mundo, cerca de 150, que foram recebidos nesta sexta-feira pela manhã em uma audiência. Antes de se despedir de cada um dos presentes, Bergoglio fez um discurso que revela o “perfil” do bispo ideal. Palavras que, caso se converterem em atos, terão consequências, diante dos episódios de “carreirismo” eclesial que se verificaram nos últimos anos.

“Vocês conhecem a célebre expressão – disse o Papa aos núncios apostólicos – que indica um critério fundamental na escolha dos que devem governar: ‘si sanctus est oret pro nobis, si doctus est doceat nos, si prudens est regat nos’ (se é santo, que reze por nós; se é douto, que nos ensine; se é prudente, que nos governe). Na delicada tarefa de realizar a investigação para as nomeações episcopais – acrescentou –, devem estar muito atentos para que os candidatos sejam pastores próximos das pessoas, pais e irmãos, que sejam mansos, pacientes e misericordiosos”.

Além disso, explicou Francisco, os candidatos ao episcopado devem amar “a pobreza interior como liberdade no Senhor e também a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida” e não devem ter “uma psicologia de ‘Príncipes’”. “Estejam atentos – assinalou o Pontífice aos núncios – para que não sejam ambiciosos, que não persigam o episcopado e que sejam esposos de uma Igreja, sem buscar constantemente outra”. Uma alusão explícita às promoções perseguidas por todos aqueles que, mal nomeados para uma diocese pequena, aspiram a uma mais importante. O cardeal Joseph Ratzinger, na época em que era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, também já havia denunciado este fenômeno.

Os candidatos ao episcopado, disse Bergoglio, devem ser “capazes de ‘vigiar’ o rebanho que lhes será confiado, de cuidar de tudo o que o mantém unido; de ‘velar’ por ele, de ter atenção para os perigos que o ameaçam; mas, sobretudo, devem ser capazes de ‘velar’ pelo rebanho, de fazer vigília, cuidar da esperança, que haja luz e sol nos corações, sustentar com amor e paciência os planos que Deus opera em seu povo”.

O modelo do bispo, para Francisco, é São José, “que vela por Maria e Jesus, que cuida da família que Deus lhe encomendou e que tem o olhar atento para procurar evitar os perigos. Por este motivo os pastores sempre devem saber estar na frente do rebanho para indicar-lhe o caminho, no meio do rebanho para mantê-lo unido, atrás do rebanho para evitar que alguém fique para trás e para que o próprio rebanho adquira, por assim dizê-lo, o instinto para encontrar o caminho”.

Antes destes conselhos, relacionados com uma das tarefas mais delicadas e cruciais dos núncios apostólicos, encarregados de realizar averiguações sobre os candidatos ao episcopado para apresentar à Santa Sé as famosas “ternas”, o Papa havia sublinhado que a vida de seus representantes “é uma vida de nômades. A cada três ou quatro anos para os colaboradores; um pouco mais para os núncios, vocês mudam de posto”. Esta vida, explicou Francisco, “dá o sentido do caminho, que é central na vida de fé”, e exige “mortificação, o sacrifício de despojar-se de coisas, amigos, vínculos e começar sempre de novo”. Uma condição que implica “a familiaridade com Jesus Cristo” como “alimento cotidiano”.

De fato, acrescentou o Papa, sempre existe o perigo, “inclusive para os homens de Igreja”, de ceder à “mundanidade espiritual”, ao “espírito do mundo, que leva a agir em proveito da própria realização e não para a glória de Deus, a essa espécie de ‘burguesia do espírito e da vida’ que empurra a ‘inclinar-se’, a buscar uma vida cômoda e tranquila”. Ceder a este espírito “expõe, sobretudo a nós, os pastores, ao ridículo; poderemos receber, talvez, alguns aplausos, mas os mesmos que parecem nos aprovar depois nos criticarão pelas nossas costas”. Francisco convidou os núncios, tanto na relação com as Igrejas locais como na relação com as autoridades governamentais dos diferentes países, a “ser verdadeiros pastores”, que “têm o olhar fixo em Jesus”.

O Pontífice deu uma cruz de prata a cada um dos seus núncios apostólicos.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Sábado, 22 de junho de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521260-escolham-os-bispos-entre-aqueles-que-nao-sao-ambiciosos-pediu-francisco-aos-nuncios-apostolicos
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O QUE O PAPA FRANCISCO MUDOU EM CEM DIAS


Henri Tincq*
revista eletrônica francesa SLATE
20-06-2013
Henri Tincq - jornalista

Na sexta-feira, 21 de junho, completaram-se cem dias desde a eleição do papa Francisco e uma minirrevolução está sacudindo a Igreja católica – e o seu bilhão de fiéis. Tudo, no estilo, nos temas, nas reformas anunciadas, distingue Jorge Mario Bergoglio do seu predecessor Joseph Ratzinger, embora a relação entre os dois papas seja muito cortês. Entre outros aspectos, os dois homens se preparam para subscrever juntos uma encíclica sobre a fé cristã, iniciada por Bento XVI e levada a termo por Francisco, e será a primeira vez na história da Igreja que acontece algo semelhante

O Papa Francisco se libertou do arrocho da Cúria romana – o aparato de governo da Igreja – da qual Bento XVI era refém. Fez a escolha simbólica fundamental de não mais residir nos apartamentos privados no palácio pontifício, que considera sinistros, separados do mundo exterior, demasiado próximos à Cúria, e de refugiar-se em Santa Marta – no interior da Cidade do Vaticano – onde residem os visitantes religiosos e os cardeais durante o conclave.

Ali encontra, em toda simplicidade, o que quer, sem considerar o protocolo: 
  • levanta-se às 4h30, 
  • se dirige para as refeições na sala comum, 
  • trabalha, 
  • recebe, vai à cama cedo. 
  • Vai ao Palácio Pontifício somente para as audiências de alto nível (como as dos chefes de Estado). Assim a Cúria não pode aprisioná-lo, nem decidir para ele o programa dos seus encontros, nem filtrar as informações que lhe chegam. Toma a peito toda uma cultura vaticana, cuja força de inércia e cujo gosto do segredo são terríveis. Jovial, espontâneo, este papa latino-americano necessita de contatos humanos, enquanto seu predecessor governava de maneira solitária. 
  • Cada manhã, na capela de sua residência, recebe grupos de visitantes – entre os quais funcionários do Vaticano – para sua missa cotidiana, no decurso da qual prega como um simples pároco e distila suas mensagens, a propósito do demônio, da mundanidade e do matrimônio.
  • Quando vai à Praça de São Pedro, desce do papamóvel para beijar crianças e deficientes. 
  • Provoca risadas dizendo que a Igreja não é “uma baby-sitter”, mas “uma mãe”; ou convidando religiosas a não comportar-se como “donzelas”.
A montanha de gestos e palavras é surpreendente, mas já se pode entrever aonde vai este pontificado: para a defesa de um cristianismo social voltado à pureza das origens, autêntico nas suas convicções, empenhado pelos mais débeis e os excluídos (“Uma Igreja de pobres para os pobres“).
Papa Francisco saudando as pessoas na Praça São Pedro (Vaticano)
O papa jesuíta fustiga a “mundanidade” e a hipocrisia que reinam, segundo ele, em sua Igreja, ou a tendência católica a “ser auto-referencial”. Evoca a ameaça do demônio e do pecado, reclama por profundas reformas da economia mundial, aponta o dedo contra o narcisismo da sociedade, convida os fiéis a irem evangelizar as “periferias”: “Se a organização assume o predomínio, o amor diminui e a Igreja se torna uma ONG”.

Ainda não se pronunciou de maneira precisa sobre o aborto ou o matrimônio para todos, mas ninguém pensa que pretenda atenuar sobre estes pontos as proibições da Igreja. Trata-se, em definitivo, de um discurso de ruptura e de verdade que é facilmente escutado, a julgar pelo entusiasmo das “audiências” repletas e transbordantes na Praça São Pedro, mas que perturba profundamente a “máquina” vaticana. Esta última não controla mais as declarações verbais do Papa, já não sabe mais que estatuto conferir às suas palavras e às suas pregações cotidianas, à narração dos seus encontros espontâneos difundida pela mídia e interpretada até as últimas consequências. De que deriva uma impressão de cacofonia e de gafe na comunicação.

O que Francisco disse, ou não disse

O seu discurso aos bispos italianos torna-se um pôr-se em guarda contra o “carreirismo” e a “preguiça” – palavras fortes – que ameaçam todo funcionário eclesiástico. Uma ‘pancada’ sobre o “banco do Vaticano” (“O Instituto para as Obras de religião – IOR) é interpretada como ameaça de fechamento e um alto responsável da Cúria precisa recorrer à mídia para desmenti-la. A prestação de contas de um encontro privado entre o Papa e a CLAR (Conferência Latino-Americana e Caribenha das religiosas e dos religiosos) é publicada no site da internet chilena e faz a volta do mundo.

Eis o que teria dito o Papa e o que foi imediatamente desmentido: “Na Cúria há pessoas santas, mas também uma corrente de corrupção. É verdade que isso existe. Fala-se também de um lobby gay, e é verdade que também este existe”.

O estilo direto e aberto do Papa Francisco contribui para sua popularidade, mas se volta contra ele, de tanto que se multiplicam as indiscrições, referidas por testemunhas de seus encontros. Fizeram esta experiência também os quarenta parlamentares franceses que foram encontrá-lo sábado, dia 15 de junho, em Roma. O papa comentou seu trabalho de representantes eleitos: “Propor leis, emendá-las, abrogá-las”. O que imediatamente foi interpretado como nova forma de oposição da Igreja ao matrimônio para todos. “O papa pede a abrogação do matrimônio para todos” foi o título escolhido por alguns meios de comunicação. Quando não era exatamente aquela a sua mensagem, embora a palavra “abrogar” num discurso não fosse realmente dita por acaso.

Medo na Cúria

Já se percebem muitas hipóteses sobre a reforma da Cúria romana, que tinha sido solicitada pelos cardeais antes do último conclave em março e que já está em fase de aviamento. É neste terreno que muitos estão esperando as escolhas do Papa Francisco. Ele ainda não nomeou um novo secretário de Estado – a função continua sendo ocupada pelo temido cardeal Tarcisio Bertone, tida na máxima discrição – mas aplica ao governo central da Igreja inovações que os membros da Cúria encaram quase com terror. Há, por exemplo, um grupo constituído por oito cardeais, representantes da diversidade dos continentes, encarregados de aconselhar e apoiar o Papa e de lançar as bases de um novo modo de governar.

Este grupo ainda não tem nome, mas já se fala dele como de um “Conselho da Coroa”, experiência inédita na história. Este grupo, que Jorge Mario Bergoglio conhece bem e estima e entre os quais figuram personalidades progressistas (como o cardeal Maradiaga, de Honduras, que é seu coordenador), reunir-se-á no início de outubro em Roma, mas já é objeto das esperanças das correntes reformadoras da Igreja, que denunciam há tempo a centralização e a burocracia romana.

Ainda estamos longe de uma reforma democrática. Este Conselho terá somente um papel consultivo, mas já são dadas orientações que visam: 
  • a uma redução dos subalternos e do número dos ministérios, 
  • a maior transparência, 
  • à introdução de uma “colegialidade” de governo entre Roma e as Igrejas locais. 
  • Provavelmente a Cúria se tornará menos sufocante...
Será preciso esperar para ver se estas promessas serão confirmadas, mas o Papa Francisco não cessou de espantar-nos. O próximo encontro será, em julho, a Jornada Mundial da Juventude no Brasil – sua primeira viagem de Papa ao exterior – onde o esperarão três milhões de pessoas.

* Henri Tincq, por longos anos foi o jornalista especializado em assuntos do Vaticano, que escrevia no Le Monde (prestigioso jornal de Paris, França). 

A tradução é de Benno Dischinger.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Segunda-feira, 24 de junho de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521297-o-que-o-papa-francisco-mudou-em-cem-dias
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IGREJA E SOCIEDADE: 
O PROJETO DE FRANCISCO


Sérgio Ricardo Coutinho*


"Francisco esclareceu seu projeto da seguinte forma: 'uma Igreja que dê testemunho do Reino de Deus'. A Igreja, para ele, não é um movimento político, uma estrutura bem organizada, nem uma ONG; ela é chamada fundamentalmente a viver o Evangelho e dar testemunho dele como 'sal da terra e luz do mundo'".
Sérgio Ricardo Coutinho - historiador

O historiador italiano Daniele Menozzi, que dedicou um importante estudo sobre as relações entre a Igreja e a sociedade contemporânea (“A Igreja Católica e a Secularização”. SP: Paulinas, 1999), afirmava que apesar dos juízos tão dispares vindos do magistério católico e dos diversos grupos do mundo católico (neo-integristas, conservadores e progressistas) sobre o processo de secularização, havia entre eles uma convicção comum: não se poderia conceder ao agir político e social do homem uma plena autonomia em relação à religião cristã. Segundo esta premissa, entregue a si mesmo, o homem, na construção da cidade terrena, acabaria por se enveredar pelas vias de uma crise que conduziria à destruição ou dissolução da sociedade civil.

Pois bem, passados os primeiros 100 dias de pontificado do papa Francisco, temos já um bom material de análise, a partir de seus pronunciamentos, sobre qual deveria ser a missão e o papel da Igreja na atual sociedade contemporânea. Qual é o projeto de “Igreja” sonhado por Francisco para atuar junto à sociedade e responder aos desafios postos?

Nestes últimos 35 anos a Igreja, sob os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, construiu um projeto eclesiológico bem claro para enfrentar estes desafios: uma Nova Evangelização.

De fato, a secularização transformou-se no grande desafio do mundo contemporâneo em relação à Igreja, causa determinante da diminuição da prática religiosa, da redução das vocações, da perda dos valores éticos do catolicismo na vida individual e familiar, e ainda, em particular, por tender à meta de uma organização de vida coletiva que prescinde dos valores cristãos, reduzindo ou anulando a importância social da Igreja.

Contra esta tendência o Papa João Paulo II convocou os católicos para a necessidade de uma “nova evangelização” que restaurasse, em primeiro lugar, a Europa cristã na qual a sociedade recebesse da Igreja seus valores fundamentais. O cardeal Joseph Ratzinger, quando ainda prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em polêmica com as correntes teológicas contemporâneas que defendiam o abandono de uma ordem social cristã como a via de purificação da Igreja, sustentou que só a tradução para o plano legislativo dos valores dos quais a Igreja é depositária poderia permitir à Europa um retorno na rota dos desvios morais por onde enveredou a modernidade. De certo modo, este projeto também se fez chegar com força aqui em nosso continente americano.

Desta forma, e em larga medida, o mundo católico sob a forma do projeto de “nova evangelização” ainda se baseia nos pressupostos dos líderes da reação contrarrevolucionária, típicas do século XIX: não haverá verdadeira civilização nem autêntica convivência humana fora da “cristandade”, ou seja, fora de uma sociedade onde a Igreja dite as regras e valores do viver social.

A IGREJA SEGUNDO PAPA FRANCISCO

O papa Francisco iniciou seu pontificado expressando seu desejo e seu projeto eclesiológico aos jornalistas, que tinham feito a cobertura do Conclave: “como gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres”.

Este projeto foi sendo explicitado ao longo destes 100 primeiros dias de pontificado e melhor delineado em pronunciamento feito aos Movimentos e Associações laicais no dia 18/05, véspera de Pentecostes, festa litúrgica eminentemente eclesiológica.

O papa Francisco foi provocado pela seguinte questão: “Que contribuição podemos nós todos, enquanto movimentos e associações laicais, dar concreta e eficazmente à Igreja e à sociedade para enfrentar esta crise que toca a ética pública, o modelo de desenvolvimento, a política, em suma, um novo modo de ser homens e mulheres?”

Francisco esclareceu seu projeto da seguinte forma: “uma Igreja que dê testemunho do Reino de Deus”. A Igreja, para ele, não é um movimento político, uma estrutura bem organizada, nem uma ONG; ela é chamada fundamentalmente a viver o Evangelho e dar testemunho dele como “sal da terra e luz do mundo”: “é chamada a tornar presente na sociedade o fermento do Reino de Deus; e o faz, antes de tudo, por meio do seu testemunho: o testemunho do amor fraterno, da solidariedade, da partilha”.

Chamou a atenção também para o fato de estarmos atravessando uma crise, não só cultural e econômica, mas de uma profunda “crise do homem”, uma crise antropológica. Por isso, para a Igreja enfrentar esta crise antropológica, deve sair de si mesma. Sair de uma “doença grave” que tomou conta da Igreja nos últimos anos: a mundanidade espiritual (Henri de Lubac) que a invadiu.
Papa Francisco percorrendo a Praça São Pedro numa Audiência Geral
RISCOS QUE CORRE A IGREJA

O diagnóstico desta doença, feita por ele ainda enquanto cardeal e explicitada durante as reuniões pré-conclave: “Os males que, ao longo do tempo, se dão nas instituições eclesiais têm raiz na autorreferencialidade, uma espécie de narcisismo teológico. A Igreja autorreferencial quer Jesus Cristo dentro de si e não o deixa sair”. Simplificando: há duas imagens de Igreja, segundo ele: a Igreja evangelizadora que sai de si, ou a Igreja mundana que vive em si, de si e para si.

Por isso insiste: “Neste tempo de crise, não podemos preocupar-nos só com nós mesmos, fecharmo-nos na solidão, no desânimo, numa sensação de impotência face aos problemas. Não se fechem, por favor!”.

Este fechamento leva a problemas graves no interior da Igreja, verdadeiras heresias, e que a impede ser missionária: o pelagianismo e o gnosticismo. O pelagianismo aparece na forma de uma Igreja elitista restauracionista, com práticas disciplinares pré-conciliares e ciosos de si mesmos. A outra corrente é de uma Igreja, também elitista, “mas de uma elite mais formada”, gnóstica-panteísta. Esta corrente preocupa porque “pula a encarnação de Cristo”. Ambas correntes são autossuficientes, egocêntricas, preconceituosas, exclusivistas.

COMO EVITAR OS RISCOS

O critério para superar este mal na Igreja (a mundanidade) é “sair de si mesma” e ir em direção às “periferias existenciais” e lá poderá encontrar Jesus Cristo verdadeiramente encarnado: o pobre.

Disse ele aos membros da direção da Conferência Latino-americana de Religiosos (CLAR): “O Evangelho não é a regra antiga, nem esse panteísmo. Se você olhar para as periferias, os indigentes, os drogados, o tráfico de pessoas... Esse é o Evangelho. Os pobres são o Evangelho...”. Respondendo novamente aos leigos disse: “Este é o problema: a carne de Cristo, tocar a carne de Cristo, assumir este sofrimento pelos pobres. A pobreza, para nós cristãos, não é uma categoria sociológico, filosófica ou cultural. Não! É uma categoria teologal. Diria que esta é talvez a primeira categoria, porque aquele Deus, o Filho de Deus, humilhou-se, fez-se pobre para caminhar conosco ao longo da estrada. E esta é a nossa pobreza: a pobreza da carne de Cristo, a pobreza que nos trouxe o Filho de Deus com a sua Encarnação. A Igreja pobre para os pobres começa pelo dirigir-se à carne de Cristo”.

APELO AOS PADRES

Para realizar esta prática, serão necessárias reformas para muito além da Cúria romana, a começar pelo clero.

Para os padres, Francisco sinalizou com a seguinte imagem: a do “sacerdote ungido com óleo” que escorre pela barda até a “orla de suas vestes” (Salmo 133). Disse que o sacerdote que sai pouco de si, que unge pouco os seus fiéis “perde o melhor de nosso povo, e isso é que é capaz de ativar o mais profundo de seu coração presbiteral”. “Quem não sai de si, em vez de mediador, vai se convertendo pouco a pouco em intermediário, em gestor. Todos conhecem a diferença: o intermediário e o gestor ‘já têm seu pagamento’, e como não colocam em jogo a própria pele, nem o coração, também não recebem um agradecimento afetuoso que nasce do coração”. Por isso, alguns sacerdotes “acabam tristes e convertidos em uma espécie de colecionadores de antiguidades [pelagianos-restauracionistas] ou, então, de novidades [gnósticos-panteístas], em vez de serem pastores com ‘cheiro de ovelha’, pastores no meio do seu rebanho e pescadores de homens”.

APELO AOS BISPOS

O mesmo foi dito aos bispos. Falando ao episcopado italiano, fez um forte apelo à radicalidade evangélica e estabelecendo como uma “regra” a de ser capaz de “inclinar-se sobre as pessoas” e não um administrador preocupado com a organização. “Nós não somos expressão de uma estrutura – explicou – ou de uma necessidade organizativa”. Ao centrar-se somente nas estruturas, torna o pastor “morno”, “distraído, esquecido e até mesmo impaciente; o seduz com a perspectiva da carreira, a tentação do dinheiro e os compromissos com o espírito do mundo; o deixa preguiçoso, transformando-o em um funcionário, um clérigo de Estado preocupado mais consigo mesmo, com a organização e com as estruturas, do que com o verdadeiro bem do Povo de Deus”.

APELO AOS NÚNCIOS APOSTÓLICOS

Alertou aos Núncios apostólicos para os critérios em vista de uma boa escolha para o episcopado: que sejam pastores capazes de “caminhar no meio e atrás do rebanho: capazes de ouvir o silencioso relato de quem sofre e de manter o passo de quem teme que não irá conseguir; atentos a reerguer, a tranquilizar e a infundir esperança. Do compartilhamento com os humildes, a nossa fé sai sempre reforçada: deixemos de lado, portanto, toda forma de presunção, para nos inclinarmos” sobre as pessoas. Os candidatos ao episcopado devem amar “a pobreza interior como liberdade no Senhor e também a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida” e não devem ter “uma psicologia de ‘Príncipes’”. “Estejam atentos – assinalou Francisco aos Núncios – para que não sejam ambiciosos, que não persigam o episcopado e que sejam esposos de uma Igreja, sem buscar constantemente outra”. Aqui está uma alusão explícita ao carreirismo na Igreja.

A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Sem dúvida nenhuma que o modelo de sacerdote-pastor que Francisco tem em mente é Dom Oscar Romero, cuja beatificação ele desbloqueou nestes dias. Isso o faz se colocar próximo à Teologia da Libertação.

Na América Latina, durante um longo período, a hostilidade demonstrada para com a Teologia da Libertação foi um importante fator para favorecer brilhantes carreiras eclesiásticas. De fato, hoje, é muito mais fácil reconhecer que certas veementes mobilizações de alguns setores eclesiais contra a Teologia da Libertação eram motivadas por certas preferências de orientação política mais que pelo desejo de guardar e afirmar a fé dos apóstolos.

Mas Francisco tem plena consciência dos riscos desta “saída de si”: “Entretanto que acontece quando alguém sai de si mesmo? Pode suceder aquilo a que estão sujeitos aqueles que saem de casa e vão pela estrada: um acidente. Mas eu digo-vos: Prefiro mil vezes uma Igreja acidentada, caída num acidente, que uma Igreja doente por fechamento! Ide para fora, saí!”.

Nesta saída para o mundo, Francisco não demonstra qualquer intencionalidade de reconstruir a “Cristandade”, onde a Igreja dite regras e valores do viver social. Seu projeto vai noutra linha: ir ao encontro do outro, mesmo que diferente de nós. “Porque a fé é um encontro com Jesus, e nós devemos fazer o mesmo que Jesus: encontrar os outros. Vivemos numa cultura do desencontro, uma cultura da fragmentação, uma cultura na qual o que não me serve jogo fora, a cultura do descartável. Nós, pelo contrário, devemos ir ao encontro e devemos criar, com a nossa fé, uma ‘cultura do encontro’, uma cultura da amizade, uma cultura onde encontramos irmãos, onde podemos conversar mesmo com aqueles que pensam diversamente de nós, mesmo com quantos possuem outra crença, que não têm a mesma fé. Todos têm algo em comum conosco: são imagens de Deus, são filhos de Deus. Ir ao encontro de todos, sem negociar a nossa filiação eclesial”.

Assim, o que podemos vislumbrar é que, pelo que vimos e ouvimos destes 100 dias, a “nova evangelização” empreendida pelo papa Francisco carrega em si um projeto eclesiológico e missionário bem diferente do que se vinha sendo implementado até aqui e que os resultados eram pífios. Vejamos, daqui para frente, quais serão as ações concretas para que o mesmo projeto se realize.

* Sérgio Ricardo Coutinho é mestre (UnB) e doutorando (UFG) em História Social; professor de “História da Igreja” no Instituto São Boaventura e de “Formação Política e Econômica do Brasil” e de “Teoria Política” no Centro Universitário IESB, em Brasília; membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil).

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos - Notícias - Terça-feira, 25 de junho de 2013 - Internet: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521313-igreja-e-sociedade-o-projeto-de-francisco-artigo-de-sergio-ricardo-coutinho

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