MANIFESTAÇÕES: O QUE ESTÃO A NOS DIZER?

EM TRÂNSITO

Entrevista com José Garcez Ghirardi*


Ivan Marsiglia


Protestos que balançam as cidades brasileiras mostram que a política não pode ser apenas a arte do possível; cabe a ela recriar utopias
Prof. José Garcez Ghirardi - FGV/SP

Inicialmente restritos a uma mobilização relativamente pequena na internet, movimentos pela redução de tarifas do transporte público explodem em diversas capitais do País. Em São Paulo, no que alguns já chamam de Occupy Paulista, resultaram em tumultos de proporções poucas vezes vistas desde a redemocratização. E, do início ao final dessa semana, provocou uma reversão de expectativas na sociedade: na terça, atos de vandalismo e depredação por parte de manifestantes na principal avenida da cidade; quinta, uma reação policial desproporcional que suscitou críticas até no exterior.

A opção da Polícia Militar de dispersar à força a multidão que marchava na Rua da Consolação causou pânico, correria e dezenas de feridos, entre eles cidadãos que passavam pelas ruas e profissionais da imprensa que cobriam o ato. A Anistia Internacional divulgou nota considerando "preocupante o discurso das autoridades sinalizando radicalização da repressão". A ONG Repórteres Sem Fronteiras condenou a "repressão brutal" e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) contabilizou em 15 os jornalistas feridos por bombas e balas de borracha - ferido no olho, um fotógrafo da agência Futura Press corre risco de ficar cego.
[...]

O que o sr. achou das cenas de violência na quinta-feira, quando a PM enfrentou manifestantes nas ruas, resultando em dezenas de feridos, inclusive repórteres e cidadãos que não participavam do protesto?

José Garcez Ghirardi: Essas imagens ilustram as consequências da falta de diálogo democrático efetivo que tem marcado a sociedade brasileira. A prática política recente vem articulando uma lógica binária redutora, profundamente nociva para o funcionamento das instituições democráticas. Ele articula o discurso do "nós" ou "eles", que considera moralmente superiores as razões próprias e desqualifica, de antemão, visões contrárias. Isso solapa o fundamento da democracia, que é justamente o respeito à pluralidade de visões de mundo. Se não há diálogo real, a violência se transforma em única linguagem possível.

O governador Alckmin defendeu a ação da PM, afirmando que ela evitou mais vandalismo e desobstruiu as vias públicas. Já o prefeito Haddad, que criticara as depredações da primeira passeata, afirmou dessa vez que ‘a imagem que ficou foi a da violência policial’. As autoridades estão respondendo adequadamente aos acontecimentos?

José Garcez Ghirardi: A questão do excesso policial é uma das faces do dilema que desafia as autoridades em regimes democráticos. O imperativo de garantir a livre manifestação de ideias coexiste com o imperativo de garantir a normalidade da ordem para todos - para os que se manifestam e para os que não desejam fazê-lo. Esse equilíbrio, que requer sobriedade de cada um, é muito difícil de alcançar, como infelizmente temos tido ocasião de testemunhar. Acho que o fato de o governador dar mais ênfase à destruição da propriedade e o prefeito ressaltar o direito à manifestação são complementares num certo sentido: afirmam que o desenho institucional democrático brasileiro é uma conquista importante. Mas ela supõe que a gente consiga negociar nos canais políticos as decisões que vão ser tomadas. Não me consta que isso tenha ocorrido durante a tramitação da nova tarifa, seja por parte das autoridades ou dos manifestantes.

Uma pesquisa feita no início da semana mostrava que 55% dos paulistanos apoiavam os atos, mas 78% os consideravam mais violentos que o necessário. As críticas à ação policial podem mudar esse sentimento?

José Garcez Ghirardi: Acredito que isso possa acontecer. Se o foco do debate migrar do valor da tarifa para a ação policial, a possibilidade de o sentimento popular se alterar é real. Nesse possível novo quadro, entraria em pauta o tema das relações entre polícia e sociedade que, como se sabe, é particularmente complexo no Brasil.

O jornal espanhol El País afirmou que ‘o Brasil, pouco acostumado a protestar na rua, desta vez se levantou’, lembrando que o mesmo não ocorreu com os escândalos de corrupção. Por quê?

José Garcez Ghirardi: Alguns têm tentado fazer uma conexão entre esses movimentos de rua e outros, em especial os ocorridos à época da luta pela redemocratização. Mas acho que há diferenças importantes que ajudam, inclusive, a entender por que os jovens não se mobilizaram no caso do mensalão e se mobilizam agora pela passagem do ônibus. A primeira diferença, no entanto, é abissal: vivemos num regime democrático. A segunda, mais importante, é que, naquela época, o projeto de restauração da ordem democrática era fundamentalmente coletivo, superior a interesses pontuais ou de grupo. Eram multidões heterogêneas caminhando por uma causa comum, sindicalistas, estudantes, a Igreja, bancários, etc, o que gerava uma possibilidade maior de apoio e de adesão de quem estava de fora. Aquelas manifestações tinham uma proposta clara de construção institucional - ampla, geral e de longo prazo. Hoje, as manifestações de rua contra o aumento das tarifas de transporte têm muito mais as características do que chamamos de instant mob: um movimento combinado nas redes sociais para promover uma ação específica no tempo e no espaço, impactar o coletivo e se dissolver.

Por que a dinâmica dos protestos mudou?

José Garcez Ghirardi: Tem a ver com a forma como estão se organizando as relações sociais hoje em dia. As pessoas conseguem se unir para uma ação pontual, com interesse específico e efêmero, mas não construir projetos consensuais. Isso ocorre porque a relação de consumo se tornou a relação matricial da nossa sociedade. Quando você compra um produto, está desinteressado de todo o longo processo que o levou às suas mãos, envolvendo escolhas, sacrifícios de pessoas, etc. E assim que aquilo satisfaz sua necessidade imediata, você o descarta sem preocupar também com consequências. De certa maneira, há uma relação de consumo com a política hoje. As pessoas estão consumindo política, não produzindo política. Elas não se envolvem nos processos de negociação, nem têm participação efetiva nas tomadas de decisão. Quando vem um resultado - um produto - que elas não gostam, reclamam com enorme intensidade. Mas depois, na hora de construir, que é muito mais difícil, pois pressupõe articulação de interesses diferentes, não conseguem avançar.

O advento da internet foi festejado por muitos como uma possibilidade de ampliação do debate público, que facilitaria os consensos coletivos. Não deu certo?

José Garcez Ghirardi: Acho que não por uma questão muito importante: a democracia se baseia mais em saber ouvir do que em saber falar. O (sociólogo e historiador norte-americano) Richard Sennett fala no "fetiche da afirmação" de nossos dias: as pessoas acham que é muito importante dizer o que pensam. E é. Mas a democracia se faz ouvindo respeitosamente o argumento do outro. Não adianta todos poderem falar se ninguém ouve. Essa lógica binária, do nós ou eles, muito presente nos discursos na internet, não ajuda a construir democracia.

Protestos convencionais, de sindicatos ou categorias profissionais que não se mobilizam via internet, escapam dessa lógica?

José Garcez Ghirardi: Padecem do mesmo problema. Veja por exemplo as passeatas de professores ou policiais, que também têm ocorrido na Paulista. Por que também não conseguem ter o mesmo impacto de antes? Em parte porque esses movimentos tampouco conseguem fazer a articulação entre o interesse pontual e coletivo. Não se luta por uma política salarial ou uma econômica diferente; luta-se por um reajuste. Essa incapacidade de construir coletivamente o futuro, de achar novas soluções que comportem a diferença, marca o nosso tempo. E está intimamente ligada a essa opção fundamental pelo consumo.

Os problemas de mobilidade urbana no Brasil tornaram-se insuportáveis?

José Garcez Ghirardi: A questão do transporte público no País é calamitosa. E o atual governo fez uma opção clara pelo transporte individual. Isso está dado e, de novo, é fruto dessa crença de que a gente vai conseguir fazer a inclusão social pelo consumo. Tudo ligado, em grande parte, à forma como se tem feito política no Brasil. E com partidos cujo único projeto é de poder.

O que a paralisação do tráfego, essa questão tão sensível nas grandes cidades brasileiras, sinaliza sobre o fenômeno?

José Garcez Ghirardi: É central. Comprar um carro novo com redução do IPI ou crédito mais barato tornou-se não só um signo de prestígio para as pessoas, mas também a prova do sucesso da escolha política da inclusão social via consumo pelo governo. Mas o caos do trânsito em nossas grandes cidades, que nem precisa de manifestações para ocorrer, mostra que não. Um país que faz a opção de que cada um cuide do próprio transporte, saúde e educação, em detrimento dos canais públicos, é um país que vai entrar em colapso. A história recente americana nos mostra isso, com as crises do setor automobilístico e financeira. O consumo como forma de realização da política é o maior risco que corremos. A política é o lugar do coletivo e do diferente; o consumo, o lugar do individual e do igual.

Que relações há entre os atuais protestos brasileiros e outros como a Primavera Árabe ou o Occupy Wall Street?

José Garcez Ghirardi: As semelhanças estão na forma de articulação política via internet e no envolvimento de uma juventude que quer renovar a participação política - um aspecto positivo, a se frisar. Entretanto, tanto no caso brasileiro quanto nos movimentos que você citou, há uma dificuldade desses grupos em saber o que fazer depois do protesto. Como construir o depois? Para institucionalizar mudanças, não basta dizer "não"; é preciso que se diga "sim" a alguma coisa. Esse é o enigma que está diante de nós, das mais diferentes gerações: como reconstruir o espaço político nesse mundo em que as instituições obviamente já não dão conta da vida moderna. É verdade que a política é a arte do possível, mas ela também tem que ser a arte de sonhar o impossível. O que todos esses movimentos estão mostrando é que nós precisamos de utopias, pensar formas para uma vida melhor, uma sociedade mais fraterna. A violência não é o caminho, o marasmo não é o caminho - mas essa capacidade de falar e de ouvir dentro da democracia.

* José Garcez Ghirardi é advogado e professor da Direito FGV/SP, leciona Formação Político-Econômica do Estado de Direito Brasileiro.


Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 16 de junho de 2013 - Pg. E2 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,em-transito,1042845,0.htm
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"As manifestações contra a tarifa são válvulas de escape"

Entrevista com  Marcelo Ridenti
Tropa de choque cerca jovens manifestantes em São Paulo
MARCELO BERABA

As manifestações atuais refletem o desconforto de uma geração que teve ampliadas as oportunidades de acesso ao ensino médio e superior, mas que encontra um mercado de trabalho restrito e frustrante sob o ponto de vista salarial e de condições de trabalho. Essa é a análise do professor de Sociologia Marcelo Ridenti, da Unicamp. Os protestos, em sua opinião, são como válvulas de escape e têm mais a ver com esse desconforto.

Como analisa as manifestações contra a tarifa?

Marcelo Ridenti: Tenho uma intuição, mas não é fruto de pesquisa. Tem aumentado muito nos últimos anos o número de jovens mais ou menos intelectualizados, resultado de um aumento grande na conclusão do ensino médio e do aumento do acesso ao ensino superior, especialmente o privado. Isso causa nessa juventude certo desconforto. São milhões que de algum modo vão buscar em algumas causas coletivas que aparecem, como o movimento para impedir a derrubada do Museu do Índio no Rio e esses movimentos contra a tarifa, válvulas de escape para expressar um certo desconforto com a situação deles na sociedade. Um desconforto de um lado econômico e de outro ético e existencial.

O que seria esse desconforto econômico?

Marcelo Ridenti: Embora muita gente tenha concluído o colegial e entrado na faculdade, o lugar para os jovens no mercado é muito restrito. E, quando conseguem uma colocação, acabam se sujeitando a condições de trabalho que não combinam com as promessas de ascensão social pelo estudo. Isso gera um desconforto que tem laços também éticos e existenciais.

Como assim?

Marcelo Ridenti: Há um excesso de valorização da posse de mercadoria e pouco espaço para a socialização em comunidade. Há uma massa de jovens que está em busca de causas coletivas. Porque vivemos uma época de um individualismo muito exacerbado.

É possível um paralelo com as manifestações dos anos 60 e 70?

Marcelo Ridenti: A agitação dos anos 60 e 70 combinou com um momento de modernização da sociedade e de ampliação do acesso ao ensino, que foi restrito, mas que gerou manifestações ligadas ao combate à ditadura. Ultimamente, tem havido uma retomada do desenvolvimento e uma ampliação impressionante de vagas no ensino. A minha intuição sociológica é de que é menos a passagem de ônibus e mais a manifestação de desconforto dessa nova geração que não está encontrando um lugar muito claro na sociedade.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Metrópole - Domingo, 16 de junho de 2013 - Pg. A22 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,as-manifestacoes-contra-a--tarifa-sao-valvulas-de-escape-,1042944,0.htm
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MUITO MAIS DO QUE 20 CENTAVOS

Marcelo Rubens Paiva 
Repressão policial aos protestos em São Paulo
Se engana quem acredita que a cidade parou por apenas 20 centavos. Embora 20 centavos faça a diferença para milhões.

Na manifestação do Movimento Passe Livre de terça-feira, a unanimidade foi chamar todo cidadão que protestou de vândalo e baderneiro.

As duas mais importantes autoridades da cidade estavam juntas em Paris, o governador do PSDB, Geraldo Alckmin, e o prefeito do PT, Fernando Haddad, com o vice-presidente da República, Michel Temer, do PMDB, numa surpreendente aliança com aspecto de grandeza alucinada: sorridentes, esqueceram as divergências e tentaram vender mais uma vez o Brasil para outro grande evento internacional, enquanto as obras da Copa das Confederações não estão prontas, e as obras de mobilidade urbana para a Copa do Mundo nem começaram.

Na França, apresentaram o projeto de São Paulo à Expo 2020, uma prova de que o Poder vive num delírio megalomaníaco, ao passo que, quem leva duas horas por dia para ir trabalhar, três para voltar, em ônibus entupidos e caros, enfrenta 200 km de congestionamento, vive a realidade.

A manifestação nesses dias em São Paulo e outras capitais ganhou o caráter que deveria.
Não se trata apenas de centavos a menos na passagem do ônibus, mas de uma revolta coletiva contra um Estado que trata o indivíduo como um estorvo: o inimigo.

Estado que, ao invés de solucionar os problemas da violência, aterroriza. Que pensa para fora, não para dentro. Que gasta em estádios, não em metrô.

E mais uma vez, a Polícia Militar, o braço armado que garante o Poder aos incompetentes, e os blinda contra as revoltas, faz o trabalho que nem sequer o melhor dos marqueteiros conseguiria: une a sociedade, dentro e fora do Brasil, física e virtual, contra a violência de quem deve combatê-la e ganha para isso.

Viu-se uma PM tomar o Poder. Impedir que manifestantes ocupassem a avenida, ocupando-a. Abrir fogo contra inocentes e jornalistas. Tipificar uma manifestação política como formação de quadrilha.

Não é mais o aumento da passagem a bandeira. Alguns cartazes escritos à mão deram o tom.
“O povo não deve temer o governo, o governo deve temer o povo”.
“Uma cidade muda não muda”.
“Desculpe o transtorno, estamos mudando o País”.

Pela TV, assistimos a anarquia militar. Motos tocavam pedestres como gado em frente à FIESP. PMs atiravam a esmo. Encurralavam jovens de braços erguidos, rendidos.
Pelas redes sociais, minuto a minuto, informes, imagens e relatos.
Giuliana Vallone - repórter atingida por disparo da polícia

Apresentadores de TV perdidos, desinformavam e confundiam.
Luiz Datena, da BAND, fazia uma enquete ao vive. Sua pergunta tendenciosa pedia uma resposta: “Você é a favor de protesto com baderna?” O resultado mostrou que a revolta é mais profunda, deixou o apresentador sem ação: o sim ganhava do não por 2050 a 851, quando a emissora tirou a enquete da tela.

Enquanto pelas redes sociais rodava a foto da repórter Giuliana Vallone, da TV Folha, com o olho sangrando, de policiais quebrando o vidro da própria viatura para simular um ataque, de cinegrafista levando um jato de spray de pimenta, a polícia ocupava a Paulista, fechava a avenida para manifestantes não a ocuparem.

Antônio Prata tuitou: “No próximo protesto, que se combine de antemão. A PM vai pra praticar atos de vandalismo, e os manifestantes para tentar contê-los.”


Fonte: O Estado de S. Paulo - Metrópole - Domingo, 16 de junho de 2013 - Pg. A22 - Internet: http://blogs.estadao.com.br/marcelo-rubens-paiva/muito-mais-do-que-20-centavos/

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