A nossa mente e a pandemia
“Bolsonaro
vai de rival da quarentena a quarentenado isolado”
Marcella
Franco
Entrevista
com Christian Dunker
Psicanalista
e professor titular da Universidade de São Paulo (USP)
Presidente vive na pandemia um acirramento do
processo de solidão do tirano, quando se vê inimigos em todo lugar, diz
professor
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CHRISTIAN DUNKER |
Excetuando-se
os raros centenários espalhados pelo mundo, praticar quarentena com isolamento
social devido a uma pandemia é algo inédito para todos. Com isso em mente, fica
óbvio o humor no título de Christian Dunker, “A Arte da Quarentena para
Principiantes” (Boitempo, 77 páginas): não há peritos entre nós.
Psicanalista
e professor titular da USP, Dunker mira o momento atual sob dois recortes:
1º) da saúde
mental; outro,
2º) da regionalização
do enfrentamento ao coronavírus.
E conta à Folha
de S. Paulo que arrisca, mesmo no caos, tentar fazer rir.
Para ele, o
Brasil é um país onde a produção de inimigos foi retórica de campanha e virou
método de governo. Aqui, portanto, a estratégia de enfrentamento de um
adversário real – “uma forma de vida composta de uma capa de gordura com
proteína” – acaba contaminada e menos eficaz.
No livro, o
psicanalista avalia como a pandemia vem para destruir o engrandecimento
narcísico da sociedade atual, e fala em “oniropolítica”, conceito em que o
futuro é feito de solidariedade e sonho, e onde “Bolsonaro não governa mais
este país”.
Eis a
entrevista.
“A
Arte da Quarentena para Principiantes” é um livro sobre a quarentena, um
livro sobre o governo ou um livro sobre o governo na quarentena?
Christian
Dunker: É um livro sobre o governo na quarentena, e eu diria que é
um governo sob o risco de entrar em quarentena ele próprio, no sentido de se
isolar, de perder contato com as instituições. Basicamente, tento ajudar as
pessoas a interpretar essa situação inédita, em que a gente vai buscar
referências para lidar com isso, para tornar o desconhecido um pouco mais
conhecido, e não encontra. Elas são ou muito antigas, do tempo da peste, ou não
são suficientemente fortes para falar da mudança que realmente aconteceu.
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Publicado, até agora, somente em e-book |
Você
menciona que, no Brasil, havia “uma produção contínua de inimigos imaginários”.
Com quais sentimentos um indivíduo afeito a essa prática tem de se deparar
quando finalmente surge um inimigo real?
Christian
Dunker: É um sentimento de extrema contrariedade, porque cada país
foi atravessado pelo coronavírus a partir do seu próprio processo. No
Brasil, a polarização exigia das pessoas que se eliminasse a posição do
terceiro. Só existia ser a favor ou ser contra.
Quando você
tem um terceiro, que não é vermelho, nem azul, você introduz um lugar, e isso
coloca a gente em contato com o resto do mundo. Isso dá mais valor para a
comunidade de cientistas, pesquisadores, que estavam envolvidos justamente
nessa produção de inimigos. Eles tinham se tornado verdadeiros inimigos
inclusive do ministro da Educação, como se fossem inconsequentes, plantadores
de maconha, de quem se deve tirar bolsas, insumos e financiamento.
É muito
contraditório quando você tem a aparição de um terceiro que nega essa lógica. As
pessoas eventualmente vão cair desse negacionismo quando forem elas mesmas
contaminadas ou perderem um familiar.
A
chegada do coronavírus ao Brasil acentuou a prática da necropolítica em
território nacional?
Christian
Dunker: Sim. Ela evidencia verdades que estavam intactas, processos
que já estavam acontecendo, mas que agora ficaram muito explicitados.
A necropolítica
[= política mortal ou política da morte], descrita pelo
filósofo Achille Mbembe, é a face mais mórbida do processo. Ele
desenvolve esse conceito em oposição à biopolítica. A necropolítica
estabelece que nem todos vão poder participar, nem todos são de fato sujeitos.
Alguns são corpos que a gente não vai ativamente pôr numa câmara de gás, mas
vai deixar morrer, vai privar de máscara, deixar de assistir eles na saúde pública.
O processo
típico é a lentificação do auxílio. Isso a gente vê sob a capa da
descoordenação, na reunião de ministério que veio a público, no discurso de que
é só uma gripezinha, no discurso sobre as armas.
Você
comenta o mecanismo de negação descrito por Freud. Quando um presidente da
República comparece a atos antidemocráticos, incita o povo a pegar em armas, e,
ao mesmo tempo, diz “eu vou seguir a Constituição”, esse é um exemplo do tal
mecanismo?
Christian
Dunker: É um exemplo cabal. E não é só um processo de distorção
cognitiva de não querer ver as coisas ruins, uma positividade tóxica. É também uma
forma de convocar as pessoas, de tornar a mobilização permanente, porque a
gente precisa se juntar para negar, tornar isso um processo coletivo.
Isso é
perigoso, porque produz uma massa artificial de negadores que precisa falar
mais alto, gritar, se impor aos outros, ocupar as ruas, se manifestar
para conseguir aumentar o sentimento de que estão com a razão.
Em
tempos de pandemia, qual a importância do medo?
Christian
Dunker: O medo é esperado para essa situação. Ele evoca um perigo
real. Não é fantasia que as pessoas estão perdendo a vida. Mas não se deve
confundir medo com angústia. A angústia vem de dentro, tem a ver com
nossos modos de sofrimento, como a gente individualiza o que está acontecendo.
O
que leva influenciadores a darem festas, famílias a passearem na rua, e
manifestantes a se aglomerarem quando as recomendações das autoridades mundiais
sugerem que se faça exatamente o oposto? Essas pessoas se acham especiais?
Christian
Dunker: É uma confluência de fatores. Estamos diante de um processo
de obediência. E obedecer convoca a referência de como esse conceito se formou
dentro de nós, nas referências simbólicas, os pais, a escola, os patrões. A
gente aprende a obedecer a partir de um laço de suposição de saber a autoridade
no outro.
O primeiro motivo para estarmos nos últimos
lugares na resposta à Covid-19 é
porque as nossas autoridades simbólicas,
em vez de concorrer para a unidade,
para o consenso de que é preciso obedecer,
elas mesmas se colocaram em um lugar de
exceção.
A autoridade
simbólica é constituída por aqueles que conseguem
se limitar. Aqueles que não conseguem são os que dizemos que têm poder,
mas não têm autoridade. O processo inicial de traição e desobediência vem daí.
Em vez da política bem concentrada, o que vimos foi lentificação, substituição
de ministros e confusão.
Você
comenta que Bolsonaro adota a “dualização de razões”, ao “exagerar declarações
para depois voltar atrás”. Você acha que essa conduta está mudando?
Christian
Dunker: É um dualismo que progride a partir de uma desmemória,
coisa que, para a psicanálise, é muito ofensiva. É um regime de
inconsequência com a palavra. Eu digo algo exagerado e ofensivo e isso se
torna tolerável. Quando passo de um limite, digo que estava brincando. Isso
ajuda a elevar o tom de inconsequência, os inimigos, a polarização.
Há uma
inferência em curso, porque os inimigos começaram a se tornar cada vez mais
internos:
* Os
ex-ministros da Segurança,
* Saúde e
* a secretária
da Cultura,
respectivamente
Sérgio Moro, Luiz Henrique Mandetta, Regina Duarte.
É o
processo de solidão do tirano, descrito desde o século 16. Ele
vai descobrindo que tem menos poder do que gostaria, fica mais colérico,
paranoico, ataca, e termina como tirano solitário.
Bolsonaro
está passando de adversário da quarentena a um quarentenado isolado.
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SERGIO MORO Durante a reunião ministerial do dia 22 de abril - completamente calado |
Há
um trecho em que você comenta que Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça e Segurança
Pública, não abre a boca. É difícil escrever uma obra sobre o governo quando as
coisas mudam com velocidade?
Christian
Dunker: É um livro de intervenção, muitas coisas não vão permanecer como leitura de longo prazo. Foi feito e gestado
em uma situação de exceção. É como os
víveres que a gente joga de paraquedas no Vietnã sitiado para ver se ajudam.
A história
do Moro curiosamente continua valendo, se a gente pensa que, na reunião do dia
22 de abril, quando tem aquele conjunto execrável de declarações, ele fica em
silêncio. Claro que depois ele denuncia, mas acho isso muito simbólico e
representativo do que eu chamaria de conservadores, que não são os
bolsonaristas. Os conservadores verdadeiros estão envergonhados, às voltas
com a decisão sobre como pedir desculpas e voltar atrás.
Em
um dos capítulos finais do livro você diz que, se você não está confuso neste
momento, você tem um problema, e ele não é o coronavírus. Pode explicar?
Christian
Dunker: Nessa travessia, precisamos lembrar da música que diz “quando
eu estiver louco, se afaste”. É a ideia de que todos vamos ter momentos de
enlouquecimento, e precisamos ser tolerantes com eles. Reconhecê-los, e
avisar aos outros quando eles acontecerem.
É uma atitude
preventiva, de não tomar grandes decisões, de não achar que está tudo como estava
antes. Estamos em um estado de muita alteração psíquica.
Sobre o entrevistado
Christian
Dunker, 54 anos, é psicanalista, mestre e doutor pela
Universidade de São Paulo (USP). Cursou pós-doutorado na Manchester
Metropolitan University. Atualmente é professor livre docente do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo. Publicou mais de uma dezena de livros,
entre os quais “Mal-estar, sofrimento e sintoma” (Boitempo) e “Reinvenção
da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano” (Ubu).
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