O mágico das mortes
Fazendo
vítimas desaparecerem
Andrei Roman
CEO da
Consultoria Atlas, Ph.D. em Ciência Política pela Universidade de Harvard
Incapaz de produzir um milagre para proteger
a vida,
o Governo brasileiro inventou o “wizard”,
burocrata que faz as vítimas “desaparecerem” das estatísticas oficiais
Coveiros enterram vítima de coronavírus em Breves, no Pará UESLEI MARCELINO / REUTERS |
Em artigo
publicado pelo EL PAÍS em março, argumentava que o Brasil tinha adotado até
aquele momento o que era provavelmente “uma das mais fracas e lentas reações à
pandemia de todo planeta":
a) A demora
inexplicável no fechamento das fronteiras aéreas [responsabilidade que cabe
ao Governo Federal],
b) a falta de
uma política de rastreio das pessoas que tinham entrado em contato com
pacientes confirmados de covid-19 [responsabilidade do Ministério da Saúde],
c) a
orientação de somente testar casos sintomáticos graves e, certamente,
d) as
divergências sobre a adoção do isolamento social entre o Ministério da Saúde e
o presidente da República, entre tantos outros fatores,
deixaram o
Brasil na posição de contar com um milagre como única possibilidade de salvação
frente ao contágio exponencial do vírus.
Escondendo
os mortos e a irresponsabilidade
Mas o
milagre nunca chegou, e o Brasil encerra a primeira semana de junho com o maior
número de mortes diárias do mundo. Incapaz de produzir um milagre
para proteger a vida, o Governo inventou o Mágico das
Mortes, burocrata que faz as vítimas “desaparecerem” das estatísticas
oficiais. Aos brasileiros reduzidos a uma estatística por conta da
irresponsabilidade dos governantes não resta mais nem sequer isto — a inclusão
dentro da estatística. Em uma estratégia política perversa, eles
precisam ser completamente apagados.
Depois de ter tirado do ar o portal de
divulgação de dados sobre a covid-19,
fato inédito no mundo (por
várias horas, Brasil virou o único país com
divulgação suspensa no
mapa da Universidade Johns Hopkins,
o principal centralizador global de dados sobre
a evolução da pandemia),
o Ministério da Saúde lançou um novo portal, de
onde 80% dos indicadores
inicialmente divulgados desapareceram.
Como se
isso não fosse grave o suficiente, na noite deste domingo o número de mortes
divulgado inicialmente às 21h — 1.382 — foi revisado para 525 óbitos na
divulgação das 23h. O ministério não explicou o que determinou uma queda de
62% nos óbitos diários no espaço de somente duas horas. A discrepância parece
estar relacionada à adoção de uma nova metodologia focada na data de
ocorrência em vez da data do registro dos óbitos. No entanto, como a causa
de muitos óbitos por covid-19 não é estabelecida no dia de ocorrência, mas
posteriormente, a alteração de metodologia lança dúvidas sobre a
contabilização futura dessas mortes. Já que o ministério também desistiu de
reportar o total de óbitos registrados desde o começo da pandemia, o novo
cálculo levanta o risco de omissão das estatísticas oficiais de óbitos cuja
origem não for confirmada no dia de ocorrência. Na melhor das hipóteses, se
os dados diários forem revisados posteriormente como deveriam em função da
confirmação de diagnósticos, trata-se de uma pedalada
sanitária: empurrar para o futuro a divulgação de dados dramáticos
para o país, confundindo o público em relação à gravidade da crise.
As
mentiras contadas pelas redes sociais
Infelizmente,
a óbvia tentativa de manipulação dos dados sobre a pandemia faz parte de um esforço
maior de falsificação nas mais diversas frentes e junto aos mais diversos
aliados. Foi mais fácil tentar colar a ideia de que o número de mortes causadas
pela covid-19 no Brasil estaria manipulado pelos governadores depois que
fábricas de fake news disseminaram via redes sociais o boato de que caixões
vazios estariam sendo enterrados em Manaus ou que médicos estariam
classificando sistematicamente como vítimas de covid-19 pacientes que morreram
por outras causas.
Há
muito mais óbitos e contaminados
Estudos
epidemiológicos conduzidos no país confirmam sem sombra de dúvidas a mesma
conclusão observada internacionalmente: existe uma
brutal subnotificação de casos da covid-19, tanto em termos de casos como de
óbitos. O estudo Epicovid19 conduzido pela Universidade Federal
de Pelotas para o Governo do Rio Grande do Sul, um dos Governos estaduais
com a melhor gestão da crise até o momento, revelou com base numa amostra
aleatória de testes que o número de casos de coronavírus no Estado é nove
vezes maior do que o registro oficial. Uma versão nacional da mesma
pesquisa indica uma subnotificação levemente menor: o número real de casos
estaria “somente” sete vezes maior do que o divulgado. As evidências
científicas em relação à subnotificação de casos e mortes são tão contundentes
que nenhum tipo de artifício retórico, fake news ou alteração metodológica no
acompanhamento da evolução epidemiológica poderá esconder essa realidade.
Brasil
ao lado de tiranias e corruptos
A manipulação
dos dados sobre casos e óbitos na pandemia do coronavírus coloca o
Brasil na mesma categoria de regimes corruptos e autoritários com fama de
pária no cenário internacional.
* Venezuela fabrica dados sobre eleições e inflação;
* Nicarágua falsifica dados sobre manifestantes
assassinados pelo Governo;
*
Rússia inventa dossiês de supostos crimes conduzidos pelos
opositores ao Governo para justificar a perseguição política;
* Irã mente que não derrubou um avião comercial com 176
passageiros a bordo (neste último caso, o regime foi posteriormente obrigado a
reconhecer sua culpa diante das evidências).
É nessa
“seleta” companhia de tiranias abomináveis que o Brasil se encontra cada vez
mais: uma aventura vergonhosa e que precisa acabar o quanto antes.
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