A sociedade adoeceu!
Outra
terrível doença que atinge o Brasil
Patricia
Fachin
Entrevista especial com Luiz Werneck Vianna
Sociólogo
e professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC/Rio
Diante da ameaça do
fascismo, Brasil precisa de um artista,
um político que seja senhor da
arte de tecer algo comum
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LUIZ WERNECK VIANNA |
Para compreender o momento presente e as crises políticas e
sociais que o Brasil enfrenta, o sociólogo Luiz Werneck Vianna costuma dar
um passo atrás em busca das causas. O abismo político e social
diante do qual o país se encontra hoje, assegura, é consequência da política
praticada nos últimos anos. A eleição do presidente Bolsonaro e os
sucessivos atos antidemocráticos que reivindicam o fechamento do Supremo
Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional em defesa de um governo
autoritário, são indicativos de que a sociedade brasileira adoeceu porque a
política praticada nas últimas décadas não favoreceu a organização da cidadania.
“Não quero arrumar culpados, mas fomos todos que perdemos uma herança
importantíssima; deixamos que se dilapidasse diante dos nossos olhos a Carta
de 88, que é de inspiração social-democrata – é débil, mas é uma
social-democracia e tinha possibilidade de desenvolvimento futuro. Para que
isso ocorresse, precisávamos ter entendido que democracia política e
democracia social deveriam andar juntas. No entanto, a partir de
determinado momento, a esquerda hegemônica, no caso o PT, conduziu o tema do
social sem política, sem amparar o social em instituições democráticas e sem
fortalecer a democracia”, afirma.
As consequências de uma política “desamparada de
sustentação cidadã” podem ser vistas nas diferentes tentativas do governo atual
de levar adiante a expansão irrestrita do capitalismo, removendo todas as
barreiras sociais, e tentando remover as instituições democráticas, como o STF
e o Congresso. Entretanto, adverte, remover as “trincheiras democráticas”, “nas
circunstâncias do mundo atual, não é fácil, ainda mais sem a reeleição de
Trump”.
Enquanto a sociedade brasileira agoniza diante da crise
pandêmica, do aumento do desemprego e da falta de perspectivas para o futuro,
no meio político busca-se um "replantio", ou seja, restabelecer
"caminhos já percorridos, como o da Frente Ampla, que fazem com que o
diverso possa se encontrar, independentemente das suas diferenças". A
questão, contudo, é ver se a iniciativa "frutifica".
Segundo ele, apesar de não ter surgido uma liderança política
que possa fazer frente ao fascismo tabajara do governo Bolsonaro, iniciativas
populares de auto-organização se fortaleceram durante a pandemia nas periferias
carioca e paulista. “As coisas estão fermentando, aparecendo, mas é claro
que no mundo da política são necessárias outras qualidades: é preciso de
alguém com perfil de estadista, que pense a partir da ciência, mas tenha
a arte de realizar as suas concepções, que seja ouvido, capaz de ter audiência.
Isso está nos faltando, mas vai aparecer. Sempre aparecem esses personagens”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line,
Werneck Vianna analisa os últimos acontecimentos da conjuntura nacional, como a
prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, preso na
última quinta-feira. Queiroz, comenta, “faz parte do tipo de gente que veio
com este governo: a ralé, o mundo das milícias. Deixamos a sociedade
tão vulnerável, que ela não só foi apropriada por essa gente que está no
governo, como criamos espaço para a penetração das milícias no meio popular”.
Apesar do contexto atual, o sociólogo acredita que a crise
pandêmica poderá gerar mudanças significativas no Brasil e no mundo. “A ideia
de cooperação, de uma sociedade mais solidária, igual, está se impondo por
força das próprias circunstâncias que vivemos hoje. Os limites da sociedade
conhecida já foram dados. Vivemos o fim de uma época e estamos no limiar de
outra, que já nasce com algumas percepções fortes: cooperação, igualdade,
solidariedade, ciência”, conclui.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade
Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP,
é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo
no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e
das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia
e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu
pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck
Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de
Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos
gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é
composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura
brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na
página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O seu diagnóstico é o de que a democracia está em risco
não somente por causa do governo, mas porque a sociedade adoeceu, perdeu-se de
si mesma. Desde quando estamos doentes política e socialmente?
Luiz Werneck Vianna – Tudo que acontece hoje só foi
possível porque a sociedade adoeceu antes e permitiu a vitória dos que estão
aí. Eles não chegaram ao poder pelo golpe, mas pelo voto. Como os anos dos
governos petistas não favoreceram a organização da vida popular, não
favoreceram a organização da cidadania, a política ficou desamparada de
sustentação cidadã. Se acumulou, na sociedade, por força disso, um tipo de
comportamento em setores sociais bem determinados – que chamo de ralé de
camadas médias –, dirigido inteiramente ao consumo, ao culto idiota às
personalidades midiáticas independentemente dos seus valores. Criou-se uma
personalidade em torno da Sara Giromini, que usa o codinome Sara Winter, nome
de uma espiã inglesa em favor do nazismo. Não importa, para eles, a
história; importa a exibição, o espetáculo e eles tiveram uma votação
impressionante nas últimas eleições. Quantos deles estão nas casas
parlamentares? Pessoas que vieram de lugares inexpressivos da vida social
conquistaram posições e estão aí hoje, emperrando a resistência democrática
no Congresso.
A criação de um abismo
Nada do que nos ocorreu foi fruto de um acaso; não havia
nenhuma fatalidade que nos empurrasse para essa situação. Nós criamos este
abismo diante dos nossos pés com o tipo de política que praticamos nos últimos
tempos. Não quero arrumar culpados, mas fomos todos que perdemos uma
herança importantíssima; deixamos que se dilapidasse diante dos nossos olhos a
Carta de 88, que é de inspiração social-democrata – é débil, mas é uma
social-democracia e tinha possibilidade de desenvolvimento futuro. Para que
isso ocorresse, precisávamos ter entendido que democracia política e democracia
social deveriam andar juntas. No entanto, a partir de determinado
momento, a esquerda hegemônica, no caso o PT, conduziu o tema do social sem
política, sem amparar o social em instituições democráticas e sem fortalecer a
democracia.
Um caso exemplar disso foi a não subscrição por parte do PT
da Constituição de 88.
A distância que o partido toma – o partido representava naquele momento a questão
social na sua forma mais visível no Brasil – e o fato de não ter assinado a
Carta é muito sintomático deste posicionamento de que ele iria procurar avançar
na agenda social por fora das instituições, e isso foi debilitando a
democracia entre nós. Inclusive, porque – eu tenho prurido em falar
assim e no artigo eu falo em “blasfêmia” – foi um partido de esquerda com
representação no mundo sindical, que é o coração pulsante da esquerda. O PT
fez isso por falta de orientação e, quando acabou conquistando o governo,
quis fazer dele um instrumento do seu programa da questão social com
independência das instituições, sem organizar, sem atentar para a distância
que a cidadania tomava das instituições, do Estado, porque tudo vinha de
cima para baixo. Isso foi tornando a democracia debilitada.
Ralé de novo tipo
A derrota que tivemos é eleitoral e não um golpe como em 64.
E mais: não foi só a eleição presidencial, foi um tsunami de votos de uma
ralé de novo tipo que surgiu na política brasileira sem que nos déssemos conta
disso.
Nós perdemos, mas não perdemos tudo. Uma parte da nossa
herança democrática conquistada em 88 ficou e algumas instituições também.
Essas instituições ainda têm a memória do que se conquistou naquele tempo.
Como o governo que aí está é
um governo que vem realizar um programa há muito tempo ansiado e esperado pela alta
burguesia brasileira, de reformar a sociedade de uma forma tal que ela se
tornasse mais compatível, propensa e favorável à penetração do capitalismo
em todas as suas instâncias, as instituições aparecem como um obstáculo
a ser removido.
A marca neoliberal da política econômica foi anunciada
e atraiu setores muito poderosos da elite econômica, especialmente do
capitalismo agrário, do agronegócio e do setor financeiro do capitalismo
brasileiro, para que agora não se tenha obstáculos para avançar: sem legislação
trabalhista, sem legislação social, sem a social-democracia que trava e obriga
a certas concessões.
É por isso que se quer entrar em terras indígenas e fazer
delas mineração, trazer os cassinos para as grandes cidades, fazer com que o
capital na sua forma pura venha a prevalecer em todas as instâncias da vida
social. Este foi o projeto. Este projeto, contudo, não quer nenhum obstáculo
pela frente, como as instituições herdadas da democracia anterior. A luta,
então, se estabeleceu: remova-se o Supremo Tribunal Federal (STF), remova-se o
Congresso, para fazer da sociedade brasileira um território limpo e acessível
para a extensão do capital onde for possível. O capital quer tornar a
sociedade totalmente domesticada e as instituições têm recusado isso com
energia, criatividade, coragem, mas elas não têm instrumentos de defesa
poderosos, salvo os da ordem moral. Então, elas foram sitiadas e
pretende-se ou maculá-las ou erradicá-las, e estamos nesta disputa em que o
governo avança contra as instituições e as instituições se defendem. Por ora,
graças a Deus, a defesa tem sido efetiva. A sociedade está em crise, não há um
desenlace para isso e não podemos acumular forças nas ruas por causa da
pandemia; nós temos que defender nossas vidas. E com esta circunstância, o
apoio externo que poderia vir às instituições fica fraco. Até agora a linha de
resistência tem sido efetiva. Mas até quando?
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL |
IHU On-Line –
Quais instituições reagem e lideram a resistência?
Luiz Werneck Vianna – O Judiciário tem posto uma
linha de resistência segura e tem sido uma trincheira importante das conquistas
de 88. Até quando, não sabemos. Estamos numa guerra de posições, mas a
essa altura, este governo tenta transformar essa guerra de posição em guerra
de movimento, isto é, avançar sobre o nosso sistema defensivo a fim de
destruí-lo.
O que se diz, como ficou claro na reunião ministerial de 22
de abril, é que se quer aproveitar desta pandemia para avançar com garimpo, com
distribuição de terras, com a expansão do agronegócio para colocar vaca no
lugar da mata.
IHU On-Line –
Está claro como as Forças Armadas estão se posicionando nesta crise ou por que
não se posicionam?
Luiz Werneck Vianna – Não tenho informações confiáveis do
que se passa na cabeça da oficialidade que está nos quartéis. A que está nos
palácios, sabemos, porque eles demonstram as iniciativas que o governo está
tomando. Agora, irão eles abandonar as instituições e ir para uma ditadura
aberta? Será que toparão isso? É um mundo de risco para eles também.
Tendo a achar que não. Há um sentimento de autodefesa da corporação diante
desses riscos, das circunstâncias em que o mundo se encontra. O STF encontrou
uma linha de resistência sóbria, firme e segura. No limite, que removam o STF e
corram esse risco. O mundo não está favorável para isto e Trump não deve
ganhar as eleições.
IHU On-Line – Por
que a democracia não é um valor incondicional na sociedade brasileira?
Luiz Werneck Vianna – Porque a nossa sociedade formou-se
à margem da vida democrática. Como nós nos criamos enquanto Estado, nação e
sociedade independente? Foi por uma revolução social libertadora? Não, foi
por um movimento de cúpulas: o herdeiro da monarquia se torna imperador no
Brasil. Como chegamos à República? Foi por um movimento popular visando
à participação? Não, foi por um golpe militar. Como chegamos à
abolição? Bom, com um certo movimento popular; o movimento abolicionista
foi importante, mas foi por um ato imperial da princesa Isabel. Não
houve um embate que fizesse com que setores mais reacionários fossem
deslocados. O que havia de mais reacionário na sociedade imperial, com a
abolição, não foi muito afetado. Portanto, a nossa tradição de
formação histórica é uma tradição conservadora, quando não reacionária.
Como fizemos a nossa revolução burguesa? Por cima, com Vargas, no Estado Novo.
Como se deu todo o processo da modernização? Se deu com alguns institutos
liberais funcionando, mas com a Lei de Segurança Nacional do Estado Novo ainda
vigendo, com a concepção reacionária de ordem social, de repressão à vida
popular nos anos 1950 e 1960.
Nos anos 1960, o cenário começa a mudar – aí deu pânico na
direita brasileira –
no terreno mais sensível, que é o campo, a vida agrária, de onde nós saímos, de
onde começamos a nossa história, com as Ligas camponesas. A organização
da vida popular no campo se tornou uma ameaça e foi preciso interrompê-la para
manter o padrão conservador, reacionário, que é a nossa tradição. O golpe de
1964 vem nessa linha.
Temos uma história pesada de
autoritarismo, de domínio burguês autoritário. Não conhecemos uma
revolução democrática burguesa;
a nossa revolução foi por
cima, pelo Estado.
Quer dizer, os heróis empresários brasileiros tiveram um
destino muito triste: Monteiro Lobato chegou a ser preso pelo Estado Novo por
suas lutas em torno do petróleo e do aço; o projeto dele era se tornar um Henry
Ford do Brasil. Não tivemos um Henry Ford vindo da sociedade, como nos Estados
Unidos. As mudanças ocorreram via Estado e isso deixou marcas de
autoritarismo muito profundas; enfrentá-las demandava uma inteligência que
não tivemos, não soubemos ter. Cavamos um abismo aos nossos pés, como diz a
música do Cartola. E agora, como sair disso? Estamos tentando, restabelecendo
caminhos já percorridos, como o da Frente Ampla, que fazem com que o
diverso possa se encontrar, independentemente das suas diferenças. Tudo isso é
um replantio. Vamos ver se frutifica.
IHU On-Line – Direita,
centro e esquerda vão conseguir vencer as diferenças em prol de um pacto para deter
a extrema direita, como alguns sugerem?
Luiz Werneck Vianna – Diante da ameaça do fascismo –
porque é disso que se trata – devemos procurar uma unidade de todos.
Agora, isso é difícil, porque a nossa sociedade não é muito sábia, não
tem história de sabedoria. Mas estamos tentando.
Isso vai depender da política, que depende da ciência e da
arte também. Vai depender do artista, de um político que seja senhor da arte
de fazer esta composição difícil. No momento, este artista não está
disponível, não temos um Ulysses Guimarães, um Tancredo Neves, que eram
artistas desta arte de fazer política, de tecer, a partir das ideias das
pessoas, uma coisa comum. Pode ser que esteja aparecendo aí e ainda não vimos.
Tem muita movimentação importante na nossa sociedade, inclusive nos setores
subalternos, com novos intelectuais vivendo no mundo subalterno, como o Emicida,
que é músico, um intelectual finíssimo, um jovem. Conheço-o, apenas, da
televisão, de entrevistas, e me impressiona muito. Como ele, há muitos e
muitos outros que estão se apresentando agora.
Vida popular
Na vida popular há instituições, como a da organização
popular de Paraisópolis, em São Paulo, que conseguiu estabelecer
estratégias de defesa contra a pandemia. Ela é muito interessante como
auto-organização. Está havendo movimentos positivos na crise atual que estamos
vivendo. Além de Paraisópolis, há uma série de outros casos. Na Rocinha,
que é uma favela importante no Rio de Janeiro, há um movimento de
auto-organização muito interessante. As coisas estão fermentando, aparecendo,
mas é claro que no mundo da política são necessárias outras qualidades: é
preciso de alguém com perfil de estadista, que pense a partir da ciência, mas
tenha a arte de realizar as suas concepções, que seja ouvido, capaz de ter
audiência. Isso está nos faltando, mas vai aparecer. Sempre aparecem esses
personagens.
IHU On-Line – O
senhor tem chamado o governo de “fascismo tabajara”. Mesmo sendo tabajara, ele representa ameaças
à democracia? Há algo comparável a este momento na história do Brasil?
Luiz Werneck Vianna – Que é fascista, não tenho dúvidas. É tabajara porque as circunstâncias
são as nossas, brasileiras, daqui deste pedaço escondido do mundo, que é o
Brasil. O fascismo aparece como um projeto bem mais sofisticado. Não dá para
esquecer que no nazismo alemão, [Martin] Heidegger aderiu, Carl Schmitt aderiu;
não foi um fenômeno com a ausência do grande pensamento, de grandes
intelectuais. Aqui temos quadros de pobres personagens e, por isso,
tabajara. Mas é fascismo.
O próprio integralismo no Brasil era um movimento de grandes
intelectuais. Para mencionar alguns que me ocorrem agora: Santiago Dantas e
Helder Câmara. Eles são homens que se aproximaram do liberalismo depois, mas
que tiveram este momento de adesão ao fascismo. Miguel Reale, cujo filho está
aí e é um liberal importante, também se tornou um liberal no final da vida.
Afora a penetração do integralismo nos círculos militares, especialmente na
Marinha. Portanto, é inteiramente distinto do que está ocorrendo aqui. É um
movimento de pessoas muito rudes, toscas, despreparadas. Algumas, pouco
alfabetizadas e dependentes do trumpismo. Essa armação de política externa
desamparada, com Trump à frente, está sob ameaça. Trump, a esta altura,
dificilmente vencerá as eleições e, sem Trump, o que será deles?
Eles precisam remover as trincheiras, mas removê-las nas
circunstâncias do mundo atual não é fácil. Como o Brasil vai reagir à
opinião pública internacional em relação a isso? Ainda mais que vivemos de
vender mercadorias para fora. E se nossos compradores começarem a
enjoar de nós e não quiserem mais comprar as nossas mercadorias? E se a China
resolve diversificar os seus vendedores, diminuindo ou rebaixando a presença
brasileira no fluxo comercial? Como vai ficar se a União Europeia fizer a mesma
coisa? São ideias muito anacrônicas, em um momento em que a sociedade humana
enfrenta a pandemia.
A pandemia trouxe o tema da ciência como um dos mais
relevantes da cena contemporânea, porque esta pandemia põe no horizonte outras que poderão
vir. A sociedade humana precisa se defender e só pode se defender com a
ciência, e ciência só se faz com liberdade.
IHU On-Line – A
prisão de Fabrício Queiroz poderá reorganizar a cena política? Qual é o
significado político dessa prisão para o governo, especialmente para o
presidente Bolsonaro?
Luiz Werneck Vianna – Faz parte do tipo de gente que veio
com este governo: a ralé, o mundo das milícias. Deixamos a sociedade tão
vulnerável, que ela não só foi apropriada por essa gente que está no governo,
como criamos espaço para a penetração das milícias no meio popular.
Qual é a presença
real da Igreja Católica na vida popular, nas favelas cariocas, que eu conheço
relativamente bem? Muito pequena. Qual
foi a presença do PT na vida periférica e das favelas? Muito pequena.
Deixamos espaço para que esses aventureiros armados ocupassem
essas posições e se
tornassem presentes nos processos eleitorais, com candidatos, apoio,
financiamento. Eles controlam setores das classes periféricas. Isso tem que ser
combatido e a sociedade começou a acordar para isso.
A sociedade está muito doente. Está doente com a pandemia e
socialmente doente; precisa se curar. Ela está em processo de cura, vamos ver
se dá tempo. O mundo está curando suas feridas numa direção muito boa: da
paz, da ciência, da defesa do meio ambiente. Basta ver o que houve na
juventude americana há duas semanas. Isso é de uma importância fundamental.
Queiroz é um homem das milícias. O que pode fazer o Queiroz? A
partir da prisão dele, pode-se puxar um fio que irá expor as vísceras das
milícias, se ele quiser falar.
IHU On-Line –
Uma delação premiada seria um caminho?
Luiz Werneck Vianna – Ele pode inventar isso e aí vai tudo
embora... sei lá.
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ABRAHAM WEINTRAUB |
IHU On-Line – Qual
é o significado da aproximação do governo com o Centrão?
Luiz Werneck Vianna – É uma tentativa de sair das
dificuldades em que ele se encontra pela política, evitando o caminho do golpe,
que é um caminho arriscadíssimo para eles. O Centrão é a tentativa de encontrar
um caminho na política, o que qualquer estrategista diria que é o mais
aconselhável para eles porque, inclusive, no horizonte está a derrota de Trump.
Se há alguma lucidez entre eles, o caminho é a política, é encontrar
um caminho para levar este governo até o seu término. A saída de [Abraham]
Weintraub, que é um destrambelhado, fortalece essa possibilidade. Vamos ver se
esse governo aprende a fazer política.
Na opinião pública, Bolsonaro já perdeu. Não dá para saber ainda em que
medida perdeu, porque a sociedade está assustada em suas casas, com medo da
pandemia, com razão.
IHU On-Line – As
recentes manifestações que ocorreram contra o presidente indicam alguma
novidade?
Luiz Werneck Vianna – Aqui as manifestações foram
pouquinhas; na América [Estados Unidos] foi todo mundo. Elas foram
positivas, apesar de darem apenas uma parte do que poderiam ser se não tivesse
a pandemia. As manifestações de São Paulo foram expressivas, algumas no Rio
de Janeiro também. A sociedade adoeceu, mas não toda ela; uma parte
continua resistindo, continua com valores. Uma parte da Igreja Católica
adoeceu, aquela que foi fazer acordos com o governo para ter recursos para
televisão. Mas há setores dentro da Igreja que não estão doentes, lutam
e resistem.
Foram anos de uma sociedade formada a partir da dominação
autoritária, da escravidão. Queríamos ter o que como resultado? Essa milícia
que está aí. Estão tentando fazer milagres de cauterizar as feridas, de
encontrar um caminho.
IHU On-Line – Como
será o Brasil depois da pandemia?
Luiz Werneck Vianna – Depois da pandemia, vai ser um mundo
bom (risos). Não gosto de pensar nisso; é um futuro tão desejado que é
melhor deixar ele se impor, se ele se impuser. Esperamos que isso termine para
que possamos encontrar os amigos, os filhos, os netos. A sociedade que vai
sair disso será melhor.
IHU On-Line – Mesmo
com o aumento da pobreza, da crise econômica?
Luiz Werneck Vianna – A economia sempre se resolve.
IHU On-Line – Os
intelectuais estão refletindo sobre o momento que estamos vivendo e fazendo
projeções de como será o futuro pós-pandemia. Como o senhor tem pensado sobre
este momento, sobre os impactos deste período para a sociedade? Que pensamentos
a pandemia de covid-19 tem lhe suscitado?
Luiz Werneck Vianna – O planeta está também sob ameaça na
questão ambiental, das pandemias, então, a ideia de cooperação, de uma
sociedade mais solidária, igual, está se impondo por força das próprias
circunstâncias que vivemos hoje. Os limites da sociedade conhecida já foram
dados. Vivemos o fim de uma época e estamos no limiar de outra, que já nasce
com algumas percepções fortes: cooperação, igualdade, solidariedade, ciência. O
nosso planeta é muito pequeno e não pode mais ser depredado pela ação dos
homens como foi e vem sendo feito.
Há um sentimento de autodefesa da espécie que vem se
manifestando a partir de seus intelectuais, da sociedade, das grandes
organizações, dos países democráticos, da igreja, na ação do papa Francisco,
muito especialmente, que é o horizonte com o qual vamos nos defrontar – aqueles
que conseguirem sair desta pandemia vivos. Espero ser um deles; mas, enfim, eu
sou do grupo de risco.
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