Ama teu inimigo
Mudando
atitudes com atitude
Daniel
Martins de Barros
Psiquiatra
Os afetos são
contagiosos.
Bom humor gera bom
humor.
Tristeza gera
tristeza.
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DANIEL MARTINS DE BARROS |
Antes da quarentena, minha filha andava às voltas com uma nova
amiga na escola a quem estava chamando repetidamente de chata.
Segundo ela, a garota, de seis anos, provocava todo mundo, mentia, criava caso.
Infelizmente, com a suspensão da aula não tivemos tempo de observar o resultado
de um experimento que propus a ela. Apostei que se ela começasse a tratar
bem a garota, se aproximasse dela, se brincassem juntas no intervalo, ela
deixaria de ser chata.
A situação é óbvia para quem está de fora: nova na escola, a
garota se sentiu excluída, experimentando emoções negativas. Reagindo de acordo
afastou as outras crianças, sentindo-se mais rejeitada, tornando-se mais
hostil. Ela não é chata. Está chata.
Contei para minha filha que fiz essa experiência já
adulto: uma coisa muito parecida aconteceu num grupo de amigos. Uma das
pessoas começou a ficar irritada, foi se isolando, arrumando problemas, até um
ponto que parecia insustentável. Propus a outros colegas que começássemos a
tratá-la bem independentemente da forma como fôssemos tratados. Mesmo
céticos, muitos aderiram e, em questão de dias, o clima entre as pessoas foi
transformado.
Não é mágica. Os
afetos são contagiosos. Bom humor gera bom humor. Tristeza
gera tristeza. E com a hostilidade é ainda pior: não é apenas contagiosa, é
também uma provocação para reagirmos de forma também hostil numa tentativa de
defesa, o que só aumenta a agressividade do outro lado.
Decidir ir contra nossos instintos e agir de forma oposta, pagando
o mal com o bem, tem o poder de quebrar essa cadeia. É uma forma de
libertação: os envolvidos tornam-se livres para não agredir, pois 99% da
humanidade não irá tratar mal quem as trata bem (com aquele 1% de
psicopatas a estratégia pode não dar certo. Mas como não sabemos em princípio
quem são eles, normalmente vale a tentativa. Meu colega certamente não era (nem
a amiguinha de minha filha).
![O homem pode escolher entre fazer o bem ou o mal?](https://img.cancaonova.com/cnimages/canais/uploads/sites/6/2006/04/formacao_o-homem-pode-escolher-entre-fazer-o-bem-ou-o-mal-artigo.jpg)
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo por
ocasião de seus 90 anos, a cantora Elza Soares fez uma observação interessante
sobre o momento. “O Brasil sempre foi um país do amor, e as pessoas estão se
esquecendo disso. De onde pode ter saído tanto ódio?”. E completou:
“Quando soubermos que não somos nada,
e que somos todos iguais,
seremos mais leves, teremos mais
amor e voltaremos a ter esperança”.
É uma boa pergunta. E uma boa solução.
De onde saiu tanto ódio? Não sei se é possível localizar precisamente a
origem. Nem se é útil: depois que um deu um tapa na cara do outro e o outro
passou rasteira no um, descobrir quem começou não ajuda a desfazer a lógica
retributiva que toma conta das pessoas. Só quando compreendermos plenamente que
de olho por olho todos acabarão cegos, como diz o ditado, fica claro que o
amor de fato é a única saída.
É difícil falar em amor atualmente. Passeatas contra e
pró-governo colocam frente a frente pessoas tão antagônicas que o ódio parece
inevitável. Ameaças de morte pululam nas redes sociais entre opositores, como
se a aniquilação do outro lado fosse a única solução para o dissenso. São
inimigos declarados, entrincheirados. Seria utópico esperar mais amor? Pode
ser, mas não impossível. Muito menos irracional. Ao contrário, amar seu
inimigo é provavelmente o cálculo mais racional que podemos fazer.
Obviamente não se trata de ter apreço ou simpatia por pessoas que defendem uma
visão de mundo em tudo oposta à nossa. Trata-se só de se recusar a ir para o
lado de lá.
O lado do ódio, da morte,
do desprezo pelo outro é o lado que diminui a vida,
que apequena a humanidade,
que nos reduz a nossa animalidade instintiva.
Se cedemos ao ódio a nossos inimigos, eles vencem; roubam de
nós o que temos de mais precioso: a possibilidade de transcender nossa natureza
em direção a um patamar mais sublime, aquele que leva o mundo para estágios
mais evoluídos da consciência humana. Desejar sua morte é ir contra o
movimento que nos fez abandonar sacrifícios humanos, escravidão, discriminação
legalizada.
Pode parecer difícil. Mas pense na alternativa: até aqui,
qual bem nos fez odiar nossos inimigos?
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