Uma visão lúcida do que acontece
“Nunca
vi maior fragilidade geral do Estado brasileiro como estou vendo neste momento”
Jorge
Vasconcellos
Entrevista
com Roberto Romano
Filósofo,
professor de Ética e Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
escritor
Os recentes arroubos autoritários do
presidente Jair Bolsonaro sinalizam que ele “não está controlando a si mesmo
nem a máquina do Executivo”
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ROBERTO ROMANO Filósofo - Unicamp |
O filósofo
Roberto Romano, 74 anos, professor de ética e política da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), afirma, em entrevista ao Correio Braziliense,
que os recentes arroubos autoritários do presidente Jair Bolsonaro sinalizam
que ele “não está controlando a si mesmo nem a máquina do Executivo”, enquanto
o Estado brasileiro amarga uma fragilidade jamais vista.
O docente, que,
antes mesmo da posse do atual governo, já previa tempos de “muita tensão
entre os Poderes e setores da sociedade” com Bolsonaro na presidência,
frisa que cada vez que um governante se apresenta como fonte da lei, da força e
da ordem econômica, ele fragiliza ainda mais as instituições.
Roberto
Romano, que também havia previsto que Sérgio Moro e Bolsonaro poderiam se
tornar adversários, agora vislumbra que o presidente sairá bem menor da
crise do novo coronavírus, com prejuízos para seu projeto de reeleição.
Segundo o docente, o desrespeito do presidente às normas da Organização Mundial
da Saúde (OMS) e o menosprezo ao potencial devastador da covid-19 serão
fortemente cobrados, dentro e fora do país.
Eis a
entrevista.
Em
novembro de 2018, logo após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, o senhor
fez algumas previsões sobre o futuro presidente, em entrevista ao Correio.
Disse que se ele governasse apenas para seus seguidores, e não para todos os
brasileiros, teria prejuízos políticos, como o isolamento. Isso se confirmou?
Roberto
Romano: Eu acho que sim, porque, veja, não era apenas uma questão de
leitura do que viria, mas uma leitura do passado. Quem acompanhou a vida
política do Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados e desde o período que ele
pertencia ao Exército, nota que ele tem traços muito graves daquilo que o Theodor
Adorno chamaria de personalidade autoritária. Ele nunca se deu ao
trabalho de ter um trato parlamentar no sentido mais clássico da palavra, de
agregar, de votar, de discutir. Sempre foi peremptório, passando palavras de
ordem, não aceitando o contraditório, o que é complicadíssimo na vida
parlamentar.
E, quando
foi eleito, certamente aquele episódio do atentado contra ele criou uma
expectativa muito grande, e isso dava para notar naquele momento, de certo
messianismo. Isso foi exasperado pelos setores chamados evangélicos, que o
apoiam, e que, inclusive, fizeram trocadilho com seu nome, o Messias, e tudo
mais. Somado a um tipo de personalidade que não pergunta, não dialoga, não
discute e não propõe, além do fervor religioso, só poderia ter um governo
de cunho autoritário.
O
presidente, cada vez mais isolado politicamente, está concedendo cargos
importantes ao Centrão em troca de apoio no Congresso, o chamado toma lá, dá
cá, que ele sempre criticou. Por que ele chegou a esse ponto?
Roberto
Romano: Em primeiro lugar, é uma situação que piorou muito: no tempo
do Jânio Quadros, você tinha partidos fortes, como o PSD e o PTB, que haviam
sido organizados por Getúlio Vargas e tinham uma estrutura muito forte,
vertical, que atendiam a determinados setores de classe. O PSD atendia à classe
média alta; e o PTB aos interesses dos operários. Esses partidos tinham como
inimigo a UDN, que era um partido forte também, que reunia delegados liberais
e, ao mesmo tempo, recursos econômicos bastante elevados. Então, havia partidos
políticos. No caso do Fernando Collor de Mello, ainda havia partidos políticos.
O país tinha acabado de sair de um regime ditatorial, o MDB estava coeso ainda,
não tinha perdido a essência de partido de oposição à ditadura; e a Arena tinha
se transformado no PFL.
Hoje, os partidos se dissolveram de
tal modo que você não tem mais nenhum setor do Congresso que reúna políticos
capazes de propor um projeto e um programa para o Brasil alternativo ao
do Executivo.
E aí o
problema é muito grave porque você não vê mais possibilidade de diálogo.
Se o presidente não tem diálogo com o MDB, se diálogo com a oposição ele não
tem, pra onde ele vai se virar? Pequenos partidos que se formaram nos últimos
tempos, como o Novo, romperam com ele. A única opção que lhe coube
foi voltar para aquele clube em que ele trabalhava. Ele viveu sempre dentro do Centrão.
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Bolsonaro jamais mudou, só disfarçou bem o que sempre foi |
O
presidente está colhendo o que plantou?
Roberto
Romano: Eu acho que ele está pagando um preço altíssimo. Fora
aqueles 25% que são seguidores incondicionais dele, está havendo uma
desidratação do seu eleitorado justamente por causa desse tipo de coisa. Em
primeiro lugar, ele comprou uma estrela de primeira grandeza do moralismo
nacional, o Sérgio Moro. Ele era, digamos assim, um salvo conduto para vastos
setores da classe média brasileira. Quem acompanhou a vida de Moro sabia que
ele não estava lá pelos belos olhos do Bolsonaro.
Na
entrevista de 2018, o senhor considerou “um golpe de mestre” o convite para
Moro chefiar o Ministério da Justiça, mas, ao mesmo tempo, o senhor anteviu que
o ex-juiz poderia se tornar um adversário do presidente, em razão do prestígio
adquirido
com
a Lava-Jato.
Roberto
Romano: O presidente perdeu esse apoio grande. Significa que aquela
folha de parreira de moralidade está rachada no meio: uma parte ficou com o
Sérgio Moro; e a outra, com os generais, que ainda mantêm certo padrão de
decoro. E aí o presidente caiu num desespero absoluto. Eu acho que essas
gritarias que ele promove, esses “bastas”, “chegou ao limite”, esses
ataques frequentes, o que vai ocorrer hoje (possíveis manifestações), isso
aí é prova de que ele não está controlando a si mesmo nem controlando a máquina
do Executivo.
O
senhor também previu tempos de “muita tensão entre os Poderes e setores da
sociedade” com Bolsonaro na presidência, em razão de seu perfil autoritário.
Mais uma confirmação?
Roberto
Romano: Infelizmente, com toda tristeza do mundo, sim. Eu preferia
que ele fosse um governante conservador, mesmo reacionário, mas que não
entrasse, que não enveredasse por esse caminho. O problema não é o Bolsonaro; o
problema não é o ministro Alexandre (de Moraes, do STF). Isso é um ponto em que
eu divirjo muito dos meus colegas e dos seus colegas jornalistas. Quando eles
terminam uma exposição de doutorado, eles dizem “as instituições estão
funcionando normalmente”.
As
instituições brasileiras nunca funcionaram normalmente. O
imperador, para começar, já deu um golpe, já fechou a Câmara.
Essa tradição é muito antiga no Brasil, você não
ter instituições
que se tornem sólidas, maduras.
Ao
contrário do que acontece nos Estados Unidos da América, com todo o pandemônio
criado pelo efeito Trump, você ainda tem as instituições funcionando
permanentemente e de modo correto. Assim também ocorre na França, na Alemanha,
que passou pelo nazismo.
No Brasil,
isso nunca houve. Cada vez que um governante tenta a aventura de se
transformar na grande fonte da lei, da força e de toda a ordem econômica, etc.,
ele fragiliza ainda mais as instituições. Então eu acho que, infelizmente,
nós caminhamos para uma fragilidade enorme, e não é questão de usar um cabo
e um jipe, não; é um desgaste interno. Você vê uma espécie de implosão do
Estado brasileiro. E nessa implosão não se vê muitas saídas.
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PRAÇA DOS TRÊS PODERES - BRASÍLIA - DF À esquerda, o Palácio do Planalto (Poder Executivo), ao centro, o Congresso Nacional (Poder Legislativo), à direita, o Supremo Tribunal Federal (Poder Judiciário) |
Um
dos componentes da crise é a insistência do presidente de, sob o argumento de
preservar a economia, acabar com o isolamento social adotado pelos estados para
frear a pandemia. E muitos seguidores do presidente têm saído às ruas, se
expondo ao coronavírus, enquanto as mortes por covid-19 crescem
exponencialmente no país. O que pensa disso?
Roberto
Romano: Os promotores públicos já estão advertindo o governo paulista
de que é preciso tomar providências contra os saques, contra as rebeliões.
Não é palavra de Cassandra. Os dirigentes militares deveriam estar atentíssimos
a isso. O presidente incentiva os seus seguidores a assumirem uma atitude
altamente perigosa contra a imprensa, contra as outras instituições; ele é
uma espécie de team leader, ele puxa o coro, ele comanda e puxa o coro.
Olha, se não tivéssemos essa pandemia, nós estaríamos em um pandemônio. Imagine
todos aqueles que são ofendidos, furiosos com os adeptos dele andando pelas
ruas.
Alguns
generais aposentados que o apoiam falam que é possível até uma guerra civil.
Eu não acho que isso seja possível tão imediatamente, mas se continua esse
tipo de coisa, é perfeitamente possível. O Brasil não é jejuno em guerra
civil. Na história do Brasil, de 1500 até hoje, você vê que, por exemplo, o
século XIX foi fértil em rebeliões, em insurreições, justamente aplacadas pelo
exército nacional.
Em
1999, o deputado Jair Bolsonaro disse que, para o Brasil ter jeito, precisaria
haver uma guerra civil que matasse 30 mil pessoas. Na reunião ministerial de 22
de abril, ele afirmou que está armando a população. Seria uma ideia fixa do
presidente?
Roberto
Romano: Primeiro, esse tipo de comentário sobre o fato de o Brasil
não ter tido uma guerra e que, portanto, precisaria ter uma revolução na qual
morresse muita gente para regenerar, isso é uma conversa da extrema-direita
que vem do século 19. Nos anos 1960, essa ideia era bastante veiculada na
sociedade e nos órgãos repressivos do Estado ditatorial. Então, se você fizer
um levantamento, verá que isso já é definido como ideologia sub-reptícia.
E é falso, porque o sangue aqui no Brasil já jorrou para tudo que é lado.
A história
brasileira não é de um povoamento pacífico; pelo contrário, os bandeirantes
eram extremamente armados, violentos. Ao longo do período colonial, houve
levantamentos, guerras contra os holandeses, contra os franceses; houve guerra
com os índios. Houve, no século XIX, como eu dizia, várias e várias
insurreições, que buscaram a separação do Estado e outros objetivos.
A
democracia brasileira está em risco?
Roberto
Romano: Esse é um ponto que eu gosto sempre de sublinhar. Veja, a
democracia é um regime que, desde o seu nascimento, na Grécia, está sempre em
risco. Porque não existe nenhum regime político estável. Isso é um plano,
um paradigma, uma procura. Como a sociedade humana é uma sociedade inquieta,
cheia de interesses contraditórios, violenta, muitas vezes, cheia de
preconceitos, desde a Grécia você tinha uma instabilidade tremenda.
Vem daí a
preocupação dos filósofos, dos puristas gregos de fazer propostas de
constituições para a Grécia que, digamos, remediassem os problemas da
democracia. E são muitos os problemas da democracia grega. Então, a
democracia sempre estará em xeque, em perigo. A diferença é que quando você
percebe que ela está em perigo, você faz uma espécie de radiografia para ver em
que pontos ela está piorando, em que ponto ela está sendo doentia e não
saudável.
O
presidente Bolsonaro sairá maior ou menor da pandemia?
Roberto
Romano: Ele vai sair menor. Nem ele nem seus assessores estão
contando com isso, mas acontece que, por menor que seja o papel do Brasil na
cena internacional, hoje o país é visto com olhos muito críticos por todos os
Estados do mundo. Você vai ter problemas de ordem de autoridade interna e
externa. Ilude-se a pessoa que imagina que, chegando ao ápice do Estado
nacional, não terá de enfrentar outros Estados e o juízo de outros Estados. E a
performance de Bolsonaro tem sido tremendamente pobre.
Nos
primeiros momentos dessa pandemia, ele se limitou a imitar Donald Trump, e de
uma forma caricatural. E Donald Trump não é propriamente um exemplo de grande
estadista, de grande amigo da ciência. Ele próprio está tendo problemas para se
explicar sobre o avanço da pandemia nos Estados Unidos. Nós não sabemos, aí eu
rezo para Deus para que o coronavírus não seja tão mortal, mas nós não
sabemos quantos mil morrerão no Brasil.
E, certamente, as frases do presidente, como “isso
é uma gripezinha”,
serão cobradas nacional e internacionalmente.
Eu vejo,
também, que naquela base de 25% que o apoiam tem tido muita desidratação.
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MANIFESTAÇÃO EM DEFESA DA DEMOCRACIA São Paulo, avenida Paulista - Domingo, 31 de maio de 2020 |
Bolsonaro
tem contra si mais de 30 pedidos de impeachment protocolados na Câmara. Ele
completará o mandato?
Roberto
Romano: Eu diria para você que não sei o que vai acontecer com todas
as instituições brasileiras daqui a 30 dias. Olha, eu tenho 74 anos, passei
pela ditadura, passei pelos regimes supostamente civis, enfim, vi muita coisa e
conheço muita coisa da história do Brasil. Eu digo a você que nunca vi maior
fragilidade geral do Estado brasileiro como estou vendo neste momento:
* Se ele
termina o mandato ou não;
* se o STF
consegue impor a sua autoridade ou não;
* se a
Câmara dos Deputados e o Senado conseguem encontrar um modus operandi
que tenha, pelo menos, a aparência de democracia ou não;
* se o
Exército vai atender ao apelo da legalidade e da Constituição ou não;
tudo isso
para mim é uma incógnita.
Respostas
muito rápidas que podem ser dadas, a meu ver, demandam muita reflexão. Volto
àquela questão de que as instituições estariam funcionando normalmente. Elas
não estão. Neste momento, estão com a sua fragilidade agravada,
inclusive o Executivo.
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