O racismo entre nós!
Por
que os brancos precisam ser antirracistas
Lilia Moritz
Schwarcz*
Professora
da USP e da Universidade Princeton (EUA)
Brasileiros devem entender que
não existe democracia com racismo
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Manifestação que marcou a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), em frente ao Theatro Municipal de São Paulo, em 7 de julho de 1978 |
[Resumo]
À luz da morte de George Floyd nos Estados Unidos da América (EUA),
antropóloga relembra caso de jovem negro assassinado pela polícia
durante a ditadura militar, em São Paulo, o que motivou uma reorganização do
movimento negro e manifestação histórica em 1978 contra o racismo e o autoritarismo.
Robson Silveira da Luz foi nosso
George Floyd, mas poucos aqui notaram. Floyd trabalhava como segurança em
Minneapolis, nos EUA, e foi barbaramente assassinado pela polícia no dia 25 de
maio de 2020. Já Robson, que morreu mais de 40 anos antes, aos 27 anos, foi
um feirante negro que morava na zona leste de São Paulo.
Junto com alguns amigos, ele
voltava de um baile black no dia 18 de junho de 1978, quando decidiu pegar
um cacho de banana de um caminhão de frutas, numa feira em Guaianases, onde trabalhava.
Preso em flagrante, como mostra o pesquisador Lucas Scaravelli, foi
levado pela Polícia Militar para o 44º Departamento de Polícia, do mesmo
bairro.
Estávamos
no ano de 1978, época da face mais dura e violenta do regime militar. Robson
foi torturado e morto por policiais militares que estavam sob a chefia do delegado Alberto Abdalla; nunca mais voltou para
casa. A polícia disse à sua mulher, grávida naquela época, que ele “sofrera
um acidente”.
Manifestações do Movimento Negro Unido |
Na mesma época, quatro jogadores
de vôlei negros foram impedidos de entrar e jogar no Clube de Regatas Tietê por conta de sua cor. A
abolição da escravatura havia ocorrido 90 anos antes, mas a cor era (como
ainda é) um impeditivo e uma forma de discriminação naturalizada e silenciosa.
O caso de Robson, a discriminação
aos atletas e o assassinato de outro cidadão negro, o operário
Newton Lourenço, morto pela polícia do bairro da Lapa, no Rio de
Janeiro, naquele mesmo momento, não “passaram em branco”. Ao contrário do que
se tem dito, os associativismos, o jornalismo e as várias formas de
militância negra nunca “estiveram calados”.
A questão é que tem sido muito mal
formulada e encaminhada em nosso país: na verdade, quem se calou,
sistematicamente, foram amplos setores da sociedade branca e da mídia
brasileira. Nos Estados Unidos, os “afro-americanos”, seguindo critérios
estatísticos locais, correspondem a 12% da população; aqui, pretos e pardos,
nos termos do IBGE, são 56% e, mesmo assim, permanecem ainda muito
silenciados por um racismo estrutural e
institucional dos mais perversos, porque “naturalizado” no nosso
cotidiano.
A falsa coincidência de tantos
casos de racismo causou grande comoção entre os militantes negros e negras
brasileiros, ainda nos anos 1970. Enquanto a grande imprensa quase ou nada
publicou, o jornalista negro Hamilton Cardoso escreveu, naquele mesmo ano de
1978, uma matéria denunciando o assassinato de Robson Luz para o jornal
alternativo Versus.
Mesmo sob forte pressão, a
mobilização negra não desapareceu no período da ditadura. Em São
Paulo, no ano de 1972, e como mostram Petrônio Domingues e Mário Augusto
Medeiros, era muito atuante o Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan).
Também a imprensa negra estava viva em São Paulo, a partir de jornais como Árvore
das Palavras (1974), O Quadro (1974), Biluga (1974) e Nagô
(1975), que alcançavam da capital aos municípios.
No Rio
de Janeiro, a partir de 1975, jornais como Simba (Sociedade
Intercâmbio Brasil-África), o IPCN (Instituto de Pesquisas das Culturas
Negras) e o Ceba (Centro de Estudos Brasil-África) mantinham-se
particularmente ativos. No Rio Grande do Sul, o Tição (criado em 1977)
continuava na luta.
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Bloco carnavalesco do Ilê Aiyê - Salvador (BA) |
Nessa mesma época, surgiram
movimentos com perfis diferentes, mas que engrossavam a resistência negra, como
o Ilê Aiyê, ou simplesmente Ilê, o mais antigo bloco afro do carnaval
baiano, cuja criação data de 1974.
De toda maneira, esses episódios,
ainda pouco conhecidos e divulgados na história brasileira, acabaram se
transformando num estopim para a (re)organização das lideranças negras de
São Paulo no final da década de 1970.
As repercussões e a revolta diante
do assassinato de Robson Silveira da Luz foram motivo para uma reunião
promovida, ainda em junho de 1978, com diversos grupos e entidades
negras, tais como o Cecan, o Grupo Afro-Latino-América, a Câmara do Comércio
Afro-Brasileiro, grupos de atletas e artistas negros e outros. Foi nessa
ocasião que se decidiu criar o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial
(MUCDR), que deveria organizar um ato público contra o genocídio da população
negra e denunciar episódios de racismo.
No dia 7 de julho de 1978,
nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, reunindo organizações
culturais, entidades negras e representantes de vários estados, foi criado um
movimento com características nacionais.
Logo no momento de formação da
entidade foi adicionada a palavra negro; assim, o grupo político passou a ser
designado como Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial (MNUCDR), posteriormente simplificado para Movimento
Negro Unificado (MNU). Vale a pena destacar que o MNU lutava por
democracia em plena vigência do regime militar e com uma dupla missão:
denunciar a existência do racismo e criar estratégias para combatê-lo.
Assim, se
parte da população brasileira, branca e privilegiada, acreditava que havia
racismo nos EUA, mas não por aqui, a organização, para se contrapor, mostrava
que uma possível redemocratização teria que passar pelo combate e pela denúncia
ao racismo.
Aos que pensam que a repressão
atingiu basicamente a classe média branca engajada, é bom salientar que a
ditadura militar vinha, também, prendendo vários militantes e jovens negras e
negros, bem como tentando, sistematicamente, esvaziar qualquer pauta contra
o racismo.
Em primeiro lugar, buscava
estigmatizar e deslegitimar os ativistas, chamando-os de cópias dos movimentos
norte-americanos. Em segundo, fazia-se contrapropaganda, exaltando uma
pretensa democracia racial brasileira. Em terceiro, assim como hoje
chamamos de torcedores aqueles ativistas negros que se manifestam nas avenidas
contra o autoritarismo do governo, naquele tempo se procurava desqualificar o
movimento a partir de atributos que desfaziam da sua autenticidade.
A manifestação histórica de 7 de
julho de 1978 rompeu, assim, com o suposto silêncio dos grupos negros
impostos pela ditadura militar. Nesse evento, estavam presentes cerca de
2.000 pessoas que protestavam contra os episódios de violência contra
negros em São Paulo e contra o genocídio negro de uma forma geral.
Lá estavam muitos negros e negras
anônimos, jovens que curtiam os bailes de soul music —os bailes black
de São Paulo —, mas também operários, estudantes, jornalistas, artistas,
atletas, trabalhadores do comércio e lideranças sindicais e de associações e
várias lideranças negras, entre os quais Neuza Pereira, Flávio Carrança,
Hamilton Cardoso, Vanderlei José Maria, Milton Barbosa, Rafael Pinto e Jamu
Minka.
O protesto teve o apoio de
entidades de São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Pará, Pernambuco e Rio de Janeiro.
Prisioneiros da Casa de Detenção enviaram um documento de apoio ao movimento,
e, desde então, a data entrou para o calendário das lutas contra a
discriminação racial. Em novembro daquele ano, o Movimento Negro Unificado
participou do 1º Congresso Nacional pela Anistia, denunciando a
violência policial contra os negros no Brasil, as condições sub-humanas da
população carcerária e as torturas existentes nos presídios.
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DJAMILA RIBEIRO Filósofa, escritora e militante feminista negra |
Levou muito tempo, mas depois do
período da redemocratização, o delegado Alberto Abdalla, responsável pela
prisão de Robson, foi condenado pela morte do jovem, juntamente com outros
policiais, mas não foi jamais punido.
Já Robson da Luz virou símbolo da
luta contra o genocídio negro, ao mesmo tempo que o MNU se tornou uma
organização nacional e um dos vários movimentos sociais de negros e negras hoje
atuantes em defesa da igualdade racial e dos direitos dessa população. O
assassinato de Robson se transformou em mote, igualmente, para uma série de denúncias
contra:
* o
“esquadrão da morte”,
* a “polícia
mineira” e
* o
“mão-branca”,
sinônimos de extermínio de
negros no Brasil entre as décadas de 1970 e 1980.
No entanto, se Robson virou
ícone, até hoje pouco se sabe de sua vida. Essas são perversas
invisibilidades, num país que continua a matar nas grandes periferias do
país gerações de jovens negros de baixa renda que muitas vezes não
conseguem sair do anonimato que lhes é impingido pelos números frios da
polícia.
Essa é também uma velha/nova
história que faz da branquitude uma espécie de código partilhado, um lugar
de privilégio daqueles que sistematicamente solapam e impedem que essas
populações ocupem lugares de poder, façam parte das universidades, estejam
presentes na liderança do ambiente corporativo, atuem nas Redações e nos demais
ambientes de trabalho.
Hoje, os brasileiros até admitem
que há racismo no país, mas ninguém admite ser racista ou conivente com uma
estrutura que sistematicamente discrimina negros e negras nas áreas da
saúde, da educação e do trabalho. De tão naturalizado, há quem finja não
enxergar esse sistema persistente de subordinação.
Quem inventou o racismo foi a
sociedade branca. Portanto, cabe a nós brancos nos associarmos, como aliados, à
luta antirracista — termo proposto por Angela Davis e,
no Brasil, difundido por Djamila Ribeiro — e não
permitir que denúncias como o assassinato de crianças como Ágatha, João Pedro e
Miguel “caíam no vazio”.
No mundo
todo estão ocorrendo manifestações contra o racismo que defendem a democracia. Falta
a boa parte dos brasileiros — aqueles entre nós que desfazem dos debates
sobre ação afirmativa e cotas, negam o racismo e, em seu lugar, advogam uma
suposta meritocracia e universalidade sem notar que esses conceitos dizem
respeito a uma realidade majoritariamente branca e europeia— entender que
não existe democracia com racismo, como bem mostraram Silvio Almeida e
Flávio Gomes.
O racismo
não é um problema exclusivamente dos negros — faz parte de uma agenda
republicana brasileira. Perpetuando continuamente a discriminação, as elites
brancas brasileiras se equilibram entre a cegueira social e uma forma de
amnésia coletiva. Para o racismo não há desculpa.
* Lilia Moritz
Schwarcz é antropóloga e historiadora, é professora da
Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Princeton (Estados Unidos).
Autora, entre outros livros, de "Sobre o Autoritarismo Brasileiro",
"Brasil: Uma Biografia" (com Heloisa Starling) e "Dicionário
da Escravidão e Liberdade" (co-organizado com Flávio Gomes).
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