Como tirar o homem...
“Sem
entender a eleição de Bolsonaro,
não
é possível afastá-lo”
Caroline
Oliveira
Entrevista
com Marcos Nobre
Cientista
Político, Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp)
Para o professor da Unicamp, é necessário
olhar para
as Forças Armadas,
o voto evangélico e
as manifestações de 2013
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MARCOS NOBRE |
No último
domingo (31 de maio), as manifestações em favor da democracia e contra
o presidente Jair Bolsonaro anunciaram um pouco do tom de insatisfação com
o governo federal, ainda que este possua uma base aguerrida, mesmo que
reduzida. O anúncio se tornou expressivo devido à união de torcidas
organizadas de times de futebol rivais por uma única bandeira, em São
Paulo.
Para Marcos
Nobre, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), esse é um exemplo de como o campo democrático, formado por
grupos de diferentes campos ideológicos, deve agir na defesa da democracia. “É
uma coisa que anima e dá esperança”, afirma Nobre. Para ele, no entanto, as
manifestações também assustaram devido à presença de símbolos autoritários
entre aqueles que estavam no mesmo local em defesa do capitão reformado.
No cenário,
Nobre defende que:
“é necessário manter a cabeça fria, não pode
entrar em provocação, porque é o que eles querem. Esses fanáticos do
bolsonarismo querem produzir o caos nas ruas para provocar o que eles
chamam de uma intervenção das Forças Armadas. A gente deve ter cabeça
fria para dar os passos que são necessários para um afastamento positivo,
que signifique a repactuação das regras de convivência política,
que
foram perdidas nos últimos anos”.
Para
atingir o que Nobre chama de repactuação das novas
regras de convivência política, o professor defende alguns pontos. Entre
eles, entender o que significa Bolsonaro ser um presidente antissistema e a
necessidade de uma frente ampla pelo afastamento do presidente.
“Se a gente não entender a complexidade que
levou à eleição de Bolsonaro,
a gente não vai entender como é possível
afastá-lo”, considera.
A sua
análise está no e-book “Ponto-final”, lançado na última
sexta-feira (29 de maio - livro impresso será lançado no próximo dia 6 de junho) pela Editora Todavia, e sobre o qual Nobre conversou
com o Brasil de Fato.
Brasil de Fato: Professor, o senhor fala que
o campo democrático também quer colocar um ponto final no Bolsonaro e no
bolsonarismo, como os mesmos fazem. Como estabelecer o diálogo com a parcela da
população que apoia medidas autoritárias?
Marcos
Nobre: A gente precisa primeiro saber qual é o tamanho dessa
parcela. Nós temos dificuldades de saber isso porque não dá para comparar
os dados de hoje com as pesquisas que eram feitas presencialmente. A gente sabe
que, desde o início, o governo se estabilizou em um terço do eleitorado. Se a
gente for olhar, no entanto, a gente vai ver que teve uma mudança de base, sem
considerar esses problemas metodológicos que eu falei que tem: 11% deixaram
a base do Bolsonaro e 11% entraram.
Pela
análise dos dados, dá para ver que esses 11% [que entraram na base
bolsonarista] estão muito ligados ao recebimento do auxílio emergencial.
Então, é ilusório a gente pensar que a base de apoio ao Bolsonaro está igual.
Tem mudanças. Eu acho que tende a encolher essa base. Por quê? Porque
nem toda base de apoio do Bolsonaro desse um terço é autoritária. Tem uma parte
que é e que provavelmente corresponde a algo como 12%, segundo o exercício
feito pelo Datafolha em setembro de 2019. É para esse núcleo duro que
ele fala. Mas isso também vai afastando progressivamente os outros 20% que
estavam na base e que não concordam com esse tipo de radicalização autoritária.
Eu acho que
ele tende a perder essa base. Mesmo que temporariamente ele consiga substituir
uma parte da base tradicional dele por essa base que está recebendo auxílio
emergencial, isso não vai durar.
Outro ponto
é que a gente está vendo que antes existia um imobilismo dos três terços:
* um terço
que aprova,
* outro que
rejeita e
* um que nem
aprova e nem rejeita.
Foi assim
uma constante até abril, a chegada da pandemia de verdade. E esses três terços
tinham uma lógica muito perversa, porque cada terço falava para si mesmo e
não buscava nem tirar a base do Bolsonaro, nem fazer aliança com o outro terço.
E isso era um cenário muito favorável para o Bolsonaro, porque o que ele queria
é justamente isso: com o um terço dele chegar à segunda vaga no segundo turno,
demonizar quem quer que chegasse contra ele, para dizer que ele era a única
alternativa, com isso conquistar a reeleição e implementar o autoritarismo
no Brasil. Esse era o projeto.
O que a
gente está vendo do outro lado é que esse imobilismo dos três terços está se
mexendo. Tem duas tendências aí:
* uma é o aumento
da rejeição e outra
* é a diminuição
da base de apoio.
Então está
se vendo uma movimentação agora. Como essas forças vão conversar? Elas estão
vendo que existe alguma coisa que é mais importante do que o que divide todo
mundo, que é defender a democracia. Não que isso resolva a mágoa, os
rancores e todas as coisas que aconteceram. Não resolve. Só vai resolver na
conversa e na repactuação, porque esse negócio de fazer uma frente ampla para
impedir o Bolsonaro não é uma coisa bonitinha, é negociação política dura.
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Manifestação antifascista na Avenida Paulista (São Paulo - SP), dia 31 de maio de 2020 |
Como
o senhor observa as manifestações no último domingo (31 de maio) das torcidas
organizadas autodenominadas como antifascista?
Marcos
Nobre: Primeiro, como corintiano, para mim foi uma alegria ver a
torcida do meu time defendendo a democracia. Mas ainda mais bonito que isso
foi a torcida do meu time se juntar à torcida do arquirrival para defender a democracia.
Isso é um exemplo como poucos do que deve ser feito. É uma coisa que anima e dá
esperança.
Agora, do
outro lado, assusta, porque tem aquele símbolo neonazista ucraniano,
gente que é instrutor de grupo paramilitar. Nós temos muita gente armada
nessa base fanática de apoio ao Bolsonaro. É o tipo de confronto em que é
necessário manter a cabeça fria, não pode entrar em provocação, porque é o que
eles querem. Esses fanáticos do bolsonarismo querem produzir o caos nas ruas
para provocar o que eles chamam de uma intervenção das Forças Armadas para
restaurar a ordem, o que é totalmente ilegítimo do ponto de vista
constitucional. A gente deve ter cabeça fria para dar os passos que são
necessários para um afastamento positivo, que signifique a repactuação das
regras de convivência política, que foram perdidas nos últimos anos.
Essa
base bolsonarista de que o senhor fala é justamente o que seria ali, numa
comparação ao Congresso Nacional, o baixo clero do campo militar?
Marcos
Nobre: Exato, mas me preocupa menos as baixas patentes e os soldados
das Forças Armadas, porque existe um princípio da hierarquia que é respeitado. O
que me preocupa mais são as forças de segurança, nas quais a gente sabe que o
bolsonarismo tem uma imensa penetração. A gente estava numa escalada
perigosíssima que começou com um motim no Ceará,
e a gente não fala mais do motim de lá, porque chegou a pandemia. Mas aquilo
ali ameaçava se espalhar pelo País.
Quando a
gente vê a ideia de motim, nas Forças Armadas não se encontra isso. Se tem um
motim, será severamente punido. E, nas polícias, não foi punido.
Muito pelo contrário, todas as vezes em que existe um motim, o Congresso
Nacional anistia, aí mora o perigo.
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Policiais Militares amotinados no Ceará - tudo terminou em "pizza", sem punição Fevereiro de 2020 |
Quando
o senhor fala em entender a “normalidade da crise”, que eu entendi como a
normalização do estado de crise de 2013, me vem muito à cabeça os conceitos de "democracia de baixa intensidade", do sociólogo português Boaventura de
Sousa Santos. Quais chances os campos democráticos perderam em 2013? Onde se
errou? O que significou 2013 na esteira da eleição de Bolsonaro, pensando nos
conceitos acima?
Marcos
Nobre: 2013 foi a nossa grande chance de dar um salto à frente em
termos de aprofundamento da democracia, e nós perdemos isso. Basta comparar com
o “Occupy Wall Street”, em 2011, nos Estados Unidos. Aquilo deu no
Bernie Sanders [senador democrata dos Estados Unidos]. É como fazer com que
uma energia social que foi desencadeada encontre um canal institucional para se
expressar, que desembocou em Sanders. É uma coisa tão extraordinária o que
aconteceu nos Estados Unidos para mostrar o que poderia ter acontecido aqui.
Agora,
porque não aconteceu aqui?
Porque o sistema político, em vez de ver em
2013 uma
oportunidade para se reformar
e repactuar a democracia brasileira, se blindou
contra a sociedade.
Realmente, cortou
todos os canais, a possibilidade dessa energia entrar no sistema. Os
partidos não se abriram, assim como as instituições, e essa energia estava ali
solta na rua, esperando canalizações. Claro que, se a gente pensar na eleição
da Marielle Franco, Taliria Petrone e Áurea Carolina, isso é uma energia que
foi canalizada para dentro do sistema político, porque era um movimento de
renovação que encontrou lugar para se expressar.
Mas você
vai ter do outro lado. O Bolsonaro foi daqueles que entenderam o que
aconteceu em 2013. Ele viu que aquela energia, que ninguém estava querendo
canalizar... Pelo contrário, estavam se defendendo daquela energia, com algumas
exceções. Ele falou: “Agora é a minha hora, eu vou canalizar essa energia
com uma candidatura antissistema”.
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Protesto de milhares de pessoas no prédio do Congresso Nacional, em Brasília (DF) 17 de junho de 2013 |
O
senhor comenta no livro que alguns setores que se sentiam excluídos e que
conseguiram entrar para a política não vão aceitar agora sair do poder tão
facilmente. Como, então, fazer com que esse campo democrático volte ao poder
mantendo esses setores que não vão aceitar sair? Como fazer essa negociação?
Marcos
Nobre: Não é fácil, não. O que eu tento mostrar no livro é a
complexidade da eleição do Bolsonaro, no lugar de simplificar e dizer que
foi somente o antipetismo. Não foi só isso, tem muito mais coisa. E, se a gente
não entender a complexidade que levou à eleição de Bolsonaro, a gente não vai
entender como é possível afastá-lo, porque a gente não vai ter ferramentas para
fazer a negociação política que deve ser feita.
Dos setores
que entraram no governo, o lavajatismo saiu, uma parte importante da coalizão
de conveniência que elegeu Bolsonaro. Mas, se a gente tomar apenas o que eu
acho que são hoje pilares importantes do governo Bolsonaro:
a) o que eu
chamo de partido militar e
b) o voto
evangélico, essas forças não sairão do governo humilhadas.
De qualquer
maneira, agronegócio, comércio, indústria nunca vão ser alijados do governo,
podem haver correlações de forças. Mas os evangélicos e as Forças Armadas
conseguiram chegar a um lugar de decisão que eles não tinham antes, do qual
eles ficaram alijados muito tempo, como é o caso das Forças Armadas. Se for
para tirar o Bolsonaro, será necessário negociar com eles.
A
complexidade de construir um impeachment envolve a construção dessa
frente ampla no lado da sociedade, que é complicada, e a negociação com
quem está no poder e pode até estar disposta a negociar o afastamento de
Bolsonaro desde que não seja humilhada, desde que tenha uma saída honrosa.
Em um momento em que a ameaça da violência generalizada se mostra, ...
... imaginar que será possível fazer uma
transição para afastar o perigo que representa o Bolsonaro sem negociar com as Forças Armadas é uma ilusão.
No livro,
eu digo que, se as Forças Armadas e o voto evangélico puderem ser
convencidos de que é possível afastar Bolsonaro sem impor uma derrota
humilhante, vai ser possível essa transição. Agora, é claro que do lado da
sociedade tem que haver algumas coisas básicas: seja qual for o governo e a
posição das Forças Armadas e do voto evangélico no novo governo, não pode ser
um governo de continuidade em relação ao de Bolsonaro.
Agora
entra no cenário um ator que Bolsonaro negligenciava muito, que é o Centrão. Um
impeachment terá de ser combinado entre gregos e troianos, na versão
bolsonarista, entre Forças Armadas, evangélicos e Centrão?
Marcos
Nobre: Essa é uma questão-chave, como todas as outras. Mas aí nós
estamos falando do novo tripé do governo Bolsonaro. Se a tendência que eu estou
vendo se materializar, a base de apoio social do Bolsonaro vai se reduzir cada
vez mais ao grupo de fanáticos, [1] uma base
social reduzida, mas aguerrida e violenta. A outra coisa é a coordenação de
governo: cada vez mais fica claro que [2] as
Forças Armadas coordenam o governo de maneira transversal. Por outro lado,
o Bolsonaro precisa de um seguro anti-impeachment no Congresso,
principalmente na Câmara, aí ele faz uma [3] negociação
com o Centrão. Então esse é o tripé hoje.
Agora,
também no centrão são muitos. A gente poderia discutir como dentro das Forças
Armadas tem posições muito diferentes. O centrão também. Tem o centrão imediatista,
que troca apoio por qualquer cargo em qualquer circunstância, que eu chamo de [1º] “Centrão Carcará”; e tem aquele [2º] Centrão que pensa um pouco mais longe e
se questiona o porquê de aderir a um governo inviável.
Essa
[primeira] parte do Centrão, que é o Carcará, é o que chega no momento dos
abutres. Quando chega o Roberto Jefferson [ex-deputado federal e
presidente nacional do PTB], é porque o governo já se inviabilizou. O
Roberto Jefferson é o sinal de que todos os urubus podem vir porque a carniça está
à disposição. No momento em que o governo Bolsonaro se inviabilizar, o Centrão
Caracará vai abandonar o governo, do mesmo jeito que entrou.
Só
retomando o trecho do livro em que o senhor fala do Centrão de Bolsonaro, que
é: “O Centrão Bolsonaro é o Centrão carcará: pega, mata e come. Ou, na versão
varanda gourmet do deputado Arthur Lira, candidato à sucessão de Rodrigo
Maia na Presidência da Câmara, é o Centrão raiz".
Marcos
Nobre: É uma traição de tudo o que ele falou na campanha. Ele foi se
refugiar nesse bastião de fanáticos para sobreviver, porque só eles vão aceitar
esse tipo de estelionato eleitoral. Qualquer coisa que o chefe
fizer eles vão achar que existe uma boa razão para fazer. Por isso que eu acho
que tende também a perder base social, porque desse um terço da base de apoio,
20% era contra o sistema, o Centrão, esse tipo de toma lá dá cá. Então não
tem como ele [Bolsonaro] sustentar o discurso que ele tinha antes, a não ser
para essa base fanática.
No
livro, o senhor fala que a configuração do Centrão mudou desde o impeachment
de Dilma Rousseff, em 2016. O que mudou e no que o Centrão se transformou
ao se aliar ao Bolsonaro?
Marcos
Nobre: Lá na Constituinte, o Centrão se formou para
fazer frente à hegemonia progressista da Constituinte, porque tinha ali uma
frente ampla progressista que estava dominando os trabalhos da Constituinte, o
que em boa medida deu a cara da Constituição que nós temos. E o Centrão era
a direita que se opunha justamente a essas pautas. Isso é uma oposição
entre o progressismo e uma direita conservadora. Depois o Centrão desaparece
enquanto organização desse tipo, e no lugar dele fica uma coisa que eu chamo de
peemedebismo: essa organização em dois polos a partir do Plano Real,
que tem PT de um lado, PSDB do outro e um mar de PMDBs no meio.
A proposta
do Centrão é retomada por Eduardo Cunha quando se torna presidente da Câmara,
em 2015. Primeiro, ele é tomado em um sentido original para se opor à esquerda,
porque o que se considerava ali é que tinha se uma hegemonia da esquerda. Em um
momento em que a ex-presidente Dilma Rousseff estava mais fraca, o Eduardo
Cunha estava jogando como se o PT tivesse levando o Brasil ao comunismo, o que
antecipa bastante do Bolsonaro. [Quem diria?
Eduardo Cunha precursor do discurso bolsonarista!]
Então tem
um sentido de retomar o nome Centrão porque é uma direita conservadora
que quer se opor a uma esquerda. Mas tem um outro sentido que é o mais
importante de todos, que é fugir da polícia: exigir do governo Dilma
Rousseff que controlasse a Polícia Federal e a Operação Lava Jato.
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JAIR BOLSONARO |
A
aproximação de Bolsonaro fica mais coerente quando a demissão de Moro é
colocada no cenário?
Marcos
Nobre: Você tem razão que é mais coerente, porque a partir daí o que
o Bolsonaro está dizendo que sabe que ficará mais fraco e, por isso, se desfaz
daquilo que podia traí-lo, que é o caso do Moro, com mais popularidade e controle
da Polícia Federal.
O que o Bolsonaro disse para o Centrão é:
“Vocês deixem comigo que a partir de agora a
Polícia Federal
está sob o meu controle, não tem mais risco
para vocês”.
Ao mesmo
tempo, a gente tem que ver com clareza que o governo Bolsonaro foi funcional
para esse projeto do sistema político de autodefesa. Acabaram as operações da
Lava Jato. É um jogo que ele ataca o sistema o tempo inteiro e ao mesmo
tempo oferece tranquilidade ao sistema.
O
senhor fala que “Bolsonaro é o presidente antissistema” e que se a gente não
entender isso, a gente não vai entender como mudar a situação brasileira.
Gostaria, então, que o senhor comentasse essa frase.
Marcos
Nobre: Isso é uma característica geral de líderes populistas, na
última década, pelo mundo afora. Líderes populistas são contra o sistema e têm
uma característica geral é que quando chegam ao poder, eles continuam atacando
o sistema. Então, na verdade, eles são parasitas, porque o Estado
continua funcionando e o presidente malhando os serviços públicos, dizendo que
tudo é ineficiente, como se ele não fosse a pessoa que dirige o sistema.
Vamos pegar
a característica do Bolsonaro, que é ser um
líder populista autoritário: ele é alguém que identifica o sistema à
democracia, democracia ele identifica à esquerda e esta, por sua
vez, à Constituição de 88. O que eu proponho no livro é tentar pensar
como Bolsonaro pensa.
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