A morte como política
Brasil
pagará um preço incalculável por ter um presidente incapaz na pandemia
Oliver
Stuenkel*
Professor
da Fundação Getulio Vargas (FGV) – São Paulo
O coronavírus provavelmente moldará nossa era
mais do que qualquer outro evento, elevando governantes mundo afora à posição
de líderes cujas decisões terão impacto por décadas
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OLIVER STUENKEL |
A pandemia
como a que estamos vivendo é tão rara e grave que pode se tornar o evento
histórico mais marcante de nossas vidas. Marcará o início de uma nova era.
Em função disso, as decisões dos líderes no momento e nos próximos anos, em um
mundo em fluxo, terão consequências sistêmicas em longo prazo para seus países
e a ordem global.
Como
afirmou recentemente Janan Ganesh, colunista do jornal britânico Financial
Times, é provável que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha,
junto com o presidente chinês Xi Jinping, a oportunidade de definir
os fundamentos da era pós-pandemia. Cita como exemplo histórico o
presidente americano Harry Truman, que chegou ao poder depois da morte
de Franklin D. Roosevelt no fim da Segunda Guerra Mundial. Em circunstâncias normais,
Truman dificilmente teria sido um líder relevante. O momento histórico em que
se tornou presidente, porém, era atípico. Truman implementou o Plano
Marshall para reconstruir a economia da Europa Ocidental e fundou a OTAN,
tornando-se o líder americano de maior impacto da segunda metade do século 20.
Por décadas, seus sucessores operaram dentro do sistema geopolítico que ele
havia desenhado. Em um mundo em fluxo, líderes ao redor do mundo se tornaram
altamente relevantes para suas nações naquele momento, desde Konrad Adenauer na
Alemanha, Mao Tsé Tung na China até o premiê indiano Jawaharlal Nehru e o líder
israelense David Ben-Gurion. Como observa Ganesh, “as circunstâncias
contavam mais do que o indivíduo”.
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JACINTA ARDERN Primeira-ministra da Nova Zelândia destacou-se entre os melhores governantes do mundo a lidar com a pandemia do novo coronavírus |
Tal como em
1945, há cada vez mais evidência de que a atual pandemia será um momento de
transformação, elevando governantes mundo afora, mais uma vez, à posição de
líderes cujas decisões terão impacto em seus países por décadas. A resposta
confusa dos EUA ao novo coronavírus sugere que a época marcada pela liderança
global de Washington chegou ao fim, iniciando um processo complexo de transição
para um sistema liderado por duas potências. A pandemia também deve simbolizar
o fim da hiperglobalização, provavelmente com um maior papel do Estado na economia
e taxas de crescimento mais baixas em países em desenvolvimento. James
Crabtree, professor da Universidade Nacional da Singapura, escreveu
recentemente que todo o conceito de Mercados Emergentes deve deixar de existir,
com profundas consequências para a distribuição global de poder e o futuro do
capitalismo. A crise sanitária global causará o primeiro retrocesso no
desenvolvimento humano global em três décadas, causando aumentos bruscos nas
taxas de pobreza e instabilidade política em numerosos países ao redor do
mundo, alimentando a xenofobia, o nacionalismo e acelerando a crise do
multilateralismo. Até a chegada de uma vacina, países terão que intercalar a
flexibilização da quarentena com novos períodos de isolamento, sempre
acompanhados de milhares de testes.
No meio
disso tudo, nascerá uma ordem diferente, moldada pelas estratégias adotadas por
líderes ao redor do mundo. Como as escolhas durante a atual pandemia deverão
definir o contexto no qual futuros governos operarão, os países que atualmente
têm líderes inteligentes e visionários provavelmente serão recompensados desproporcionalmente —simplesmente porque, devido ao momento histórico, suas lideranças terão maior impacto. Países com
governos eficientes sairão da crise
mais unificados e resilientes, com sociedades mais empáticas e seguras de sua
capacidade de superar desafios complexos. Nesses países, cientistas e
profissionais da saúde ganharão mais visibilidade e respeito, e há um debate
público construtivo sobre como encontrar o equilíbrio certo entre aumentar a
capacidade de monitoramento do Estado e a proteção da privacidade, como reabrir
a economia sem pôr vidas em risco e como financiar os pacotes de estímulo
econômico.
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DONALD TRUMP & JAIR BOLSONARO Estão entre os piores líderes de países a lidar com a crise provocada pela pandemia do coronavírus |
Países que
atualmente têm maus líderes, por outro lado, podem acabar sendo punidos mais do
que em circunstâncias normais. Além de gerir mal a pandemia e prorrogar a crise
sanitária e econômica, eles não levam evidência científica em consideração e
não atuam de maneira transparente. Deixarão de estabelecer as bases necessárias
para iniciar a dolorosa adaptação de longo prazo. Ao invés de unificar seus
países, deixarão suas sociedades mais divididas e desconfiadas, inviabilizando
um debate público sobre os numerosos desafios, desde o futuro da educação, da
economia, do emprego, do transporte e até do processo eleitoral em tempos de
pandemia. Como sempre na história, países com lideranças inteligentes
aproveitarão do mundo em fluxo para galgar posições, enquanto as nações à
deriva perderão relevância.
Levará
muito tempo para se poder avaliar as consequências geopolíticas da pandemia e o
inevitável rearranjo na distribuição de poder entre nações. Porém, até agora,
tudo indica que o Brasil será um dos grandes perdedores geopolíticos deste
momento histórico. Quando o Brasil não foi nem sequer convidado para lançar, em
abril, a iniciativa “Colaboração Global para Acelerar o Desenvolvimento,
Produção e Acesso Equitativo a Diagnósticos, Tratamento e Vacina contra a
Covid-19”, que reúne Governos, organizações internacionais, fundações e
empresas privadas, revelou-se ali uma irrelevância internacional do Brasil que
pode ser o novo normal pós-pandemia — e que demoraria anos para ser revertida. A
triste realidade é que, neste momento, o Brasil traz muito pouco à mesa dos
debates sobre os maiores desafios que a humanidade enfrenta. É relevante apenas
no sentido em que causa preocupação dentro e fora do país. Além das muitas
mortes que poderiam ser evitadas com uma resposta mais coerente e baseada em
evidências científicas, o Brasil pode chegar a pagar um preço muito maior, por
muito mais tempo, do que a maioria acredita.
* Oliver
Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais
na Fundação Getulio Vargas (FGV) e coordenador do programa de pós-graduação da
Escola de Relações Internacionais da FGV. Coordena também a Escola de História
e Ciências Sociais em São Paulo (CPDOC-SP) e o MBA em Relações Internacionais.
Possui Mestrado em Políticas Públicas pela Kennedy School of Government
de Harvard University, onde foi McCloy Scholar, e Doutorado em Ciência Política
pela Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha. É também membro não
residente no Instituto de Política Pública Global (GPPi) em Berlim e colunista
para EL PAÍS e Americas Quarterly. Já colaborou para jornais como o New York
Times (EUA), Financial Times (Inglaterra), Global Times
(China), dentre outros.
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