«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

VISÕES SOBRE 2013 QUE SE VAI...

Reproduzo, abaixo, três artigos interessantes que 
fazem uma análise de três aspectos do ano que, agora, termina:
1º) os nove meses de pontificado do Papa Francisco, a "personalidade do ano";
2º) os casos de Snowden e Assange que agitaram o mundo com suas revelações;
3º) o Brasil com suas urgências a resolver.

Podemos não concordar com todas as opiniões expressas pelos seus autores, mas é bom nos confrontarmos com suas ideias, e refletirmos a partir de outros pontos de vista.

Boa leitura!

ESTILO OU SUBSTÂNCIA

Paolo Flores d'Arcais*

A guinada colossal do modo de vida do papa Francisco em relação a Bento XVI corresponderá a uma mudança da Igreja, da estrutura do Vaticano e suas relações com o mundo secular?
Paolo Flores d"Arcais - filósofo italiano

O papa Francisco foi eleito pela revista Time o Homem do Ano "pela rapidez com que conquistou a imaginação de milhões de pessoas que haviam abandonado toda esperança em relação à Igreja". Ratzinger também recebeu um reconhecimento análogo: não da Time, mas da revista Esquire, em 2007, como accessorizer of the year, ou seja, o homem que usava os acessórios mais elegantes do planeta. Esquire é uma publicação masculina mensal cuja apresentação é um programa em si: "Guia para homens que procuram uma vida mais cheia, rica, informada e compensadora. Estilo, etiqueta, dinheiro, cultura e culinária". A escolha deveu-se aos mocassins vermelhos extremamente macios de Ratzinger, feitos sob medida por um dos sapateiros mais famosos e caros do mundo (com os quais, aliás, ele presenteou o papa), o italiano Adriano Stefanelli de Novara, que atende também Silvio Berlusconi [ex-primeiro ministro italiano e rico empresário]. Os dois reconhecimentos revelam claramente a diferença abissal de estilo dos dois papas.

Aliás, Bento XVI já fora notado e admirado por usar o camauro, um tipo de gorro muito utilizado pelos papas da Renascença, de veludo vermelho debruado com arminho branco ou plumas de cisne; o saturno, chamado chapéu romano, vermelho com bordados dourados; e a mozzetta, uma pelerine de veludo vermelho às vezes debruada com arminho.

Francisco, ao contrário, caracterizou-se imediatamente por recusar a cruz de ouro, substituída por uma de ferro; renunciar ao apartamento em São Pedro (ele vive no alojamento de Santa Maria, uma espécie de pousada vaticana, com outras dezenas de pessoas); usar um velho Renault 4 bem rodado (300 mil quilômetros), presente de um pároco da Província de Verona, com o qual ele se desloca no Vaticano; e, recentemente, por ter comemorado o aniversário com três sem-teto. Enfim, por levar uma vida que toma a sério o voto de pobreza que fazem, em tese, todos os sacerdotes ao se ordenarem.

Portanto, a pergunta que paira no ar é: a essa guinada colossal do estilo de vida do pontífice corresponderá uma guinada do governo da Igreja, das estruturas da Cúria, da renovação pastoral e doutrinal, das relações com o mundo secular? 
  • É o que se indagam os católicos, cada vez mais divididos entre os que gostariam de continuar a cruzada de Ratzinger contra o iluminismo e as liberdades civis em expansão no Ocidente (aborto, eutanásia, casamento homossexual) e os que esperam de fato a conversão da Igreja à pobreza e ao espírito do Evangelho. 
  • É o que se indagam os cristãos de outras confissões, eles também divididos entre o populismo dos milagres dos pregadores evangélicos da televisão (que experimentam um verdadeiro boom na América Latina) e as esperanças ecumênicas dos protestantes europeus e dos greco-ortodoxos do mundo eslavo e oriental. 
  • É o que se indagam os não crentes, entre os quais é enorme a esperança (quase certamente excessiva) no que se refere à vontade de Francisco de abrir um autêntico diálogo. 
  • Mas certamente também os expoentes das outras grandes religiões, os muçulmanos em primeiro lugar, interessados principalmente em ampliar o espaço e o peso da própria fé e o reconhecimento de seus costumes (familiares e sexuais) nas legislações e na prática jurídica das sociedades secularizadas.
Em suma, estilo ou substância? A pergunta é em parte enganadora. O estilo de um papa já é substância, tem efeitos práticos. Por outro lado, em entrevista ao jornal La Stampa, de Turim, publicada no dia 15, o papa Bergoglio, consciente disso, ressalta, pragmático: "Um cardeal idoso me disse, meses atrás: ‘O sr. já começou a reforma da Cúria com a missa diária em Santa Marta... A reforma se inicia sempre com iniciativas espirituais e pastorais, mais que com mudanças estruturais’".

Numa longa entrevista à revista Civilização Católica [em italiano: Civiltà cattolica], dos jesuítas, depois de um apelo à doutrina da Igreja a respeito dos "valores não negociáveis", como os definia Ratzinger (em outras palavras, o sexo e a bioética), Francisco afirma que "os ensinamentos, tanto dogmáticos quanto morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral missionária não é obcecada pela transmissão desarticulada de uma multidão de doutrinas que devam ser impostas com insistência".

Mas enquanto permanecem essenciais, na atitude cristã, a caridade e o perdão, e, aliás, a ternura (talvez a palavra que o papa mais usou até hoje), é inevitável que sua crítica enérgica à "obsessão" dogmática seja entendida como uma tentativa de despi-la de legitimidade por aqueles que fizeram dos "valores não negociáveis" uma bandeira e uma cruzada. Por exemplo, setores consideráveis da conferência episcopal dos Estados Unidos.
Papa Francisco (acima) e Papa Bento XVI - diferenças no estilo e na proposta

De fato, as consequências práticas foram imediatas. No dia 10 de setembro, a Câmara do Estado de Illinois aprovou a lei que consente o casamento entre homossexuais, por 61 votos, apenas 1 a mais que a maioria exigida. Graças também à intervenção do influente presidente da Câmara, o católico Michael Madigan, anteriormente contrário, que justificou da seguinte maneira a mudança do seu voto: "Quem sou eu para julgar que pessoas que descobriram ser gays e vivem um relacionamento rico de harmonia deveriam permanecer na ilegalidade?". Ele reproduziu exatamente as palavras de Francisco aos jornalistas, retomadas e "canonizadas" pelo papa na entrevista a Civilização Católica. Graças às palavras do papa, Madison foi decisivo em convencer pelo menos outros cinco colegas, inclusive a republicana Linda Chapa LaVia, que declara: "Como católica que segue Jesus e o papa, para mim está claro que a essência da doutrina católica é o amor, a compaixão e justiça para todos, indistintamente".

Não que o papa Francisco goste necessariamente desses "efeitos colaterais" de suas palavras. Em 2010, quando era arcebispo de Buenos Aires, deu pleno apoio à "manifestação contra a possível aprovação de uma lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo" organizada pelos leigos católicos. Ressaltou que a "benevolência" em relação a quem queria introduzi-la não poderia permitir que se esquecesse o fato de que "a aprovação do projeto de lei implicaria um real e grave retrocesso antropológico", pois "a essência do ser humano tende à união do homem e da mulher como realização recíproca, como atenção e assistência, como caminho natural para a procriação". Em suma, e em termos mais diretos: o casamento homossexual (e a homossexualidade enquanto tal) é contrário à natureza.

Numa entrevista ao agnóstico Eugenio Scalfari, fundador do jornal La Repubblica, Francisco afirmou que "a Igreja não tratará de política ... A Igreja nunca irá além da tarefa de exprimir e difundir seus valores, pelo menos enquanto eu permanecer aqui". Acaso significará que, como bispo de Roma, ele não procurará mais influir na legislação civil, contrariamente ao que fez quando foi bispo de Buenos Aires? Ou a famosa "ambiguidade" jesuítica, que enchia de indignação cristã o afável Blaise Pascal, permitirá que ele contradiga com fatos as promessas contidas em suas palavras ?

Se as palavras do papa Francisco soam claras, os fatos, nem tanto. Se ele parece aplicar perfeitamente o que diz Mateus 5,37 - "Seja o seu sim, sim, e o seu não, não, porque o que passa disso vem do Maligno" -, não pode esquecer Lucas 6,43-44: "Não há árvore boa que dê fruto ruim, nem árvore doente que dê fruto bom; cada árvore se conhece pelo fruto". Portanto seu pontificado não será julgado pelas palavras, ainda que cristalinas do ponto de vista evangélico, mas pelos atos (e pelas omissões).

Francisco reiterou a Scalfari que "o ideal de uma Igreja missionária e pobre continua mais que válido. Essa, aliás, é a Igreja que pregaram Jesus e seus discípulos". Portanto os católicos, e em primeiro lugar os sacerdotes, terão de ser "pobres entre os pobres", enquanto "o chamado liberalismo selvagem continua tornando os fortes mais fortes, os fracos mais fracos e os excluídos, mais excluídos", sendo assim incompatível com o cristianismo. Conceitos solenemente reafirmados na exortação apostólica Evangelii Gaudium.

Por que então as autoridades financeiras do Vaticano, nomeadas recentemente pelo novo papa, se recusaram a fornecer à receita italiana os nomes de alguns milhares de cidadãos que, com certeza, utilizaram a fronteira da Rua Leão IV e as contas correntes do Instituto para as Obras da Religião (IOR)para sonegar cifras colossais em impostos? Em suma, as novas nomeações, aparentemente, não prenunciam uma operação de transparência que lance alguma luz sobre os verdadeiros crimes de natureza financeira e fiscal (inclusive lavagem de dinheiro) perpetrados durante anos sob a proteção do IOR. Prenunciam apenas um comportamento mais correto no futuro, que evite embaraçosas sanções internacionais e, enquanto isso, permita redistribuir de maneira mais equilibrada o poder financeiro vaticano entre a ala americana dos Cavaleiros de Colombo (Carl Anderson, Peter Brian Wells e a professora Mary Ann Glendon) e a ala europeia próxima aos Cavaleiros de Malta (cardeal Jean-Louis Tauran, o atual presidente do IOR, Ernst von Freyberg, o bispo espanhol Juan Ignacio Arrieta Ochoa de Chinchetru, membro da Opus Dei).

O papa prometeu medidas rigorosas na questão da pedofilia, mas a única verdadeira guinada seria a obrigação dos bispos de denunciar todo caso suspeito às respectivas autoridades civis, entregando o assunto a César, ou seja, à polícia e aos magistrados, e não a Deus, isto é, à severidade ou à caridade dos episcopados. Mas uma decisão nesse caso específico ainda está demorando.

No "não fazer política" estará incluída a confirmação da beatificação dos 552 mártires espanhóis justiçados pela República da Espanha durante a guerra civil desencadeada por Francisco Franco? Mártires que, na videomensagem transmitida por ocasião da cerimônia de beatificação coletiva de Tarragona, Francisco apontou como exemplo "para os que querem ser concretamente cristãos, cristãos pelas obras, não pelas palavras; e não ser cristãos medíocres, cristãos com um verniz de cristianismo, mas sem substância... cristãos até a morte". A citação suscitou indignação da monja beneditina Teresa Forcades, teóloga muito conhecida, e de todos os católicos espanhóis democratas. E, se "a Cúria é a lepra do papado" (como disse na entrevista a Scalfari), por que Francisco insiste na santificação de Karol Wojtyla, que moldou essa "lepra" a sua imagem e semelhança em um pontificado de mais de um quarto de século?

Em suma, o papa Francisco, Jorge María Bergoglio, é ainda um enigma. Vamos esperar. Cada árvore se conhece pelo fruto. 

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA.

* PAOLO FLORES D’ARCAIS, FILÓSOFO E JORNALISTA ITALIANO, É EDITOR DA REVISTA MICROMEGA E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ETICA SENZA FEDE (EINAUDI).

Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 29 de dezembro de 2013 - Pg. E10 - Internet: clique aqui.
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RADICAIS SEM RAIZ


Lee Siegel*

O que os snowdens não entendem é que, se o segredo foi o sangue vital do regime de Stalin,
também o foi para os grupos que se opuseram a ele
Lee Siegel - jornalista norte-americano
Um estranho desdobramento está ocorrendo na política americana. À medida que a ideologia de direita endurece nas fileiras do Tea Party, a de esquerda está desaparecendo. Embora os seguidores do Tea Party estejam constantemente chamando o presidente Obama e os democratas de socialistas empedernidos, está claro que estão meramente projetando a própria militância ideológica nos oponentes. A verdade é que os liberais americanos há muito vêm sendo uma mistura "centrista" de pragmatismo e oportunismo que tem nas muitas concessões de Obama aos críticos do seu plano de saúde seu exemplo mais vívido.

O resultado do ecletismo liberal em face do dogmatismo conservador é uma quase total falta do espírito de protesto que precisa animar qualquer reforma política. Reforma é protesto, e o protesto tem um requisito fundamental para ser eficaz. Ele precisa ser uma reação contra uma autoridade complacente ou corrupta muito específica. Nos Estados Unidos de hoje, contudo, ficou quase impossível concentrar o protesto numa autoridade específica. Isso porque toda autoridade se tornou suspeita.

Considerem-se as duas figuras hoje mais associadas ao espírito de protesto: Edward Snowden e Julian Assange. O fato é que nenhum dos dois está protestando contra algo em particular. Ambos estão protestando contra tudo em geral. O que eles parecem odiar é a autoridade em si, independentemente de ela ser benigna ou maligna.

Deixemos de lado a questão de se a Agência de Segurança Nacional (NSA, pelas iniciais em inglês) de Obama cometeu atos ilegais ao espionar líderes estrangeiros e seus próprios cidadãos. (Mas, agora que um conselho de especialistas jurídicos nomeados pelo próprio Obama decidiu que a NSA violou a Constituição, Snowden deveria seguramente ter permissão de voltar para casa sem ser processado.) Os motivos de Snowden para vazar essa informação não tiveram nada a ver com sua visão de uma sociedade justa, seu ultraje com um particular sistema político ou econômico, sua indignação com uma particular injustiça. Ele simplesmente não gostou do fato de que pessoas com autoridade agissem secretamente. Não pareceu se preocupar se o que elas fizeram foi legítimo ou não.

O mesmo vale para Julian Assange, cujos vazamentos, diferentemente dos de Snowden, com frequência não revelaram nenhum possível abuso de poder. Assange vazou segredos oficiais meramente porque eles eram oficiais, e secretos. Isso me fez pensar no famoso ladrão de banco Willie Sutton, a quem perguntaram, depois que ele foi preso, julgado e condenado, por que ele roubava bancos. "Porque", explicou Sutten, "é onde está o dinheiro." A confidencialidade oficial é onde a autoridade está.
Julian Assange (esquerda) e Edward Snowden

De novo, não estou interessado na legalidade ou mesmo na ética do que Snowden e Assange fizeram. Os advogados e políticos que cuidem disso. O que me interessa é como ambos refletem a política de protestos contemporânea, e o modo com que eles a afetam.

Pois, enquanto os primeiros radicais políticos tomaram as ruas para protestar contra abusos de poder muito particulares - direitos civis, pobreza, a Guerra do Vietnã, direitos de mulheres -, os radicais de hoje não são, estritamente falando, radicais. Ser radical significa querer mudar algo na raiz; é por isso que os radicais do passado enchiam as ruas, porque era nas ruas que eles podiam encontrar as raízes da existência cotidiana. Para encontrar uma raiz, porém, é preciso primeiro identificar as estruturas que cresceram dela. Só podemos erradicar o preconceito racial, a miséria econômica, a guerra ilegal, se nos concentrarmos nas particulares instituições por meio das quais elas prosperam. Mas, como os dissidentes políticos de hoje não são focados em alguma instituição particular, falta-lhes a capacidade de encontrar algo para desenraizar. É por isso que, mesmo no auge do movimento Occupy, nenhum corpo significativo de manifestantes tomou as ruas.

Segredo, opacidade: são essas as formas atuais de autoridade que os dissidentes políticos tomaram como alvo. E eles as perseguem onde quer que as encontrem. O problema é que essas são qualidades abstratas que se podem encontrar incorporadas em tudo, de agências governamentais ao relacionamento íntimo entre cidadãos comuns. O segredo foi o sangue vital do regime de Stalin, por exemplo; foi também o sangue vital de todos os grupos que se opuseram a ele. Para os radicais de ontem, o segredo de governos ruins foi ruim porque os governos eram ruins. Para os dissidentes políticos de hoje, o segredo de um governo, mesmo se esse for um governo benigno, é ruim, ponto.

Ao que parece, o que enfurece os snowdens de hoje é que as formas de poder não se adaptaram às novas formas de comunicação; o que os enfurece é o fato de que a transparência da internet não se tornou universal. Mas eles não poderiam se importar menos com a natureza moral de alguma forma de poder particular. Parafraseando Groucho Marx, seja ele qual for, eles são contra. Meu medo é que, quando toda autoridade é suspeita, não haverá nenhuma distinção entre tipos de autoridade. Quando telegramas diplomáticos secretos provocam tanta ira quanto os assassinos secretos a mando de um tirano, o tirano agirá com impunidade em meio a toda distração. Em vez do ressoar dos gritos de protestos, as ruas estão silenciosas, exceto pelos cliques de um milhão de teclados abelhudos. 

TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK.


* LEE SIEGEL É ESCRITOR, CRÍTICO CULTURAL AMERICANO. ESCREVE PARA THE NEW YORK, TIMES, THE WALL STREET JOURNAL.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 29 de dezembro de 2013 - Pg. E11 - Internet: clique aqui.
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A PAUTA ESCAMOTEADA

José de Souza Martins*

Educação e saúde entraram mais nas respostas do governo às ruas 
do que no próprio protesto
José de Souza Martins - sociólogo
Apesar das suposições, educação e saúde não tiveram forte visibilidade no elenco das demandas das manifestações de rua. Os protestos elegeram a elevação das tarifas de ônibus, a corrupção política evidenciada, sobretudo, no caso do mensalão, as despesas astronômicas com a infraestrutura de eventos grandiosos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 e a má qualidade dos serviços públicos. A educação e a saúde públicas entraram nesse último item, aparecendo em Brasília, mas não aparecendo no Rio.

Como é compreensível nos chamados movimentos coletivos, o comportamento de multidão tende a ser o das demandas difusas, surgidas no acaso dos reclamos suscitados na ocasião, um assunto puxando outro. Mas tende a ser também o momento da síntese expressiva dos tópicos de uma agenda de reclamações que todos carregam na memória à espera da oportunidade para torná-las visíveis e audíveis. Demandas sociais não explodem de repente.

A importância política dessas manifestações coletivas está no fato de que deram voz e visibilidade à maioria silenciosa, diferente do que ocorre nos chamados movimentos sociais. A quebra do silêncio se torna nessa hora um fato político, sobretudo porque contraria o coro dos cúmplices e bajuladores de voz programada para o amém que alegra os poderosos. Durante o regime militar um novo sujeito político emergiu no cenário nacional, com demandas tópicas que incluíam reformas sociais. No decênio do petismo outro sujeito político começou a germinar em silêncio, claramente antipartidário, o que bem indica a natureza da crise que protagoniza. Expressa o descrédito da política. Sendo os participantes desse novo movimento majoritariamente jovens, com acesso à internet e às redes sociais, é bastante evidente que se trate de manifestações da classe média que já não reclama educação, mas se motiva na educação para o protesto. A educação gerou os manifestantes de agora, em vários momentos de sua ação indicando o protagonismo do manifestante contra o do militante.

Nas manifestações coletivas deste ano, vimos a tensão se deslocando do centro das cidades para a periferia e retornando ao centro, com os temas do protesto se modificando, acrescentados. Como se o deslocamento fosse uma caça de temas para enriquecer a indignação dos manifestantes e dar durabilidade ao que tende naturalmente a esgotar-se. Mas indício, também, de que um invisível estoque de descontentamentos permanece à espera de novas manifestações. Não emergiram antes porque os mecanismos de controle social o impediram. Alguns emergiram agora porque esses mecanismos perderam a eficácia.

Educação e saúde entraram mais no rol das respostas do governo ao protesto do que no próprio protesto. O programa Mais Médicos acabou funcionando como tentativa de dar a volta por cima das inquietações de rua, para aplacar uma demanda permanente por saúde pública de qualidade, uma verdadeira medicina social, como há em outros países. É uma tentativa do governo de administrar o conflito, cujo acerto dependerá de tempo para que a clientela desse serviço possa experimentá-lo, testá-lo e avaliá-lo. Como técnica, esvazia esse item do protesto e adia o seu desfecho. Resta saber por quanto tempo. Médico sem satisfatória infraestrutura de saúde pública é pouco mais que um curandeiro.

Na área da educação a questão é mais complicada. Há uma crescente demanda de ensino superior, mas nenhuma explícita demanda de melhora no ensino elementar e médio. É aí que se situa o cerne da crise da educação brasileira. As avaliações anuais das escolas não permitem otimismo. Por outro lado, no contraponto do crescimento numérico das escolas superiores, o próprio ministro da Educação vetou o vestibular em mais de 200 cursos superiores, dado que aquém da qualidade que superiores os tornaria. A falta de um verdadeiro projeto nacional de educação se revela nessas incongruências. Mas se revela, também, num programa como o Ciência sem Fronteiras, que envia alunos de graduação ao exterior para uma temporada, sem clareza quanto ao que isso acrescenta a sua formação.

Na sequência das manifestações, houve finalmente a invasão da Reitoria da Universidade de São Paulo, com a ocupação e depredação de cinco andares do prédio e prejuízos avaliados em R$ 2,4 milhões. O tema foi a questão do poder na universidade, não a eventual questão do ensino e da educação. A melhor universidade brasileira foi objeto de uma manifestação que, rigorosamente falando, nada teve a ver com demanda por educação ou melhora da educação superior. Foi um desdobramento residual e antagônico das manifestações de rua e tentativa de implantar demanda ideológica e partidária no interior de um movimento justamente contrário a isso. Os manifestantes, porém, que falaram pela maioria, já haviam deixado às ruas e se calaram diante do vandalismo antieducacional e antipolítico dos militantes da minoria. Expuseram assim seus limites, insuficiências e contradições.

* JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP, AUTOR,  ENTRE OUTROS, DE A SOCIOLOGIA COMO AVENTURA (CONTEXTO).

Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 29 de dezembro de 2013 - Pg. E8 - Internet: clique aqui.

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