«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

ENTENDENDO O QUE SE PASSA NO EGITO

AS DIFÍCEIS ESCOLHAS NO CAIRO


FAREED ZAKARIA
Analista Político
The Washington Post
Exército anuncia a deposição do Presidente do Egito (03/Julho/2013)

Nos últimos 30 anos, quando os funcionários americanos pressionavam (gentilmente) o presidente do Egito, Hosni Mubarak, a não mais mandar para a prisão seus adversários e a empreender reformas mais democráticas, ele imediatamente retrucava: "Vocês querem a Irmandade Muçulmana no poder?" Os acontecimentos de quarta-feira sugerem que os egípcios continuam enfrentando esse tipo de dilema: a ditadura militar ou uma democracia não liberal. Para que a nova liderança egípcia alcance seus objetivos, precisa encontrar um meio de rejeitar ambas as opções. E essa tarefa cabe aos egípcios, e não aos EUA.

Em geral, a mídia ocidental considera o Egito um país dividido entre secularistas e islamistas, e pondera que o presidente deposto, Mohamed Morsi, seguiu uma linha islâmica radical durante o ano em que permaneceu no governo. Certamente, há alguma verdade nessa afirmação, embora se trate muito mais de uma luta pelo poder do que da implementação da sharia.

Morsi e a Irmandade Muçulmana decepcionaram, mostraram-se gananciosos e venais. O partido prometeu que não concorreria à presidência nem buscaria a maioria no Parlamento, mas ignorou ambas as promessas. Fez uma leitura apressada da Constituição, deficiente em muitos pontos fundamentais, como as garantias dos direitos humanos. Permitiu a discriminação e até a violência contra a minoria cristã copta no Egito. Tentou calar a oposição, banindo até o fim da vida os membros do antigo partido de Mubarak de todos os cargos políticos no Egito.

Mas o seu pecado maior foi a incompetência. O Egito está em queda livre. No ano de Morsi na presidência, a economia afundou, o desemprego atingiu níveis extremamente elevados, a ordem pública entrou em colapso, a criminalidade cresceu e os serviços sociais estagnaram.

Por si só, isso bastaria para causar um enorme descontentamento da população.
Mohamed Morsi - Presidente deposto do Egito

Canalizado inicialmente contra o Exército, que governou o Egito por 16 meses depois da queda de Mubarak, em 2011, agora se volta contra Morsi. Se a situação não melhorar no país, o descontentamento não se dissipará tão facilmente.

Os militares egípcios definiram esse golpe como uma ação "suave", com a finalidade de restaurar a democracia e não de subvertê-la.

Se for bem-sucedido, poderá funcionar, como em 1997 funcionou a destituição do governo islâmico na Turquia pelos militares turcos. Se fracassar, se assemelhará mais ao golpe argelino de 1992, que abriu o caminho para dez anos de violência.

Por enquanto, a ação certamente contribuiu para preservar o imenso poder e as prerrogativas do Exército, que continuaram apesar do fim formal do governo militar. O orçamento da Defesa, por exemplo, continua um segredo que não pode ser investigado pelo Parlamento nem pela presidência. E embora a má gestão de Morsi tenha galvanizado forças liberais, é irônico que estas tenham buscado o caminho do poder respaldando-se num regime militar um tanto repressivo.

O que vemos no Egito são os resultados de uma infeliz dinâmica fruto de décadas de ditadura. A autocracia extrema produziu como seu contraponto uma oposição extrema.

À medida que o regime se tornava mais repressivo, a oposição respondia sempre mais islamista e obstinada, às vezes violenta.

Os territórios árabes foram sequestrados por regimes repressivos e movimentos políticos não liberais, com poucas perspectivas de ver emergir dessas duas forças uma democracia liberal.

Morsi e a Irmandade tiveram a oportunidade de romper esse círculo vicioso, de se tornar a força da democracia e de uma ordem liberal com a separação dos poderes e um governo constitucional.

Líder "diferente"

Essa foi a base do sucesso do partido AKP da Turquia, até recentemente, quando dez anos de sucesso e três vitórias eleitorais subiram à cabeça do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan. Mas para tanto, Morsi precisaria ser um tipo de líder diferente, e na realidade muito raro na história.

Esse líder existe hoje, mas ele jaz num leito de hospital de Pretória, na África do Sul, mais próximo da morte. Nelson Mandela é um homem de uma estatura extraordinária por diversas razões. Mas a principal delas é talvez o fato de que, ao assumir o controle do país, fez tudo o que estava em seu poder para abraçar e assegurar os africâneres de que eles tinham um lugar importante na nova África do Sul.

É fácil imaginar as pressões às quais Mandela foi submetido para tratar os que criaram o apartheid de maneira totalmente diferente. E, no entanto, ele resistiu, e fez o que estava certo para o seu país e a sua história.

Os EUA tentaram palmilhar um caminho intermediário, apoiando o processo democrático, trabalhando com o presidente eleito, mas insistindo em sua moderação. Não basta satisfazer a um ou outro lado - e enquanto anteriormente o governo de Washington era acusado de apoiar os militares, agora é acusado de apoiar a Irmandade.

Na realidade, os líderes dos EUA são em grande parte irrelevantes. O que importa são os líderes no Cairo. Morsi não é Mandela, e, muito provavelmente, nem o seu sucessor. Essa diferença fará com que o Egito deva seguir um caminho democrático mais árduo do que o da África do Sul. 

TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Internacional - Sexta-feira, 5 de julho de 2013 - Pg. A13 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,as-dificeis-escolhas-no-cairo-,1050306,0.htm
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DESEJO DOS EGÍPCIOS É DEMOCRACIA LIVRE DOS MILITARES E DO CLERO


Lourival SantAnna
Imensa manifestação na Praça Tahrir, no Cairo (Egito) pela queda de Mohamed Morsi

Ruptura ou avanço? A questão crucial que envolve a crise do Egito é se a queda do presidente Mohamed Morsi representa um retrocesso ou uma etapa na democratização do país. Neste momento, em que o papel das Forças Armadas no novo governo, o desenho da transição para novas eleições e o futuro da Irmandade Muçulmana como partido ainda não estão claros, uma forma de analisar essa questão é comparar a atual crise com outras vividas pelo Egito e pelos outros países da Primavera Árabe.

A diferença principal em relação aos outros levantes no Egito, na Tunísia, na Líbia e na Síria é que este derrubou um presidente legitimamente eleito. A adesão do comando das Forças Armadas ao movimento popular é uma diferença em relação à Líbia e à Síria, mas não em relação ao próprio Egito e à Tunísia, onde a cúpula militar, depois de certa hesitação, retirou seu apoio a Hosni Mubarak e a Zine Ben Ali.

Na Líbia e na Síria, havia uma divisão entre forças de elite, que mantiveram o apoio ao regime, e o efetivo regular, que em grande medida aderiu à insurgência. Na Tunísia e no Egito não havia forças de elite preparadas para sustentar o regime em caso de levante.

Depois da queda de Mubarak, a cúpula das Forças Armadas tentou se manter no poder de fato, nomeando gabinetes leais a seus interesses e impondo a inclusão de artigos na Constituição que lhe reservassem as prerrogativas sobre a nomeação de comandantes militares e sobre o orçamento de Defesa, enquanto se demorava em fazer a transição. Foi a reação de centenas de milhares de manifestantes, muitos deles os mesmos que voltaram às ruas agora e haviam protestado contra o regime de Mubarak, que fez com que os militares recuassem e aceitassem a transferência do poder de fato ao Parlamento e ao presidente eleito.

Os antigos comandantes foram para a reserva e os novos prometeram se circunscrever às funções militares. Sua visão e interesse foram representados na candidatura de Ahmed Shafik, último primeiro-ministro de Mubarak, vencido por Morsi por apertados 52% a 48%, em segundo turno, e também por partidos que sofreram derrota avassaladora nas eleições parlamentares, para os islâmicos, que asseguraram dois terços das duas Casas.

Os militares, provavelmente, entendem que não podem transformar o movimento anti-Morsi em terceiro round das eleições. Seria ignorar o que motivou milhões de pessoas a saírem às ruas: o desejo de uma democracia livre dos militares e do clero. Tanto os secularistas quanto os islâmicos, que se aliaram na derrocada de Mubarak, não aceitarão uma volta dos militares ao poder. E, há dois anos, eles cruzaram o limite imposto pelo medo da polícia e do Exército.

O que está verdadeiramente em jogo é a compatibilidade entre a democracia e o Islã nas sociedades árabes. E a viabilidade da Irmandade Muçulmana como partido político - uma questão existencial que a persegue desde sua criação, em 1928. Antes perseguida pelos militares, agora ela é hostilizada também por uma parte da população que não aceita a perda de um estilo de vida liberal, tão enraizado no Egito quanto a própria fé religiosa.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Internacional/Análise - Sexta-feira, 5 de julho de 2013 - Pg. A10 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,desejo-dos-egipcios-e--democracia-livre-dos-militares-e-do-clero--,1050286,0.htm
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ENIGMA EGÍPCIO

Entrevista com Alaa Al-Aswany

Juliana Sayuri

Contraponto à voz corrente de golpe, escritor afirma: "É mais um capítulo da revolução"
ALLA AL-ASWANY - escritor e ativista egípcio 

Um paradoxo golpeou o Egito nessa semana. No domingo passado, milhões de manifestantes ocuparam as principais cidades em protesto no aniversário da posse do islamita Mohamed Morsi, primeiro presidente democraticamente eleito na história egípcia. Na segunda, os manifestantes, furiosos, deram o ultimato: 48 horas para o presidente renunciar, ou se tornaria alvo de uma intervenção militar. Morsi fez coro com o que dizia o general Hosni Mubarak nos seus últimos suspiros no poder: “Sou eu ou o caos”. Por fim, na noite de quarta-feira, Morsi caiu.

Mas o paradoxo só se acirrou: como compreender o jogo político intrincado em que um movimento democrático – o Tamarod, apoiado por personalidades e oposicionistas de linha laica, liberal e esquerdista – pode pedir a derrubada manu militari de um presidente democraticamente eleito, justificando que é preciso redirecionar o país à democracia?

De um lado, a Irmandade Muçulmana cravou e a imprensa internacional endossou: coup d’état! [golpe de estado!]. De outro, os manifestantes coloriram a Praça Tahrir com fogos de artifício, em celebrações que lembrariam a vitória com a queda de Mubarak no auge da Primavera Árabe, em 2011. Desta vez, foi a rua golpista? Se sim, foi um golpe oportuno? Justificável? A reviravolta egípcia fragilizou ou fortaleceu a democracia?

Quem responde a essas e outras questões é o escritor egípcio Alaa Al-Aswany, autor de Yacoubian Building (2002), Chicago (2007) e Automobile Club (2013). No Brasil, o escritor teve traduzidos a coletânea E nós Cobrimos seus Olhos (2013) e o best-seller O Edifício Yacubian (2009), publicados pela Companhia das Letras. Além do universo literário, Al-Aswany conquistou notoriedade internacional com o movimento Kefaya, que destronou Mubarak após três décadas no poder. Também confrontou o primeiro-ministro Ahmed Shafiq na TV – foi a primeira vez desde a década de 1970 que um líder egípcio se viu obrigado a responder ao vivo a inesperadas questões de um civil provocador. Em 2011, Al-Aswany foi celebrado como o mais importante pensador no prestigiado ranking Top 100 Global Thinkers, da revista Foreign Policy. Foi perfilado como o romancista revolucionário da Primavera Árabe na revista The New Yorker e escreveu artigos políticos para The New York Times, The Independent, The Guardian, Le Monde, El País. Nesses escritos, cravou um mantra: “Democracia é a solução”.

Nascido no Cairo em 1957, Al-Aswany reúne diversos papéis. Intelectual e ficcionista sensível aos dramas egípcios do presente, ainda é dentista, seu ofício original, no bairro de Garden City. Paralelamente, fundou o movimento Kefaya por volta de 2004 e se tornou um dos mais importantes campaigners pró-democracia no país. Nesta entrevista exclusiva ao Aliás, Alaa Al-Awany comenta a singular situação egípcia e diz por que não considera a derrocada de Morsi uma ruptura da ordem democrática: “Não foi um golpe de Estado. Tomamos de volta a revolução roubada”.

Outrora epicentro da Primavera Árabe, a Praça Tahrir foi ocupada mais uma vez. Em 2011, o movimento Kefaya estava lá. Em 2013, o Tamarod. Quais são as principais diferenças entre esses dois momentos?

Alaa Al-Aswany - Kefaya, que quer dizer “basta”, era um movimento independente e altamente simbólico. Foi a primeira vez que dissemos “basta” a Mubarak. Começou por volta de 2004, reuniu outros movimentos até conquistar os jovens, em 2008. Foi um acúmulo de visões revolucionárias que tomou as ruas em 2011. Muitos dos jovens do Tamarod estavam no Kefaya. O que vimos nos últimos dias foi mais uma onda de uma revolução muito forte. Revolução, vale lembrar, não é apenas um momento pontual. Este foi mais um capítulo. Tivemos três barreiras. Primeiro, Mubarak – e o Kefaya o derrubou. Segundo, os generais – e nos livramos deles nas eleições. Terceiro, Morsi e a Irmandade Muçulmana – e o Tamarod iniciou o movimento com uma campanha por eleições presidenciais antecipadas. Uma mobilização pequena a princípio, liderada por quatro jovens, que conquistou multidões. São jovens corajosos e criativos, realmente revolucionários. Tamarod quer dizer “rebelde”. Essa campanha reuniu mais de 22 milhões de assinaturas, todas documentadas. Pedimos aos signatários para irem às ruas, mostrar que não reconhecem Morsi. E assim vimos mais de 30 milhões de egípcios nas ruas.

Mas Morsi foi eleito democraticamente em 2012. Foi um golpe?

Alaa Al-Aswany - Morsi ascendeu ao palácio presidencial pela voz de 13 milhões de egípcios. Desta vez, tínhamos 22 milhões pedindo sua renúncia. Por quê? Porque não o reconhecíamos mais como legítimo. Mubarak era um ladrão corrupto, governando como ditador pela força. Mas Morsi é um terrorista fascista, governando como ditador pela força e pela palavra de Deus, ancorado na Irmandade. Tentou monopolizar o poder, a mídia, a Justiça e todas as instituições democráticas do país em favor dos interesses de sua gangue. Em novembro, fez um decreto que lhe dava superpoderes, anulando a lei e a própria ideia de Constituição. Suas decisões se tornaram inquestionáveis na Justiça. Novamente: sim, era um presidente democraticamente eleito, mas que se transformou num ditador fascista. Com essa autoridade excepcional, preservava os interesses de um comitê ilegal para escrever e impor uma nova Constituição. Além disso, sob suas ordens a polícia matou 134 manifestantes e prendeu outros 3.400. Não há como dar legitimidade a um regime assim. Não foi um golpe.

Mas por que não dar mais tempo para encontrar alternativas para a crise?

Alaa Al-Aswany - Porque não resistiríamos. Se ficássemos mais um ano nessa situação – não digo nem esperar o fim do mandato do presidente –, não restaria nada para discutir. Simplesmente não restaria nada do país.
Manifestante com rosto pintado na Praça Tahrir - Cairo (Egito)

É possível confiar nos militares?

Alaa Al-Aswany - Penso que sim. Não derrubaram o presidente para tomar o poder para si. Disseram: estamos ouvindo os 30 milhões de vozes nas ruas, e o presidente deve ouvi-los também. Deram um tempo para Morsi agir. Depois deram um ultimato para um acordo com os opositores. Logo no início disseram: não temos intenção de tomar o poder, não queremos papel político nisso, queremos apenas impedir que o Estado egípcio se esfarele numa guerra civil. Tanto que o presidente temporário não é um general. É o juiz da Suprema Corte.

Há risco de os militares ficarem no poder?

Alaa Al-Aswany - Os generais não parecem interessados no poder agora, pois tiveram uma experiência terrível após Mubarak. Viram as manifestações vigorosas, sabem o que os esperaria se tentassem voltar. E os egípcios estão alertas, não aceitariam um novo regime militar nem por um único dia.

Se a economia estivesse mais forte, esse levante aconteceria mesmo assim?

Alaa Al-Aswany - Sim. Se pudéssemos confiar em quem está no poder, continuaríamos o cotidiano mesmo passando por dificuldades financeiras. Poderíamos esperar mais tempo antes de uma ruptura como essa, se isso fosse simplesmente uma questão sobre a performance frágil do presidente. Mas o que está em questão não é a competência. Morsi tomou decisões terríveis, econômicas e políticas, para favorecer os interesses de seus aliados. Lembro muito bem: um dia após ser eleito, Morsi convidou intelectuais e líderes revolucionários para conversar. Eu fui. E lhe disse: “Sr. presidente, o sr. duas opções. Primeiro, pode tentar alcançar as metas da revolução. Continuaria forte e apoiado pelo povo egípcio. Quer dizer, mesmo se perdesse o apoio da própria Irmandade, ainda teria o apoio do povo. Segundo, pode preferir agradar à Irmandade. Se fizer isso, perderá tudo, pois o povo nunca mais confiará no sr.”. Ele respondeu: “Certamente escolherei a primeira alternativa”. É muito estranho lembrar essa conversa agora. Nós nos sentimos traídos.

E qual é o sentimento agora?

Alaa Al-Aswany - Vitória. Sentimos que estamos tomando de volta a revolução roubada. Estávamos frustrados, pois não víamos nada mudar. Agora tomamos as rédeas, ninguém poderá ignorar a vontade do povo.

Morsi foi eleito pelo povo. Foram eleições justas?

Alaa Al-Aswany - Justas sim, mas os critérios não foram os melhores. Os oponentes de Morsi, os homens de Mubarak, foram alvo de 35 acusações de corrupção, não investigadas. Mohamed Morsi e Ahmed Shafiq gastaram milhões de libras egípcias nas campanhas – e ninguém sabe de onde veio esse dinheiro. Outro ponto: no primeiro turno, Morsi teve 5 milhões de votos (isto é, a Irmandade não foi capaz de fazê-lo vencer de uma vez). No segundo round, as opções eram Morsi ou Shafiq, premiê de Mubarak. Escolhemos Morsi. Muitos jovens votaram nele, comemorando o que simbolizaria uma derrota para o antigo regime. Imagine o seguinte: você pega um táxi para o Rio, depois descobre que o carro deliberadamente alterou a rota e está indo para Brasília. Você espera enquanto vê o táxi rodar milhares de quilômetros na direção errada? Ou pede para parar, para voltar para o caminho certo?

Em entrevista ao Aliás, na época das eleições, Tariq Ramadan disse que escreveu The Arab Awekening para advertir que os militares nunca desistiriam do poder no Egito.

Alaa Al-Aswany - Discordo. Primeiro, Ramadan é da Irmandade. É neto de um dos fundadores. Segundo, não vive no Egito (é suíço, mas vive na Inglaterra). Fico surpreso por ele fazer um comentário tão confiante sobre um país que talvez não conheça o bastante. Terceiro, a Irmandade propôs um acordo às Forças Armadas para lhes dar todo poder contra a revolução. Por isso, penso que o Exército não está agindo assim agora em benefício próprio – afinal, os militares teriam muitos mais benefícios se estivessem aliados à Irmandade.

Mas não se trata de uma disputa entre seculares e islamitas, certo?

Alaa Al-Aswany - Certo. Eu sou muçulmano. A maioria do país é muçulmana. A questão é a Irmandade. Quer dominar tudo em nome de Deus – a fortuna, a terra, o poder. O que está acontecendo é uma reviravolta importante que influenciará no Islã político. A Irmandade se tornará só mais um partido de direita – e não mais que isso. Nosso país tem uma composição cultural muito rica. O Egito é um Estado árabe e muçulmano há 15 séculos. Mas por 35 séculos tivemos outras culturas. E antes de Israel, tivemos judeus no nosso território. Somos um povo antigo, com várias etnias e diversas migrações – gregos, romanos, etc. A cultura egípcia é muito estratificada. Transformar essa cultura num país fanático seria contra nossa identidade. Também somos um povo jovem: 60% dos egípcios têm menos de 40 anos. Quando dizemos a “juventude egípcia” estamos nos referindo a mais da metade da população. Isso fortaleceu os movimentos.

Talvez a juventude tenha sido impaciente...

Alaa Al-Aswany - A sociedade está vívida e enérgica. A revolução nos mudou. Não temos mais medo, ultrapassamos essa fronteira. É uma mudança irreversível. Afinal, a revolução não é um piquenique no parque. É uma mudança real e profunda, que leva tempo. Se vemos a população disposta a morrer pela liberdade do país... Quando atingimos esse ponto, realmente precisamos ser otimistas sobre o futuro. Eu estou otimista.

Do lado pessimista, há o risco de o Egito se tornar a Argélia de 1990?

Alaa Al-Aswany - Um dos maiores erros dos comentaristas é fazer aproximações sobre situações ainda abertas, dizer que o Egito se tornará o Irã ou a Argélia. Discordo. Cada país tem seu contexto histórico, sua dinâmica própria. Só para citar duas diferenças importantes: a Argélia tem uma sociedade fragmentada em tribos, nós não; o Irã tem um líder supremo a quem obedecem, nós não. Não vejo paralelos possíveis.

Enquanto Barack Obama expressou preocupação, Bashar Assad festejou a queda...

Alaa Al-Aswany - Assad não é importante para nosso movimento. Esse cara é um ditador terrível, que deveria ser destronado e julgado num tribunal pelos crimes na guerra civil na Síria. Catherine Ashton, da UE, e outros europeus disseram que não foi um golpe. Já os americanos... Imagine assim: você compra uma jaqueta muito cara, depois descobre que não serve mais. Tenta devolvê-la, mas não é permitido, a política e tal. Os americanos compraram a ideia da Irmandade no poder, pois pensavam que poderiam dominar o país através dela. Agora viram que a jaqueta não serve mais. Era tarde demais para devolver. A alternativa, para fazer valer o preço pago, é usar a peça apertada mesmo. É o que os EUA estão fazendo: não querem admitir que escolheram o lado errado no Egito.

Nobel da Paz, Mohammed El Baradei seria um nome nesse novo horizonte político?

Alaa Al-Aswany - Baradei é um dos nomes mais importantes na revolução. Honesto e querido pelos egípcios, poderia liderar o país nessa transição democrática. Não sei se o fará.

Daqui a uns dez anos, os livros de história lembrarão o que aconteceu nessa semana como um golpe ou uma onda revolucionária?

Alaa Al-Aswany - Se um historiador vê isso como um golpe, pode encerrar a carreira. É mais uma onda da revolução, que ainda não terminou. Haverá outras ondas. O que estamos vivendo mostra que nosso país está pronto para a democracia real. Afinal, democracia não é um livro sagrado. É o poder do povo.

Fonte: O Estado de S. Paulo - Suplemento ALIÁS - Domingo, 7 de julho de 2013 - Pg. E2 - Internet: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,enigma-egipcio,1050861,0.htm

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