ISTO É MUITO GRAVE!!!
PREVIDÊNCIA SOCIAL
Eduardo
Fagnani*
Se for aprovada a reforma que se vê no horizonte,
homens e mulheres, rurais e urbanos, trabalhadores privados e servidores
públicos terão de comprovar idade mínima de 65 anos e 49 anos de contribuição
para terem acesso
à aposentadoria com valor integral
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EDUARDO FAGNANI |
Este
artigo, que reflete a opinião do autor, sintetiza
um documento elaborado por dezenas de especialistas, que foi organizado
pela Associação Nacional dos Auditores
Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos
(Dieese) e será lançado em fevereiro de 2017.
No
documento, como neste artigo, a reforma
da Previdência é compreendida como peça do aprofundamento da austeridade,
num cenário em que o próprio establishment econômico global já faz a
autocrítica da opção por essa via quando se tentava superar a crise financeira
de 2008. As justificativas oficiais dizem que se trataria de ajustar as contas
primárias, quando os fatos demonstram que o
desajuste tem natureza financeira. A fusão do Ministério da Fazenda com o
da Previdência Social – arranjo do qual não se conhece outro caso entre países
desenvolvidos ou em desenvolvimento – é indicativa do propósito unicamente
fiscalista da reforma.
Em
última instância, o que está em jogo é a
mudança do modelo de sociedade definido pelo pacto social de 1988. O
objetivo é substituir o Estado social pelo Estado mínimo. Além da reforma da Previdência, esse processo
está sendo encenado pelo “novo regime fiscal” (que fixa um teto para os gastos
primários até 2036); o fim de vinculações de recursos para a área social; a
ampliação da Desvinculação de Receitas da União (DRU); o retrocesso nos
direitos trabalhistas e sindicais; e a reforma tributária.
Questões
sobre a “catástrofe” demográfica
É
visão corrente que o envelhecimento seria uma bomba-relógio. É fato que a
população está envelhecendo e que o maior número de idosos pressionará as
contas da Previdência. Mas isso não implica aceitar o fatalismo demográfico e a
ideia de que não há alternativas. Democracias desenvolvidas enfrentaram e
superaram essa questão no século passado e gastam mais que o dobro em
Previdência, como proporção do PIB, em comparação com o Brasil. Por que o Brasil trataria como “catástrofe”
o aumento da expectativa de vida, tão dedicadamente buscado em todo o mundo?
Essa
visão catastrofista, favorável ao encurtamento da vida do cidadão, tem a ver
com o aumento da “razão de dependência de idosos” (menor proporção de
trabalhadores contribuintes para maior número de aposentados). Esse indicador tem por premissa que o
financiamento da Previdência dependeria unicamente da contribuição do
trabalhador ativo. Isso é falso.
No
entanto, o maior equívoco é que esse indicador expressa relações produtivas
características da Segunda Revolução Industrial, centrada na base salarial e
nas linhas de produção fordista. A Terceira Revolução Industrial automatizou os
processos produtivos, eliminou postos de trabalho e ampliou os ganhos de
produtividade. Mais graves serão os
efeitos da Quarta Revolução Industrial (inteligência artificial, robótica,
impressão 3D, nanotecnologia, biotecnologia etc.), em curso, que aprofundará a corrosão da base salarial e
tende a perpetuar o desemprego estrutural. Não é razoável fazer projetos
para os próximos quarenta anos, como se o cenário em 2060 fosse o mesmo que
havia no mundo em 1960. No século XXI, o desafio de financiar a Previdência não
será superado por projetos e planos que decretem que a maior longevidade de
homens e mulheres seria uma catástrofe. Para
superar esse desafio é necessário que os impostos deixem de incidir sobre a
base salarial (que só diminui) e
passem a atingir a renda e a riqueza financeiras (que só aumentam).
Muitos
países da Organização para a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) fizeram essa transição em meados do
século passado. Nesses países, em média,
quase metade do financiamento da Seguridade Social vem da contribuição do
governo, por meio de impostos progressivos. No Brasil, os constituintes de
1988 não corrigiram a injustiça fiscal, mas diversificaram as fontes de
financiamento da Seguridade: a Constituição criou contribuições que incidem
sobre o lucro e o faturamento das empresas.
Além
disso, deve-se destacar a experiência de
diversos países que instituíram um fundo soberano incidente sobre as receitas
de petróleo e gás, as quais, capitalizadas ao longo dos anos, passaram a
financiar a Previdência – o caso da Noruega é exemplar.
Para
compreender bem os impactos do envelhecimento da população sobre a Previdência
também é preciso considerar que o
problema não está na demografia, mas no fato de o Brasil não ter ainda modelo
econômico compatível com as necessidades do seu próprio desenvolvimento
(Bruno, 2016).
Questões
sobre a “catástrofe” financeira
O “déficit” da Previdência é
outra bomba-relógio de ficção. Tem-se aí uma típica pedalada contra a
Constituição, pois o Brasil, desde 1988,
segue o modelo tripartite clássico (empregador, trabalhador e governo) adotado em diversos países da OCDE para
financiar a Seguridade Social. Em quinze destes, a participação relativa da
contribuição do governo é de 45% do total, seguida pela contribuição do
empregador (35%), pela contribuição do trabalhador (18%) e por fontes
secundárias (2%). Na Dinamarca, a
participação do governo atinge 75,6% do total (28% do PIB).
Para
que o governo passasse a ter recursos para cumprir sua parte no financiamento
da Previdência, os constituintes de 1988
criaram três novas contribuições sociais:
* a Contribuição Social sobre
o Lucro Líquido das Empresas (CSLL);
* a Contribuição Social para
o Financiamento da Seguridade Social (Cofins),
cobrada sobre o faturamento das empresas; e
* parte da contribuição para
o PIS/Pasep.
O famosíssimo “déficit” vem
do fato de a área econômica de sucessivos governos não contabilizar a
contribuição do governo como receita da Previdência. Desde 1989, a área
econômica captura esses novos recursos criados pela Constituição de 1988, e o Ministério da Previdência não considera a
Previdência parte da Seguridade; assim, desobedece ao que determinam os artigos
194 e 195 da Constituição.
Estudos
realizados pela Anfip (2015) revelam que a
Seguridade sempre foi superavitária, mesmo com a subtração de suas receitas
pela incidência da DRU (cerca de R$ 60 bilhões) e pelas desonerações
tributárias sobre suas fontes de financiamento (R$ 158 bilhões em 2015).
Assim,
observa-se que não há déficit, porque
existem fontes de recursos constitucionalmente asseguradas para financiar a
Previdência. O suposto rombo de R$ 91 bilhões (2015) poderia ter sido
coberto com parte dos R$ 202 bilhões arrecadados pela Cofins; dos R$ 61 bilhões
arrecadados pela CSLL; e dos R$ 53 bilhões arrecadados pelo PIS/Pasep. Ou então
pelos R$ 63 bilhões capturados pela DRU e pelos R$ 158 bilhões de desonerações
e renúncias de receitas da Seguridade Social.
Também
é preciso considerar que não se conhece o modelo atuarial adotado pelo governo
e pelos analistas que fornecem “fundamentos” às projeções catastrofistas para
2060. Quais são as variáveis utilizadas? Quais premissas embasam a projeção de
cenários? Quão acuradas são as projeções financeiras e atuariais do Regime
Geral de Previdência Social (RGPS) que servem de base para as “profecias” dos
críticos da Previdência?
Um
grupo de pesquisadores dedicou-se a analisar as projeções contidas nas Leis de Diretrizes Orçamentárias de 2012 a 2015.
Esse estudo – que está em fase final e será disponibilizado em breve – constatou erros gritantes de projeção na
receita, na despesa e no suposto déficit em apenas quatro anos, o que lhes
tira qualquer significado estatístico a longo prazo. Dada a importância crucial dessas projeções para as decisões que serão
tomadas agora no Brasil, é dever do Parlamento exigir que o governo abra essa
“caixa-preta”. Só assim será possível impedir que prevaleça pela força, não
pelo rigor técnico e respeito à Constituição, a visão daqueles que, sem base
técnica e desde 1988, em flagrante desrespeito à Constituição, vivem de catastrofismos, com o propósito de
fazer regredir direitos.
Também
faz parte do alarmismo dizer que “a Previdência é o maior item do gasto público
no Brasil”. Em 2015, por exemplo, o país
pagou R$ 502 bilhões de juros (8,5% do PIB): montante superior aos R$ 436
bilhões gastos com benefícios previdenciários (7,5% do PIB). [Este é o maior absurdo de nossa economia e pouquíssimos
alertam para isto!!!]
Há ainda o mito de que “o
Brasil gasta muito com Previdência”. Mas, para comprovar essa tese e chegar ao falso
patamar de 14% do PIB, os especialistas incluem como Previdência inúmeros itens
atípicos, como os gastos com os servidores públicos das três esferas de
governo. Na verdade, o gasto com a
Previdência (INSS) de 7,5% do PIB não é elevado na comparação internacional.
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"SERVIÇOS DA DÍVIDA" É aquilo que o Brasil paga de juros para os bancos e demais empresas e pessoas que compraram os títulos do Tesouro Nacional que são emitidos e, depois, recomprados pelo governo |
O
equilíbrio financeiro da Previdência
Para equilibrar
financeiramente a Previdência Social não é preciso criar novos impostos. Basta,
exclusivamente, que os artigos 194 e 195 da Constituição sejam cumpridos – o que jamais foi feito desde
1989. Como mencionado, apenas em 2015 nenhum centavo da arrecadação da Cofins,
da CSLL e do PIS/Pasep (R$ 53 bilhões) foi contabilizado como receita da
Previdência, além das desonerações e da DRU. [E ainda
estávamos no governo petista de Dilma Rousseff!]
O reforço da fiscalização e a gestão interna impediriam que o estoque
da dívida ativa previdenciária atingisse R$ 351 bilhões em 2015 (apenas 0,3%
recuperado para os cofres públicos). Além disso, estima-se que R$ 91 bilhões deixaram de ser arrecadados neste ano pela
falta de fiscalização sobre fraudes praticadas pelos empregadores.
(Filgueiras e Krein, 2016). Para cumprir
essas funções, é indispensável que o Ministério da Previdência seja recriado,
com plena autonomia.
O
crescimento econômico é requisito para o equilíbrio financeiro da Previdência,
pois suas receitas incidem sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro
das empresas. A recessão deprime as receitas e o inverso ocorre com o
crescimento. Sem crescimento, não é
apenas a Previdência que quebra, mas também o Estado brasileiro, incluindo a
União, os estados e os municípios.
Com
o crescimento, as possibilidades de financiamento podem ser potencializadas
pela inclusão dos trabalhadores informais. Em 2014, 37,7% da população ocupada
estava fora do sistema, não contribuía e não terá proteção na velhice.
O equilíbrio financeiro pode
ser obtido pelo reforço da capacidade fiscal pela maior equidade na
contribuição entre classes sociais. Em 2015, o governo federal:
* gastou R$ 502 bilhões em juros e
* deixou de arrecadar R$ 260 bilhões por conta das desonerações e
* R$ 456 bilhões em função da sonegação, efeitos da frouxidão
fiscalizatória que fez o estoque de dívida ativa da União atingir R$ 1,8
trilhão.
Em vez de punir os maus
pagadores, o governo decidiu premiá-los, lançando novo programa de parcelamento
dos débitos e editando medida que presenteia os produtores rurais inscritos na
dívida ativa da União. Contraditoriamente, nesse caso não se veem esforços para “Reformar para Preservar” nem para “Reformar para Garantir o Futuro”. [Slogans da campanha publicitária do Governo Federal em
defesa da reforma da Previdência]
O
mesmo propósito seria mais facilmente obtido se se enfrentasse a questão dos
juros, das desonerações e da sonegação, o que potencialmente abriria espaço
para economizar parte dos R$ 1,26
trilhão transferidos para as camadas de maior renda. Se a questão fiscal é
grave, por que não caminhar nesse sentido, em vez de destruir a Previdência
para economizar nos próximos dez anos R$ 67 bilhões por ano, como diz o
governo? Se a Previdência está quebrada,
por que isentar de contribuição vários setores? E por que premiar sonegadores?
O
equilíbrio financeiro da Previdência também requer que se faça uma reforma tributária que promova justiça
fiscal (Gobetti e Orair, 2016) e, sobretudo, que se enfrentem as
inconsistências do regime macroeconômico. A “pós-verdade” garante que o
desajuste fiscal é provocado pelos gastos sociais (déficit primário). A realidade escancara que, em função dos JUROS,
entre 2013 e 2015 o déficit nominal mais que triplicou (de 3% para 10,3% do
PIB) e a dívida bruta passou de 56% para
70% do PIB. A contribuição do déficit primário para o déficit nominal
(10,3% do PIB) foi de apenas 1,9% do PIB.
Reforma
apoiada em mitos
1º Mito:
não há idade mínima para se aposentar
A
PEC n. 287 tem sido apresentada sempre apoiada em mitos. Desde 1989 os críticos desenvolvem campanha ideológica para demonizar a
Previdência. Essa marcha contempla falácias diversas – por exemplo, a de
que o Brasil “não exige idade mínima para a aposentadoria”. Essa suposição
desconsidera o que diz o artigo 201 da
reforma previdenciária realizada em 1998 (Emenda Constitucional n. 20).
Desde então, são duas as possibilidades
de aposentadoria:
– Aposentadoria por idade para o trabalhador urbano,
concedida aos homens com 65 anos e às mulheres com 60 anos (mais 15 anos de
contribuição). Os trabalhadores rurais podem se aposentar aos 60 e 55 anos,
respectivamente. Assim, desde 1998, o
Brasil exige idade mínima, que, no caso do trabalhador urbano, era superior à
praticada por diversos países desenvolvidos. Atualmente, a maior parte das
aposentadorias é por idade (64% do total, ante 36% das aposentadorias por tempo
de contribuição).
– Aposentadoria por tempo de contribuição, que exige 35 anos para homens e 30 anos para as
mulheres, um período severo comparado à carência mínima adotada em muitos
países desenvolvidos. Essa regra restritiva é agravada pela incidência do fator previdenciário, criado
em 1999, que suprime uma parcela do valor do benefício até que o
contribuinte atinja 65/60 anos. Além disso, a reforma dessa modalidade foi feita em 2015 (Lei n. 13.183), quando
se introduziu a Fórmula 85/95
Progressiva. Em 2026, passará a vigorar a Fórmula 90/100, uma combinação
(idade/contribuição) semelhante à adotada em países da OCDE.
2º Mito:
a aposentadoria é precoce
O
segundo mito – “a aposentadoria é precoce” – considera a média de todos os tipos
de benefícios (por idade, por tempo de tempo de contribuição, rurais, urbanas,
homens e mulheres), chega à média de 59,4 anos e compara-a com a média da OCDE
(em torno de 65 anos). É um truque que mascara as especificidades de cada
situação. No caso da aposentadoria por idade do segmento urbano, por exemplo, a
média é de 63,1 anos (em geral os homens se aposentam com 65 anos, e as
mulheres, com 60 anos), um patamar já próximo das nações desenvolvidas.
3º Mito:
a Previdência é generosa
O
terceiro mito – “a Previdência é generosa” – tenta, mas não se sustenta. Como
já mencionado, desde 1998 a maior parte
das aposentadorias não é precoce, e a aposentadoria por idade (65/60 anos),
quando introduzida em 1998, era superior à praticada em países da OCDE, como a
França, que até hoje exige 62 anos.
Reforma
draconiana sem paralelo
A PEC n. 287 unifica as
regras para todos os segmentos, acabando com diferenciações previstas pela
Carta de 1988,
dadas as assimetrias entre gêneros e entre campo e cidade. Aprovada a reforma
que se vê no horizonte, homens e mulheres, rurais e urbanos, trabalhadores
privados e servidores públicos terão de comprovar idade mínima de 65 anos e 49
anos de contribuição para terem acesso à aposentadoria com valor integral.
Nesse caso, será preciso entrar no
mercado de trabalho com 16 anos e permanecer no emprego formal por 49 anos
ininterruptos. Se estudar e começar a trabalhar com 24 anos (média da
OCDE), terá aposentadoria integral aos 73 anos.
Para ter direito à
aposentadoria parcial (75% do valor), exige-se idade mínima de 65 anos e
contribuição de 25 anos. Quem tem menos de 50 anos (homens) e 45 anos (mulheres) submete-se às
novas regras. Quem tem idade maior terá de contribuir por um período 50% maior.
A idade mínima de 65 anos é
móvel. Ela será ampliada sempre que aumentar a expectativa de sobrevida aos 65
anos. A
reforma proíbe o acúmulo de benefícios e impõe regras severas para pensão por
morte, aposentadoria por invalidez e aposentadoria especial.
Uma das maiores crueldades é
a elevação da idade (de 65 para 70 anos) e a
desvinculação do piso do salário mínimo para o Benefício de Prestação
Continuada (BPC) dirigido aos idosos
mais vulneráveis (renda familiar per capita de um quarto do salário mínimo)
e portadores de deficiências.
Principal
mecanismo da proteção social
O
documento referido no início, que será lançado em fevereiro, alerta para a
evidência de que a PEC n. 287 representa
grave ameaça de destruição de um dos principais vetores da proteção social
brasileira, o que poderá ampliar ainda mais a pobreza e a desigualdade.
A
Previdência e a Seguridade beneficiam mais de 90 milhões e 140 milhões de
brasileiros, respectivamente. A maior parte dos benefícios equivale ao piso do
salário mínimo e 82% dos idosos têm proteção na velhice. A Previdência combate o êxodo rural, fomenta a agricultura familiar,
promove a economia regional, tem papel redistributivo nos municípios mais
pobres e reduz a desigualdade da renda e a pobreza. Sem a Previdência e a
Seguridade, a pobreza extrema entre os idosos seria muito maior: em 2014,
apenas 0,5% da população de 60 anos ou mais estava em situação de extrema
pobreza; sem a Previdência, o BPC e as pensões, mais de 50% da população
viveria em situação de pobreza extrema.
Extinção
do direito à proteção na velhice
O
contexto geopolítico do final da Segunda Guerra Mundial preparou o caminho que
conduziu à inclusão da Seguridade Social
como um dos direitos humanos na clássica
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O ímpeto destruidor da
reforma que se estuda no Brasil não preserva sequer o artigo 25 daquele
documento monumental em favor da civilização, pois a maior parte dos
brasileiros não gozará os benefícios do direito humano a um padrão de vida que
assegure atenção à saúde e bem-estar a cada um e sua respectiva família, inclusive
“o direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência fora de seu controle”. Os trabalhadores ativos sem
proteção jamais serão integrados, e a eles se juntará uma massa de trabalhadores
expulsos por não terem capacidade contributiva e saúde para continuar no
trabalho e por saberem que é inútil contribuir para fazer jus a um benefício
inatingível.
O Brasil é o país da
tragédia anunciada. A tragédia da desproteção social começa agora a ser tecida. As questões cruciais que
deveriam orientar a reflexão da sociedade, dos parlamentares e do movimento
social são: “Que país queremos?” e “Que país os reformistas projetam para o
Brasil do século XXI?”.
QUEM GANHA COM A REFORMA?
Em função do caráter restritivo da reforma
proposta, grande parte dos trabalhadores de menor renda deixará de contribuir. Dissemina-se no seio da sociedade a correta
percepção de que “se não vou usar, para que pagar?”.
Daí advêm duas graves consequências. A
primeira é o aumento do universo dos
trabalhadores sem proteção, além dos atuais 25 milhões (37,7% do total). A
segunda é a quebra financeira da
Previdência Social, pela retração das receitas provenientes das camadas mais
pobres, intensificada pela fuga das classes mais ricas para o setor privado.
Tanto quanto se pode avaliar hoje, essas
duas consequências seriam os propósitos implícitos da reforma em estudo.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
É
justo impor num país desigual regras mais rígidas que as praticadas em nações
igualitárias?
Resposta:
Matijascic, Kay e Ribeiro (ver referências ao final do artigo) sublinham que,
em países desenvolvidos, a idade de 65 anos “não é o mínimo, mas a referência”.
Em geral, a carência mínima (que assegura o direito a receber o benefício
parcial) é inferior à idade de referência (pensão completa). Em alguns países,
a diferença é de oito anos. Da mesma forma, a carência mínima exigida (tempo de
residência, tempo de filiação, tempo de cobertura ou 15 anos de contribuição) é
inferior à carência de referência (tempo de contribuição em torno 35 anos).
É
justo que o trabalhador rural do Nordeste do Brasil seja submetido a regras de
aposentadoria mais exigentes que as aplicadas ao trabalhador urbano da
Escandinávia?
Resposta:
Ao unificarem as regras para todos os segmentos, os reformistas desconsideram
as desigualdades de gênero. Atualmente, as mulheres têm o direito de se
aposentar com cinco anos a menos que os homens, em função das condições
desfavoráveis enfrentadas no mercado de trabalho e pela dupla jornada que
realizam. Eles também desconsideram as heterogeneidades da zona rural
brasileira. Mais de 70% da pobreza
extrema está situada na zona rural do Nordeste.
O
que esperar de uma democracia que deixa sem proteção os membros mais
vulneráveis da sociedade?
Resposta:
Uma das maiores crueldades em preparação no Brasil é a elevação da carência
mínima de 65 para 70 anos, para a concessão do Benefício de Prestação
Continuada a idosos socialmente mais vulneráveis (renda familiar per capita de
um quarto do salário mínimo) e portadores de deficiências, que hoje beneficia
mais 16 milhões de pessoas. Esse
indivíduo, expulso do sistema, se chegar aos 70 anos, será condenado à pobreza
extrema até que morra, pois receberá pensão inferior a um salário mínimo,
de valor arbitrado pelo governo.
POR QUE NÃO SE DEVE BUSCAR INSPIRAÇÃO NA OCDE
É
uma impropriedade inspirar a reforma brasileira em modelos de países
igualitários. Isso porque há um abismo a separar o contexto histórico e as condições de vida
daquelas nações e no Brasil, sociedade com longo passado escravagista, de
industrialização tardia e com incipiente experiência democrática. Essas
diferentes condições traduzem-se em profundas desigualdades e heterogeneidades
socioeconômicas, demográficas e regionais:
1.
Nos países igualitários, o índice de Gini é inferior a
0,30; no Brasil, é 0,52. O PIB per capita situa-se num patamar entre US$ 30 mil
e US$ 61 mil; aqui, é de US$ 15 mil. O salário mínimo na Alemanha é cinco vezes
maior que no Brasil.
2.
No Brasil, quase 50% da população ocupada é informal, o
que não se verifica na OCDE. A rotatividade do mercado de trabalho é elevada:
50% dos trabalhadores brasileiros tinham menos de três anos no atual trabalho
na comparação, por exemplo, com a Itália (20%). Na OCDE, os jovens entram no
mercado de trabalho por volta de 24 anos; aqui, 45,9% dos homens urbanos e
78,2% dos homens rurais começam a trabalhar com até 14 anos.
3.
A expectativa de vida ao nascer no Brasil (75 anos) é
mais de seis anos inferior à de muitos países da OCDE. No caso dos homens, ela
é cerca de dez anos menor. O IBGE estima que o brasileiro só alcançará os
parâmetros de nações da OCDE em 2060.
4.
No Brasil, a expectativa de sobrevida aos 65 anos é três
anos mais curta que a verificada em muitos países da OCDE.
5. A expectativa de duração da aposentadoria aqui é cerca de oito anos
inferior à verificada em alguns países desenvolvidos.
6.
Aqui, a probabilidade de não atingir 65 anos de idade é
37,3%; no Canadá, é de 9,3%.
Estimativas da Organização Mundial da Saúde
(2001) apontam que no Brasil a probabilidade de vida sem saúde, no caso dos
homens (20,2%), era mais que o dobro da verificada na Itália (9,2%).
7.
A média de anos de estudo aqui (7,6 anos) é inferior à da
Alemanha (12,9 anos), por exemplo.
8. A taxa de mortalidade infantil (antes dos 5
anos) no Brasil (16,4%) é mais de quatro vezes superior à de muitos países da
OCDE.
9.
A expectativa de vida saudável aqui (64 anos) é quase dez
anos menor que a da Itália (73 anos).
10.
Atualmente, as doenças crônicas respondem por mais de 70%
das causas de mortes no Brasil. Essas ocorrências geram incapacidades e
limitação das pessoas em suas atividades de trabalho e, com o envelhecimento,
espera-se significativo aumento da incidência dessas doenças.
11.
A gravidade desse quadro intensifica-se se olharmos essas
desigualdades no contexto da heterogeneidade regional brasileira. A expectativa
de vida ao nascer no Brasil (ambos os sexos) é de 75 anos. Mas em dezoito
unidades da federação ela é menor que isso. No caso dos homens, em mais da
metade das unidades da federação ela é inferior à média nacional (73,9 anos).
Em 3.170 municípios, a expectativa de vida é menor que a média nacional.
12.
Dos 5.565 municípios brasileiros, apenas 0,8% tem IDH
semelhante ao das nações da OCDE (“Muito alto”) e 34% têm IDH próximo da média
nacional (“Alto”). Os demais têm IDH “Médio” (40% do total), semelhante ao
verificado em Botsuana e no Iraque; “Baixo” (24,6%), padrão verificado no Congo
e na Nigéria; e “Muito baixo” (0,5%), algo próximo do Senegal e do Afeganistão.
Referências
bibliográficas
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES DA RECEITA
FEDERAL DO BRASIL E FUNDAÇÃO ANFIP DE ESTUDOS DA SEGURIDADE SOCIAL. Análise da Seguridade Social 2014.
Brasília: Anfip, 2015.
BRUNO, M. A
Previdência Social brasileira sob os impactos da financeirização e da transição
demográfica. São Paulo: Plataforma Política Social, 2016.
FILGUEIRAS, V.; KREIN, J. Reforma da Previdência para quem? Proposta
para uma reforma efetiva e pragmática. São Paulo: Plataforma Política
Social, 2016.
GOBETTI, S. W.; ORAIR, R. O. “O paraíso dos
super-ricos”. Le Monde Diplomatique
Brasil, jan. 2016.
MATIJASCIC, M.; KAY, S.; RIBEIRO, J.
Aposentadorias, pensões, mercado de trabalho e condições de vida: o Brasil e os
mitos da experiência internacional. In FAGNANI, E.; LUCIO, C. G.; HENRIQUE, W. Previdência Social: como incluir os
excluídos? Uma agenda voltada para o desenvolvimento econômico com distribuição
de renda. São Paulo: LTR, 2007. (Debates Contemporâneos – Economia Social e
do Trabalho, 4).
*
EDUARDO FAGNANI é professor do Instituto de Economia
da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho
(Cesit-IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social (www.plataformapoliticasocial.com).
E-mail: eduardo.fagnani@uol.com.br.
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