A INVASÃO DAS DROGAS!!!
CRACK - A GEOGRAFIA DO VÍCIO
Ricardo Brandt
"A
raspa da canela do capeta." Assim era conhecido o crack quando surgiu em
São Paulo, na periferia da zona leste. Era fim dos anos 1980 e o Brasil vivia
os desafios da redemocratização, após 20 anos de ditadura militar. Subproduto
sujo e barato da cocaína, a droga que deve seu nome aos estalos que emite ao
ser queimada logo se tornou o prazer e a praga dos excluídos, de farrapos
humanos que pouco importavam à sociedade e, consequentemente, ao poder público.
Passados
mais de 20 anos, esse cenário mudou: hoje, o crack está presente em todos os
cantos do Estado. Dos grandes centros urbanos, migrou para cidades pequenas e
afastadas, antigos rincões do sossego. Também escalou a pirâmide social e
chegou às mansões. Com a mesma rapidez com que corrompe e danifica o organismo,
virou a principal droga ilícita tanto em municípios pobres e pouco
desenvolvidos quanto em regiões de economia aquecida, estâncias turísticas,
balneários, paraísos litorâneos e na roça.
Em
mapeamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), atualizado em tempo
real pelas prefeituras, 194 cidades paulistas – das 556 participantes –
declararam ter alto problema decorrente de consumo de crack. Entre elas estão
Águas de Lindoia e Serra Negra (estâncias hidrominerais do Circuito das Águas),
Campos do Jordão (a "Suíça brasileira"), Ilhabela (reduto de Mata
Atlântica no litoral norte), Cananeia (patrimônio da humanidade), além de
cidades-referência, como Ibitinga (a capital do bordado), Monte Alegre do Sul
(capital do morango), São Roque (terra do vinho), Louveira (2.º maior PIB per
capita do País).
Diferentemente
das regiões metropolitanas, onde dependentes se concentram nas cracolândias em
locais públicos, à vista de todos, nos recantos de sossego do interior o crack
geralmente avança de forma oculta, com usuários "invisíveis"
escondidos em casas de consumo, "mocós", no meio do mato, em pontos
de venda conhecidos como "biqueiras" ou "bocas". São
cidades pequenas, onde todos se conhecem, como Fernão (1,5 mil habitantes),
Martinópolis (24 mil), Vera Cruz (10 mil), Gavião Peixoto (4,4 mil), Garça (43
mil) e Registro (54 mil).
Durante
quatro meses, a reportagem do Estadão
percorreu 6,6 mil quilômetros para levantar dados, ouvir autoridades federais,
estaduais e municipais, visitar clínicas, comunidades terapêuticas,
ambulatórios especializados e pontos de consumo – foram consultados 28 agentes
públicos, profissionais da área e especialistas. No caminho, visitou 13
municípios que denunciaram alto ou médio problema com crack no mapa da CNM, em
diferentes pontos do território paulista, e conversou com 50 usuários,
ex-usuários, parentes e moradores para montar um diagnóstico do avanço e das
mazelas provocadas pelo crack no interior de São Paulo.
Na
maioria das cidades, a rede pública em geral é deficitária, os profissionais
são despreparados para lidar com a dependência e as ações de governo acabam
sendo feitas sem a integração necessária. Uma combinação de carências que
potencializa os danos em cadeia provocados pelo aumento do consumo abusivo da
droga e extrapola as áreas de saúde e polícia. Além de influir na degradação do
usuário e no aumento da criminalidade, o avanço do crack faz crescer a
população em situação de rua e pode interferir na economia local.
Apesar
de o consumo de crack no Brasil ainda ser menor que o do álcool e o da cocaína
em pó, o tratamento de dependentes da versão fumada da coca é um desafio para
médicos e especialistas. Estudos indicam que, em média, apenas um terço dos
usuários severos consegue se tratar e retomar a vida – os outros dois terços
morrem ou continuam na droga. Para quem pode pagar, a recuperação é uma
realidade mais próxima. Mas, para a grande maioria das pessoas que dependem da
rede pública, os investimentos e programas de enfrentamento ao crack lançados
nos últimos anos pelas diferentes esferas de governo ainda são um benefício
distante – principalmente nas pequenas e médias cidades do interior. Quando há
serviços ou empenho político local, falta a condição adequada para cumprir todo
o ciclo necessário de atendimento – redução ou abstinência de uso,
reaprendizado de como é a vida sem a droga e reinserção nos ambientes familiar
e social.
Há
outro empecilho: embora especialistas e as próprias autoridades concordem que
as políticas dos governos federal e estadual devem caminhar juntas e se
complementar, na prática União e Estado trilham rumos distintos. Enquanto a
primeira prioriza o tratamento domiciliar, com acompanhamento nos Centros de
Atenção Psicossocial (Caps), o segundo aposta na Justiça terapêutica, com
internações – involuntárias ou não – em hospitais especializados e comunidades
terapêuticas para interromper o consumo de vez. Um descompasso que só prejudica
quem tenta vencer o drama da dependência.
Passados
23 anos da primeira apreensão de crack em São Paulo, não há um levantamento
detalhado e confiável que dimensione o universo de usuários da droga no
interior paulista – os governos estadual e federal estimam entre 350 e 400 mil
pessoas no Estado, a unidade da federação mais rica, populosa e desenvolvida,
com 43,6 milhões de habitantes. Enquanto isso, a "raspa da canela do
capeta" avança por todas as regiões e faz do enfrentamento ao problema um
dos principais desafios para cidades médias e pequenas.
O
secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano, admite que a
situação é bastante grave. "O uso do crack surgiu mais acentuadamente nas
grandes cidades e, especialmente, nas metrópoles. Mas temos notado e percebido
que o crack também é droga presente em pequenos e médios municípios",
afirma.
Ibitinga
é o melhor exemplo entre os rincões do sossego de como o consumo desse derivado
da cocaína pode evoluir de maneira similar a uma epidemia e fazer do assunto
prioridade de governo. Uma das 29 estâncias turísticas paulistas, a cidade com
53 mil habitantes, encravada na região central do Estado, recebe até 200 mil
visitantes em suas feiras de confecção – principal fonte de renda dos moradores
e base da economia local.
A
capital nacional do bordado está no grupo de 194 cidades paulistas que
declararam ter alto problema decorrente do consumo de crack para o mapa feito
pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM).
"A
sensação é loca (sic). Fica encanado, a gente paga para ter medo. Não dá futuro
para ninguém, né cara", diz Felipe (nome fictício), de 19 anos, dependente
desde os 15. Após seis meses internado, ele saiu poucos dias antes da
entrevista e foi direto para a "biqueira" (ponto de venda de droga).
"Comprei 20 gramas de crack. Estou aqui faz cinco dias virado (sem
dormir)", conta, em uma área de Ibitinga conhecida como cracolândia –
referência ao local de venda e consumo da droga a céu aberto mais conhecido do
País, na Luz, em São Paulo.
A
reportagem esteve na cracolândia da capital do bordado duas vezes. Em ambas,
encontrou cerca de 20 usuários extremamente magros, de olhos estalados e muito
desconfiados, em um vaivém frenético. "O que vocês querem?",
questiona um rapaz bem vestido, na casa dos 20 anos, sentado em uma charrete
puxada por um cavalo, ao observar a chegada dos jornalistas no meio da tarde.
Em sua
configuração caipira, a "cracolândia" de Ibitinga funciona em um
matagal atrás do cemitério, onde um dia foi um lixão. O terreno fica ao lado de
dois bairros pobres, populares pontos de venda de drogas. Após saber o motivo
da presença da reportagem, o rapaz da charrete, aparentemente o "dono da
boca" (nome usado para o traficante com ponto fixo de venda), autoriza o
trabalho. "Pode filmar", diz, em tom impositivo, apontando um
usuário. "Não vai filmar minha cara", adverte Lobão (nome fictício),
de 37 anos, aparência de 50, enquanto se prepara para fumar. Ele usa boné,
carrega em uma das mãos isqueiro e lata que serve como cachimbo e na outra uma
pedra. "Fui gerente de grande empresa, andei em carrão e hoje não tenho
nada. Vendi tudo."
Lobão e
Felipe fazem parte de uma população aparentemente invisível aos milhares de
turistas que vão a Ibitinga e outras estâncias turísticas do Estado, mas
escancarada para quem quiser ver. "É quase uma cracolândia. As pessoas
identificam o bairro como sendo delas. Todo mundo meio que respeita. Via de
regra, polícia não faz ronda lá", conta Talita Valle, coordenadora do
Núcleo de Saúde Mental da prefeitura, porta de entrada na rede pública para
dependentes em busca de tratamento.
"Está
em todo lugar: na classe baixa, na classe média, na classe alta. Conheço
médico, advogado, pessoas grandes que usam crack", conta Daniel, de 47
anos, interno que virou monitor da única comunidade terapêutica (uma das
modalidades para tratamento de dependentes) local. "Fui o terceiro ou
quarto traficante a vender crack em Ibitinga", conta. Antes, consumia a
maconha e a cocaína que vendia sem que o uso interferisse nos "negócios
criminosos". Com o crack, virou abusador – quem faz uso compulsivo da
droga – e em quatro anos perdeu a família e todos os bens. "O crack tem
essa característica de causar dependência muito mais rápido e deixar a pessoa
muito vulnerável do ponto de vista social", explica Talita.
A
comunidade terapêutica onde Daniel trabalha foi aberta no ano passado pela
Igreja Batista para atender à demanda regional, mas rapidamente ficou lotada de
usuários da cidade – 90% dos internos estão ali por causa de crack. "Vamos
abrir uma nova ainda neste ano", explica o pastor Jorge Torres.
O
prefeito de Ibitinga, Florisvaldo Fiorentino (PSDB), diz priorizar o tema.
"Com relação ao crack, é óbvio que é preocupante em Ibitinga, como é no
Estado e em todo o País. Ibitinga não é uma cidade diferenciada. Também existe
o problema aqui e ele é crescente, como no Estado todo."
Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Grandes Temas –
Segunda-feira, 2 de junho de 2014 – Internet: clique aqui [é a primeira página, ao final, clicar em “próximo
capítulo”].
Estatísticas sobre dependentes causam discussão
Embora
dados sobre o universo do crack sejam considerados essenciais para um
planejamento eficaz de enfrentamento ao problema, as estimativas sobre os
números de viciados no Estado são de pesquisas feitas em grandes cidades, o que
torna desconhecida a realidade vivida nos pequenos municípios e nas áreas
rurais, onde o drama toma proporções maiores por causa da falta de estrutura e
de políticas públicas voltadas a esse tipo de dependência. O último estudo que
trouxe dados específicos sobre o Estado é o 2.º Levantamento Nacional de Álcool
e Drogas (Lenad), de 2012, feito pelo Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Drogas (Inpad) – órgão ligado à
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No levantamento nacional, uma
subamostragem específica para São Paulo revelou que 165 mil pessoas haviam
usado crack um ano antes da consulta e 486 mil, usado a droga ao menos uma vez
na vida.
Foram
sorteadas na pesquisa 40 cidades paulistas – quatro delas visitadas pela
reportagem: Campinas, Campos do Jordão, Martinópolis e Ribeirão Preto – como
amostra para obter um resultado representativo do Estado.
Para o
governo federal, os dados mais confiáveis que norteiam a política nacional de
combate à droga são da Estimativa do Número de Usuários de Crack e/ou Similares
nas Capitais do País, divulgada em setembro. Eles apontam a existência de 350
mil usuários frequentes da droga em São Paulo, aplicando-se o porcentual
verificado nas capitais.
Considerado
o mais recente e completo levantamento feito sobre o tema no País, a pesquisa
abordou também a população invisível para estudos do tipo: aquela que está nos
locais de consumo e acaba não aparecendo em amostragens domiciliares. Foram
entrevistadas 25 mil pessoas nas capitais e grandes cidades do País.
"Temos
uma pesquisa recente que indicou uma prevalência de 0,8% da população
brasileira (1,6 milhão). Estamos falando de quem faz uso regular do crack.
Embora essa pesquisa reflita a prevalência das capitais, a nosso ver ela mostra
um retrato do País. Em São Paulo, a média de uso estaria dentro da média
nacional", afirma o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore
Maximiano. O estudo foi feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria
com pesquisadores da universidade de Princeton, nos Estados Unidos, para a
Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad).
Dependendo
de como é feito o levantamento, no entanto, até os números oficiais podem
divergir. Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, articulador da política
antidrogas paulista, a quantidade de usuários de crack é maior. "Existe 1
milhão no Brasil – 40% no Estado de São Paulo", afirma.
Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Grandes Temas – Segunda-feira, 2 de junho de 2014 – Internet: clique aqui [é a primeira página, ao final, clicar em “próximo capítulo”].
Prazer maior que sexo faz viciado fumar até morrer
Pedras de crack a granel |
"A
primeira vez é difícil de esquecer, mas depois que usa quer fumar até
morrer." A música O Caminho das Pedras, dos rappers do grupo Zona
Proibida, virou hino marginal contra o crack. Nascidos na periferia da capital
paulista, onde a droga mostra seu poder de destruição desde 1989, eles cantam a
síntese de histórias muitos parecidas com as de quem vive ou viveu o ciclo
consumo, abuso e dependência.
O crack
é, na verdade, a cocaína – droga estimulante do sistema nervoso central,
conhecida da medicina desde o século 19, mas usada desde o tempo dos incas. O princípio
ativo da folha de coca é a eritroxilina. Isolada pela primeira vez em 1859 pelo
químico alemão Albert Nieman, chegou a ser indicada para o tratamento de várias
doenças por suas propriedades estimulantes e anestésicas até ser proibida por
causar dependência.
A
versão fumada da cocaína com o nome crack surgiu nos Estados Unidos entre 1984
e 1985, em bairros pobres de Nova York, Los Angeles e Miami. Seu precursor, no
início daquela década, foi o freebasing (cocaína na forma de base livre),
obtido da mistura de éter sulfúrico ao pó em meio aquoso aquecido. O processo
transformava a droga em cristais para serem fumados. Como a mistura usada para
conversão do pó em pedra – quase sempre feita em laboratórios caseiros –
oferecia risco de explosão, caiu em desuso.
Para
conseguir continuar fumando a cocaína, usuários descobriram que o mesmo
resultado poderia ser obtido trocando éter sulfúrico por bicarbonato de sódio
com amônia, na alquimia do pó para a pedra. A partir daí, ele se proliferou
como epidemia nos Estados Unidos, virou a "droga dos excluídos", a
"criptonita dos pobres" – pelo poder energizante e eufórico – e
ganhou nome: crack, por causa dos estalos (cracking) produzidos pelos cristais
queimando. No Brasil, os primeiros relatos de consumo da droga são de 1989, nos
bairros de São Mateus, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, na periferia da zona
leste paulistana. Seis anos depois, ela já era considerada uma epidemia.
O que
faz do crack uma droga mais potente e perigosa para o usuário é sua forma de
absorção pelo organismo. Por ser fumado, a rapidez e a intensidade com que age
no cérebro são muito maiores. "O crack é a própria cocaína, mas em forma
fumada. Qual é o problema disso? Ao fumar, você consegue atingir níveis
sanguíneos muito altos em curto período de tempo. O potencial de dependência é
maior e o potencial de agressividade ao organismo, muito maior. Nesse sentido,
é mais perigoso", explica o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira,
especialista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor Programa
de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad).
No
organismo, o crack leva de 8 a 15 segundos para chegar ao cérebro, graças à
eficiente absorção dos alvéolos pulmonares. São eles que jogam a droga em peso
na corrente sanguínea – no caso da cocaína cheirada, o efeito pode demorar até
15 minutos. Além de mais rápido, o crack também é mais potente. Estudos apontam
que, quando a droga é fumada, 90% da eritroxilina (princípio ativo da coca)
chega até o cérebro – se inalada, só 30% atingem o destino.
A
química do crack causa uma baderna no corpo, com efeitos desejados – como
sensação de mais energia, hiperatividade, bem-estar, elevação do estado de
alerta – e indesejados – como aumento dos batimentos cardíacos, da pressão
sanguínea e até alucinações, depressão, pânico e paranoia. Foi desses efeitos
adversos que surgiram dois termos informalmente utilizados para classificar os
dependentes de crack: "noia" e "zumbi". Carregados de
preconceito, ambos fazem referência ao comportamento-padrão da maioria dos
usuários compulsivos da droga: paranoico e insone – virando noites e noites
acordado, por causa da exacerbação do estado de atenção. No submundo dos
"mocós" e das cracolândias, esses apelidos acabaram absorvidos e é
comum até os próprios dependentes se tratarem assim.
"A
gente não pode dar o primeiro trago. Se der, pode ter certeza: fica quatro a
cinco dias invernado (usando a droga)", conta João (nome fictício), de 29
anos, que começou a usar crack aos 12. Depois de uma internação em Bebedouro,
município com 75 mil habitantes na região norte do Estado, ele conta que foi
direto para a “biqueira”. "Achei rápido. Um mototáxi me levou e deixou na
porta do traficante. Fiquei uma noite e um dia fumando, R$ 600, no meio do
mato, sozinho com uma garrafa de 51, dois maços de cigarro, um BIC (isqueiro) e
20 gramas de pedra", conta ele, em nova tentativa de tratamento, no 13.º
dia sem fumar crack, depois de 13 anos de uso. "De repente, você começa a
ver trem rastejando no chão, barulho de viatura, sai correndo, perde droga,
perde as coisas. Nesse dia, eu perdi R$ 200 no meio do mato por causa do
maldito do crack. Com vergonha da minha mãe, voltei direto para a rua."
Luciano,
de 35 anos, começou a usar a droga há 19 e até já ajudou a produzir crack. Ele
trabalhou em um laboratório do crime onde era feita a transformação da
pasta-base da cocaína em pedra, em Atibaia, de onde a droga era distribuída para
a capital e o restante do Estado. "O crack vicia tanto porque é muito,
muito forte. A primeira vez que você fuma, você sempre vai querer a segunda, a
terceira e daí em diante vai.... É doce. Se você nunca usou, não tem como
descrever", explica, hoje em uma comunidade terapêutica de Ibitinga.
A
sensação de gosto doce é relatada pela maioria dos usuários. Por isso, como
técnica alternativa para ajudar a suprir a carência da droga, balas costumam
ser distribuídas aos pacientes. "Agora o crack bom não precisa ser doce,
não precisa ter sabor de nada. Só tem de bater forte na sua mente, fazer você
ter aquele momento, paralisar você naquele momento. Esse é o crack bom",
diz Luciano.
O crack sendo fumado por um dependente |
"Não
tenho mais sensação de loucura. Remorso. Passa rápido. Para mim, é como acabei
de falar, dá remorso. Pelo fato de passar o tempo, você usou, né... Acabou que
... acabou sendo usado né...", diz Sid (nome fictício), viciado há seis
anos, ao tentar descrever a sensação provocada pela droga logo após fumá-la em
plena luz do dia, sentado na calçada de uma avenida movimentada de São José do
Rio Preto. "Só eloquência... aquela sensação de euforia, só desespero...
mais nada." Não passa das 15 horas e é a quinta pedra do dia que ele usa.
O
prazer que o crack causa – narrado por quase todos os usuários – e seu
potencial de vício estão diretamente ligados aos efeitos provocados por ele no
sistema de recompensa do cérebro. Artificialmente, eles geram uma sensação de
prazer, bem-estar e euforia em grau muito mais elevado, por exemplo, que os
gerados naturalmente pelo sexo ou por uma situação que causa felicidade.
"É
o prazer de um orgasmo, irmão. Uma vez minha vizinha perguntou isso: 'o crack é
bom?' Eu disse: 'Vixe, a droga é a coisa mais gostosa que tem, é melhor que
sexo'", conta Jimi (nome fictício), de 39 anos, em uma das
minicracolândias de São José do Rio Preto. "Crack dá grande prazer. Um
jovem falou comigo outro dia que é 22 vezes mais forte que o sexo", confirma
o padre Haroldo Rham, referência no tratamento de dependentes no interior.
A
principal substância envolvida nessa rápida e potente sensação de prazer criada
artificialmente é a dopamina – neurotransmissor que age entre neurônios
conduzindo mensagens do cérebro ao resto do corpo. Quando realizamos algo
prazeroso, a dopamina é liberada, cai no espaço entre os neurônios (chamado
sinapse) e, como uma chave entrando na fechadura, conecta-se a outro neurônio,
passando mensagem de prazer. A dopamina que sobra volta ao neurônio que emitiu
o sinal e o prazer acaba. Quando o crack chega ao cérebro, ele fecha no
neurônio que emitiu o sinal os canais de recaptura da dopamina, fazendo com que
ela fique mais tempo emitindo a mensagem. É a alta dosagem da dopamina e de
outros dois neurotransmissores (serotonina e noradrenalina) no sistema de
recompensa que superestimula os músculos do corpo, causando sensações de
aumento de energia, bem-estar e euforia.
A
coordenadora de Saúde Mental da Prefeitura de São José do Rio Preto, Daniela
Terada, avalia que o crack é hoje o maior risco entre as drogas em circulação
no País. "É a mais forte e de adição mais violenta no Brasil. O indivíduo
deixa de ser produtivo, de ter vínculo com outras pessoas – mais do que um
usuário de álcool – e perde as referências e as condições gerais de
saúde."
Alexandre
(nome fictício), de 33 anos, que descobriu o crack há oito, confirma. "Foi
tudo muito rápido. Quando começou o crack, já me internei rapidamente, foi
avassalador. Comecei a emagrecer muito e a virar dois dias seguidos sem
aparecer em casa. Com a cocaína eu voltava, mas com o crack não conseguia mais.
Estamos falando de uma epidemia. Tirando a heroína, que não se usa no Brasil, é
a droga mais violenta." Em tratamento em Vera Cruz, no Centro-Oeste
paulista, ele conta como descobriu a droga. "Acabou a cocaína, eu falei
(para um amigo): ‘Posso experimentar o crack’. Ele me deixou usar. Depois daí,
nunca mais cheirei cocaína."
A
rapidez e a potência com que a droga age no cérebro estão relacionadas ao maior
risco de o usuário virar dependente. No livro O Tratamento do Usuário de Crack
(Editora Artmed), os psiquiatras Ronaldo Laranjeira e Marcelo Ribeiro afirmam
que, quanto mais instantâneo, intenso e efêmero o efeito da droga, maior a
possibilidade de ela ser consumida novamente, o que leva ao uso compulsivo.
Enquanto o efeito da cocaína inalada pode durar até uma hora, no crack ele
passa em média em 15 minutos.
"Você
sente o prazer no primeiro trago. O primeiro é o melhor. Depois, nos outros
você vai indo atrás do primeiro, vai buscando. Um só não vai satisfazer não.
Você quer um, outro, outro, outro. Aí, R$ 200, R$ 300, o que tiver no bolso
você leva", explica Carlos, em tratamento no Centro de Atenção
Psicossocial (Caps) de Garça.
Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Grandes Temas – Segunda-feira, 2 de junho de 2014 – Internet: clique aqui [é a primeira página, ao final, clicar em “próximo capítulo”].
Epidemia ou não?
O
alastramento do crack nas pequenas e médias cidades paulistas nos últimos dez
anos e sua maior visibilidade fizeram com que especialistas e autoridades
passassem a tratá-lo como "problema de saúde pública de primeira
ordem". Mas a conceituação se é ou não epidemia é controversa.
Um dos critérios
para definir a existência do fenômeno é o crescimento expressivo de casos em
determinado período. Segundo alguns especialistas, como ainda não há dados
fundamentados sobre esse crescimento abrupto em pesquisas no Estado, não se
pode admitir o termo cientificamente. É o que pensa, por exemplo, o diretor do
Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad) Dartiu Xavier da
Silveira. "Teve muitas pessoas falando sobre aumento de números (de crack)
e eles foram chutados."
Na
direção contrária, o coordenador do principal programa do governo do Estado
para tratamento de dependentes e da política antidrogas, Ronaldo Laranjeira, é
um dos principais defensores da tese de que o crack avança como epidemia.
"O governo federal negou durante muito tempo, mas o nome do que está
acontecendo é epidemia."
Um
indicativo desse crescimento foi revelado no levantamento da frente
parlamentar. Entre 2010 e 2011, registrou-se aumento no porcentual de cidades
que têm o crack como droga prevalente nos atendimentos. De um ano para outro, o
índice cresceu mais de 10 pontos porcentuais.
Já o
responsável pela área no governo federal prefere não falar em epidemia, mas diz
que a resposta ao avanço do crack tem de ser dada como quando se enfrenta uma
doença que efetivamente se prolifera rapidamente. "Sei que esse tema – se
tem ou não epidemia – passou a ser usado quase como uma queda de braço. O que
posso afirmar é que o problema é grave e o País tem cada vez mais buscado
instrumentos, recursos e meios para enfrentá-lo", garante o secretário
nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano.
Internar para recuperar
Padre Haroldo Rahm (Campinas, SP) - fundador da primeira comunidade terapêutica para dependente de drogas como o crack |
Na
maior parte dos casos, o tratamento não requer internação e, quando ela é feita
sem necessidade, pode levar até mesmo a um aumento do consumo nas recaídas,
afirmam especialistas. Contrário à política de internações, o psiquiatra Dartiu
Xavier Silveira, diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes
(Proad), diz que o melhor modelo é o ambulatorial, com ênfase na redução de
danos. "O problema dos Caps AD é que são em número insuficiente e as
equipes não são suficientemente bem treinadas. Conheço alguns que são modelo de
intervenção. Mas, se todos os Caps AD fossem como esses, o Brasil estaria muito
melhor e não precisaria discutir coisas abjetas, do tipo internação compulsória
e Justiça terapêutica."
No
governo do Estado, as internações têm sido defendidas como necessidade
crescente não só na capital como também no interior. A Secretaria de Estado da
Saúde afirma que mais que dobrou o número de leitos especializados para
tratamento desses dependentes entre 2011 e 2012.
Um dos
centros considerados modelo para o enfrentamento ao crack no Estado foi o
inaugurado em novembro em Botucatu. Primeiro hospital público do País destinado
a tratamento e reabilitação de dependentes, o espaço oferecerá 76 leitos quando
entrar em pleno funcionamento – hoje são 50.
O
Estadão visitou a clínica, que pretende ser uma alternativa aos hospitais
psiquiátricos. A unidade faz internações de curto prazo. Depois, encaminha os
pacientes a serviços ambulatoriais, dos Caps ou de comunidades terapêuticas.
"As pessoas acham que a internação é a solução. Ela não é, ela é parte de
um processo. Tem um monte de casos que não precisariam da internação. O
propósito é fazer parte de um processo de tratamento. Uma vez dependente
químico, você vai tratar disso o resto da vida", diz a diretora do
hospital, Janice Megid.
Um dos
problemas da internação de curto período é o risco de recaída. Usuários ouvidos
pela reportagem, em fase inicial de internação, seja na clínica de Botucatu ou
em comunidades terapêuticas particulares e mantidas por entidades, afirmaram
não estar preparados para retomar a vida.
"Eu
não tô pronto para ir para a rua. São muitos anos de uso. Aqui são 15 ou 20 dias,
mas eu vou tentar ver se fico um mês pelo menos, senão vou tentar outra
clínica. Aqui a gente não tem contato com droga, não entra álcool, não entra
nada. É da porta para fora que você vai ver o mundo real. Se eu saio na rua e
um amigo meu chega com a droga ali, com 20 dias eu vou usar", conta
Aderval, que é de São Manuel, cidade com 38 mil habitantes que também figura
entre as que declararam alto problema no Observatório do Crack.
Uma
modalidade vista como saída pelos governos federal e estadual para dar conta da
demanda crescente de dependentes é a internação em comunidades terapêuticas.
Nelas, o usuário vive com outros viciados por períodos que vão de seis meses a
um ano e o uso do crack tem de ser completamente interrompido. O fundamento de
tratamento nesses ambientes, segundo a Federação Brasileira de Comunidades
Terapêuticas (Febract), é a terapia – em grupo e individual – com ênfase na
espiritualidade, uso da filosofia dos 12 passos criada para o tratamento do
alcoolismo e depois adaptada aos Narcóticos Anônimos, tempo para se reorganizar
sem a droga e busca por reestabelecer vínculos com a família e a sociedade.
Apesar
de muitas comunidades serem mantidas por igrejas, entidades filantrópicas e
fundações, há um mercado crescente de unidades particulares – muitas abertas
por ex-usuários de droga, que viram no crack um bom negócio. Parte dessas
comunidades virou apenas casas de acolhimento, com alto índice de recaída e
insucesso de tratamentos. "Nós sabemos que há pessoas seríssimas que
estão envergonhadas do alastramento de comunidades terapêuticas. Criou-se um
mercado vantajoso", denuncia o presidente da Associação Brasileira de
Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva.
"Temos
intensificado bastante a fiscalização", responde Vitore Maximiano,
secretário nacional de Políticas sobre Drogas (Senad). "Não é só com
voluntarismo que conseguiremos vagas qualificadas. É importante que as
comunidades tenham um espaço digno. É muito sério o acolhimento de pessoas que
estão às voltas com a dependência química." Entre 2006 e 2007, foi feito o
último grande levantamento de entidades que atendem dependentes no Brasil.
Foram encontrados 9.503 serviços governamentais e não governamentais.
O
governo paulista também aposta nas comunidades como um de seus principais focos
para tratamento de usuários. O Programa Recomeço, carro-chefe da política
estadual, prevê o repasse de dinheiro a essas entidades. "Temos 1,2 mil
leitos de desintoxicação e estamos chegando a mais de 2 mil leitos de
comunidades terapêuticas. Esses são os dois eixos do Programa Recomeço: o
sistema médico de tratamento e o sistema terapêutico de recuperação",
explica Ronaldo Laranjeira, coordenador do Recomeço. "A gente espera que
vá atingir o Estado como um todo."
Uma
crítica comum sobre o tratamento nas comunidades terapêuticas é o preço.
Algumas chegam a cobrar mais de R$ 20 mil por mês, mas, em média, com R$ 3 mil
é possível achar vaga em uma unidade séria no interior. Só agora Estado e
governo federal passaram a pagar leitos nessas unidades, via repasse de verbas
às comunidades. A União mantém dez unidades de acolhimento em São Paulo e
pretende chegar a 70 até 2015, com um investimento de R$ 4,8 milhões. Também
prevê mais R$ 1,8 milhão em 382 leitos de enfermaria especializada. "No
âmbito do Crack é Possível Vencer, para atividades mais simples, que não
demandam a instalação de equipamento, como o financiamento de comunidades
terapêuticas, conseguimos avançar. Até meados de 2013, não tínhamos nenhuma
vaga financiada. Hoje, temos 6.500 em todo o País e a meta de contratar 10 mil
até o fim de 2014", revela Maximiano.
Na
pesquisa da Fiocruz sobre o perfil dos dependentes, um dado chama a atenção: a
gratuidade do serviço é o principal fator considerado por quem busca
atendimento na rede pública . "Qual política precisa no Brasil? A do tratamento
gratuito", defende o coordenador de Políticas sobre Drogas de Campinas,
Nelson Hossri. A cidade mais populosa do interior paulista foi a primeira a ter
os cartões Recomeço no Estado – já recebeu 200 cartões e espera chegar aos 500.
Entrada da "Fazendo do Senhor Jesus" - Campinas (SP) |
Na
Fazenda do Senhor Jesus, em Campinas, primeira comunidade aberta no Brasil, em
1978, falta vaga para tanta procura. O Estadão passou um dia em suas duas
unidades. Afastada da cidade, a fazenda é cenário do primeiro momento da
internação, que dura seis meses. Nela, o objetivo é fazer o dependente
interromper o uso do crack e estabilizar o organismo para que reaprenda a viver
sem a droga. O paciente pratica atividades laborais, como cuidar da roça,
limpar ambientes e cozinhar a própria refeição. Visitas só são permitidas nos
fins de semana e há horários e regras fixas, além de terapia, atividades
físicas e muito contato com gente com problemas semelhantes. "Falo para
eles que o melhor terapeuta aqui é um falando com o outro, não eu", diz o
padre Haroldo Rham, responsável pela comunidade. Adorado pelos internos, ele é
saudado sempre com o cumprimento "Alegria, padre!".
Na
outra unidade, na área urbana de Campinas, ocorre o segundo momento do
tratamento, no qual o dependente fica três ou quatro meses. Nessa etapa, os
focos são a reinserção social, a reaproximação com a família e o retorno ao
emprego. "Em resumo, se pode curar um craqueiro com motivação, amor, 12
passos, tempo, tempo, tempo conosco e bom exemplo", ensina Rham.
Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Grandes Temas – Segunda-feira, 2 de junho de 2014 – Internet: clique aqui [é a primeira página, ao final, clicar em “próximo capítulo”].
Vale a pena ler o conjunto da reportagem do jornal "Estadão"!!!
Para ter acesso à íntegra desta extensa matéria, clique aqui.
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