«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

terça-feira, 3 de junho de 2014

A INVASÃO DAS DROGAS!!!

CRACK - A GEOGRAFIA DO VÍCIO

Ricardo Brandt
"A raspa da canela do capeta." Assim era conhecido o crack quando surgiu em São Paulo, na periferia da zona leste. Era fim dos anos 1980 e o Brasil vivia os desafios da redemocratização, após 20 anos de ditadura militar. Subproduto sujo e barato da cocaína, a droga que deve seu nome aos estalos que emite ao ser queimada logo se tornou o prazer e a praga dos excluídos, de farrapos humanos que pouco importavam à sociedade e, consequentemente, ao poder público.

Passados mais de 20 anos, esse cenário mudou: hoje, o crack está presente em todos os cantos do Estado. Dos grandes centros urbanos, migrou para cidades pequenas e afastadas, antigos rincões do sossego. Também escalou a pirâmide social e chegou às mansões. Com a mesma rapidez com que corrompe e danifica o organismo, virou a principal droga ilícita tanto em municípios pobres e pouco desenvolvidos quanto em regiões de economia aquecida, estâncias turísticas, balneários, paraísos litorâneos e na roça.

Em mapeamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), atualizado em tempo real pelas prefeituras, 194 cidades paulistas – das 556 participantes – declararam ter alto problema decorrente de consumo de crack. Entre elas estão Águas de Lindoia e Serra Negra (estâncias hidrominerais do Circuito das Águas), Campos do Jordão (a "Suíça brasileira"), Ilhabela (reduto de Mata Atlântica no litoral norte), Cananeia (patrimônio da humanidade), além de cidades-referência, como Ibitinga (a capital do bordado), Monte Alegre do Sul (capital do morango), São Roque (terra do vinho), Louveira (2.º maior PIB per capita do País).

Diferentemente das regiões metropolitanas, onde dependentes se concentram nas cracolândias em locais públicos, à vista de todos, nos recantos de sossego do interior o crack geralmente avança de forma oculta, com usuários "invisíveis" escondidos em casas de consumo, "mocós", no meio do mato, em pontos de venda conhecidos como "biqueiras" ou "bocas". São cidades pequenas, onde todos se conhecem, como Fernão (1,5 mil habitantes), Martinópolis (24 mil), Vera Cruz (10 mil), Gavião Peixoto (4,4 mil), Garça (43 mil) e Registro (54 mil).

Durante quatro meses, a reportagem do Estadão percorreu 6,6 mil quilômetros para levantar dados, ouvir autoridades federais, estaduais e municipais, visitar clínicas, comunidades terapêuticas, ambulatórios especializados e pontos de consumo – foram consultados 28 agentes públicos, profissionais da área e especialistas. No caminho, visitou 13 municípios que denunciaram alto ou médio problema com crack no mapa da CNM, em diferentes pontos do território paulista, e conversou com 50 usuários, ex-usuários, parentes e moradores para montar um diagnóstico do avanço e das mazelas provocadas pelo crack no interior de São Paulo.

Na maioria das cidades, a rede pública em geral é deficitária, os profissionais são despreparados para lidar com a dependência e as ações de governo acabam sendo feitas sem a integração necessária. Uma combinação de carências que potencializa os danos em cadeia provocados pelo aumento do consumo abusivo da droga e extrapola as áreas de saúde e polícia. Além de influir na degradação do usuário e no aumento da criminalidade, o avanço do crack faz crescer a população em situação de rua e pode interferir na economia local.

Apesar de o consumo de crack no Brasil ainda ser menor que o do álcool e o da cocaína em pó, o tratamento de dependentes da versão fumada da coca é um desafio para médicos e especialistas. Estudos indicam que, em média, apenas um terço dos usuários severos consegue se tratar e retomar a vida – os outros dois terços morrem ou continuam na droga. Para quem pode pagar, a recuperação é uma realidade mais próxima. Mas, para a grande maioria das pessoas que dependem da rede pública, os investimentos e programas de enfrentamento ao crack lançados nos últimos anos pelas diferentes esferas de governo ainda são um benefício distante – principalmente nas pequenas e médias cidades do interior. Quando há serviços ou empenho político local, falta a condição adequada para cumprir todo o ciclo necessário de atendimento – redução ou abstinência de uso, reaprendizado de como é a vida sem a droga e reinserção nos ambientes familiar e social.

Há outro empecilho: embora especialistas e as próprias autoridades concordem que as políticas dos governos federal e estadual devem caminhar juntas e se complementar, na prática União e Estado trilham rumos distintos. Enquanto a primeira prioriza o tratamento domiciliar, com acompanhamento nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), o segundo aposta na Justiça terapêutica, com internações – involuntárias ou não – em hospitais especializados e comunidades terapêuticas para interromper o consumo de vez. Um descompasso que só prejudica quem tenta vencer o drama da dependência.

Passados 23 anos da primeira apreensão de crack em São Paulo, não há um levantamento detalhado e confiável que dimensione o universo de usuários da droga no interior paulista – os governos estadual e federal estimam entre 350 e 400 mil pessoas no Estado, a unidade da federação mais rica, populosa e desenvolvida, com 43,6 milhões de habitantes. Enquanto isso, a "raspa da canela do capeta" avança por todas as regiões e faz do enfrentamento ao problema um dos principais desafios para cidades médias e pequenas.

O secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano, admite que a situação é bastante grave. "O uso do crack surgiu mais acentuadamente nas grandes cidades e, especialmente, nas metrópoles. Mas temos notado e percebido que o crack também é droga presente em pequenos e médios municípios", afirma.


Ibitinga é o melhor exemplo entre os rincões do sossego de como o consumo desse derivado da cocaína pode evoluir de maneira similar a uma epidemia e fazer do assunto prioridade de governo. Uma das 29 estâncias turísticas paulistas, a cidade com 53 mil habitantes, encravada na região central do Estado, recebe até 200 mil visitantes em suas feiras de confecção – principal fonte de renda dos moradores e base da economia local.

A capital nacional do bordado está no grupo de 194 cidades paulistas que declararam ter alto problema decorrente do consumo de crack para o mapa feito pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM).

"A sensação é loca (sic). Fica encanado, a gente paga para ter medo. Não dá futuro para ninguém, né cara", diz Felipe (nome fictício), de 19 anos, dependente desde os 15. Após seis meses internado, ele saiu poucos dias antes da entrevista e foi direto para a "biqueira" (ponto de venda de droga). "Comprei 20 gramas de crack. Estou aqui faz cinco dias virado (sem dormir)", conta, em uma área de Ibitinga conhecida como cracolândia – referência ao local de venda e consumo da droga a céu aberto mais conhecido do País, na Luz, em São Paulo.

A reportagem esteve na cracolândia da capital do bordado duas vezes. Em ambas, encontrou cerca de 20 usuários extremamente magros, de olhos estalados e muito desconfiados, em um vaivém frenético. "O que vocês querem?", questiona um rapaz bem vestido, na casa dos 20 anos, sentado em uma charrete puxada por um cavalo, ao observar a chegada dos jornalistas no meio da tarde.

Em sua configuração caipira, a "cracolândia" de Ibitinga funciona em um matagal atrás do cemitério, onde um dia foi um lixão. O terreno fica ao lado de dois bairros pobres, populares pontos de venda de drogas. Após saber o motivo da presença da reportagem, o rapaz da charrete, aparentemente o "dono da boca" (nome usado para o traficante com ponto fixo de venda), autoriza o trabalho. "Pode filmar", diz, em tom impositivo, apontando um usuário. "Não vai filmar minha cara", adverte Lobão (nome fictício), de 37 anos, aparência de 50, enquanto se prepara para fumar. Ele usa boné, carrega em uma das mãos isqueiro e lata que serve como cachimbo e na outra uma pedra. "Fui gerente de grande empresa, andei em carrão e hoje não tenho nada. Vendi tudo."

Lobão e Felipe fazem parte de uma população aparentemente invisível aos milhares de turistas que vão a Ibitinga e outras estâncias turísticas do Estado, mas escancarada para quem quiser ver. "É quase uma cracolândia. As pessoas identificam o bairro como sendo delas. Todo mundo meio que respeita. Via de regra, polícia não faz ronda lá", conta Talita Valle, coordenadora do Núcleo de Saúde Mental da prefeitura, porta de entrada na rede pública para dependentes em busca de tratamento.

"Está em todo lugar: na classe baixa, na classe média, na classe alta. Conheço médico, advogado, pessoas grandes que usam crack", conta Daniel, de 47 anos, interno que virou monitor da única comunidade terapêutica (uma das modalidades para tratamento de dependentes) local. "Fui o terceiro ou quarto traficante a vender crack em Ibitinga", conta. Antes, consumia a maconha e a cocaína que vendia sem que o uso interferisse nos "negócios criminosos". Com o crack, virou abusador – quem faz uso compulsivo da droga – e em quatro anos perdeu a família e todos os bens. "O crack tem essa característica de causar dependência muito mais rápido e deixar a pessoa muito vulnerável do ponto de vista social", explica Talita.

A comunidade terapêutica onde Daniel trabalha foi aberta no ano passado pela Igreja Batista para atender à demanda regional, mas rapidamente ficou lotada de usuários da cidade – 90% dos internos estão ali por causa de crack. "Vamos abrir uma nova ainda neste ano", explica o pastor Jorge Torres.


O prefeito de Ibitinga, Florisvaldo Fiorentino (PSDB), diz priorizar o tema. "Com relação ao crack, é óbvio que é preocupante em Ibitinga, como é no Estado e em todo o País. Ibitinga não é uma cidade diferenciada. Também existe o problema aqui e ele é crescente, como no Estado todo."

Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Grandes Temas – Segunda-feira, 2 de junho de 2014 – Internet: clique aqui [é a primeira página, ao final, clicar em “próximo capítulo”].

Estatísticas sobre dependentes causam discussão
 
CONSUMO PELO BRASIL
De cima para baixo:
Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste, Sul e Norte
Embora dados sobre o universo do crack sejam considerados essenciais para um planejamento eficaz de enfrentamento ao problema, as estimativas sobre os números de viciados no Estado são de pesquisas feitas em grandes cidades, o que torna desconhecida a realidade vivida nos pequenos municípios e nas áreas rurais, onde o drama toma proporções maiores por causa da falta de estrutura e de políticas públicas voltadas a esse tipo de dependência. O último estudo que trouxe dados específicos sobre o Estado é o 2.º Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), de 2012, feito pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Drogas (Inpad) – órgão ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No levantamento nacional, uma subamostragem específica para São Paulo revelou que 165 mil pessoas haviam usado crack um ano antes da consulta e 486 mil, usado a droga ao menos uma vez na vida.

Foram sorteadas na pesquisa 40 cidades paulistas – quatro delas visitadas pela reportagem: Campinas, Campos do Jordão, Martinópolis e Ribeirão Preto – como amostra para obter um resultado representativo do Estado.

Para o governo federal, os dados mais confiáveis que norteiam a política nacional de combate à droga são da Estimativa do Número de Usuários de Crack e/ou Similares nas Capitais do País, divulgada em setembro. Eles apontam a existência de 350 mil usuários frequentes da droga em São Paulo, aplicando-se o porcentual verificado nas capitais.

Considerado o mais recente e completo levantamento feito sobre o tema no País, a pesquisa abordou também a população invisível para estudos do tipo: aquela que está nos locais de consumo e acaba não aparecendo em amostragens domiciliares. Foram entrevistadas 25 mil pessoas nas capitais e grandes cidades do País.

"Temos uma pesquisa recente que indicou uma prevalência de 0,8% da população brasileira (1,6 milhão). Estamos falando de quem faz uso regular do crack. Embora essa pesquisa reflita a prevalência das capitais, a nosso ver ela mostra um retrato do País. Em São Paulo, a média de uso estaria dentro da média nacional", afirma o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano. O estudo foi feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com pesquisadores da universidade de Princeton, nos Estados Unidos, para a Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad).

Dependendo de como é feito o levantamento, no entanto, até os números oficiais podem divergir. Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, articulador da política antidrogas paulista, a quantidade de usuários de crack é maior. "Existe 1 milhão no Brasil – 40% no Estado de São Paulo", afirma.

Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Grandes Temas – Segunda-feira, 2 de junho de 2014 – Internet: clique aqui [é a primeira página, ao final, clicar em “próximo capítulo”].

Prazer maior que sexo faz viciado fumar até morrer
Pedras de crack a granel

"A primeira vez é difícil de esquecer, mas depois que usa quer fumar até morrer." A música O Caminho das Pedras, dos rappers do grupo Zona Proibida, virou hino marginal contra o crack. Nascidos na periferia da capital paulista, onde a droga mostra seu poder de destruição desde 1989, eles cantam a síntese de histórias muitos parecidas com as de quem vive ou viveu o ciclo consumo, abuso e dependência.

O crack é, na verdade, a cocaína – droga estimulante do sistema nervoso central, conhecida da medicina desde o século 19, mas usada desde o tempo dos incas. O princípio ativo da folha de coca é a eritroxilina. Isolada pela primeira vez em 1859 pelo químico alemão Albert Nieman, chegou a ser indicada para o tratamento de várias doenças por suas propriedades estimulantes e anestésicas até ser proibida por causar dependência.

A versão fumada da cocaína com o nome crack surgiu nos Estados Unidos entre 1984 e 1985, em bairros pobres de Nova York, Los Angeles e Miami. Seu precursor, no início daquela década, foi o freebasing (cocaína na forma de base livre), obtido da mistura de éter sulfúrico ao pó em meio aquoso aquecido. O processo transformava a droga em cristais para serem fumados. Como a mistura usada para conversão do pó em pedra – quase sempre feita em laboratórios caseiros – oferecia risco de explosão, caiu em desuso.

Para conseguir continuar fumando a cocaína, usuários descobriram que o mesmo resultado poderia ser obtido trocando éter sulfúrico por bicarbonato de sódio com amônia, na alquimia do pó para a pedra. A partir daí, ele se proliferou como epidemia nos Estados Unidos, virou a "droga dos excluídos", a "criptonita dos pobres" – pelo poder energizante e eufórico – e ganhou nome: crack, por causa dos estalos (cracking) produzidos pelos cristais queimando. No Brasil, os primeiros relatos de consumo da droga são de 1989, nos bairros de São Mateus, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, na periferia da zona leste paulistana. Seis anos depois, ela já era considerada uma epidemia.
 O que faz do crack uma droga mais potente e perigosa para o usuário é sua forma de absorção pelo organismo. Por ser fumado, a rapidez e a intensidade com que age no cérebro são muito maiores. "O crack é a própria cocaína, mas em forma fumada. Qual é o problema disso? Ao fumar, você consegue atingir níveis sanguíneos muito altos em curto período de tempo. O potencial de dependência é maior e o potencial de agressividade ao organismo, muito maior. Nesse sentido, é mais perigoso", explica o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, especialista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad).

No organismo, o crack leva de 8 a 15 segundos para chegar ao cérebro, graças à eficiente absorção dos alvéolos pulmonares. São eles que jogam a droga em peso na corrente sanguínea – no caso da cocaína cheirada, o efeito pode demorar até 15 minutos. Além de mais rápido, o crack também é mais potente. Estudos apontam que, quando a droga é fumada, 90% da eritroxilina (princípio ativo da coca) chega até o cérebro – se inalada, só 30% atingem o destino.

A química do crack causa uma baderna no corpo, com efeitos desejados – como sensação de mais energia, hiperatividade, bem-estar, elevação do estado de alerta – e indesejados – como aumento dos batimentos cardíacos, da pressão sanguínea e até alucinações, depressão, pânico e paranoia. Foi desses efeitos adversos que surgiram dois termos informalmente utilizados para classificar os dependentes de crack: "noia" e "zumbi". Carregados de preconceito, ambos fazem referência ao comportamento-padrão da maioria dos usuários compulsivos da droga: paranoico e insone – virando noites e noites acordado, por causa da exacerbação do estado de atenção. No submundo dos "mocós" e das cracolândias, esses apelidos acabaram absorvidos e é comum até os próprios dependentes se tratarem assim.

"A gente não pode dar o primeiro trago. Se der, pode ter certeza: fica quatro a cinco dias invernado (usando a droga)", conta João (nome fictício), de 29 anos, que começou a usar crack aos 12. Depois de uma internação em Bebedouro, município com 75 mil habitantes na região norte do Estado, ele conta que foi direto para a “biqueira”. "Achei rápido. Um mototáxi me levou e deixou na porta do traficante. Fiquei uma noite e um dia fumando, R$ 600, no meio do mato, sozinho com uma garrafa de 51, dois maços de cigarro, um BIC (isqueiro) e 20 gramas de pedra", conta ele, em nova tentativa de tratamento, no 13.º dia sem fumar crack, depois de 13 anos de uso. "De repente, você começa a ver trem rastejando no chão, barulho de viatura, sai correndo, perde droga, perde as coisas. Nesse dia, eu perdi R$ 200 no meio do mato por causa do maldito do crack. Com vergonha da minha mãe, voltei direto para a rua."

Luciano, de 35 anos, começou a usar a droga há 19 e até já ajudou a produzir crack. Ele trabalhou em um laboratório do crime onde era feita a transformação da pasta-base da cocaína em pedra, em Atibaia, de onde a droga era distribuída para a capital e o restante do Estado. "O crack vicia tanto porque é muito, muito forte. A primeira vez que você fuma, você sempre vai querer a segunda, a terceira e daí em diante vai.... É doce. Se você nunca usou, não tem como descrever", explica, hoje em uma comunidade terapêutica de Ibitinga.

A sensação de gosto doce é relatada pela maioria dos usuários. Por isso, como técnica alternativa para ajudar a suprir a carência da droga, balas costumam ser distribuídas aos pacientes. "Agora o crack bom não precisa ser doce, não precisa ter sabor de nada. Só tem de bater forte na sua mente, fazer você ter aquele momento, paralisar você naquele momento. Esse é o crack bom", diz Luciano.
O crack sendo fumado por um dependente

"Não tenho mais sensação de loucura. Remorso. Passa rápido. Para mim, é como acabei de falar, dá remorso. Pelo fato de passar o tempo, você usou, né... Acabou que ... acabou sendo usado né...", diz Sid (nome fictício), viciado há seis anos, ao tentar descrever a sensação provocada pela droga logo após fumá-la em plena luz do dia, sentado na calçada de uma avenida movimentada de São José do Rio Preto. "Só eloquência... aquela sensação de euforia, só desespero... mais nada." Não passa das 15 horas e é a quinta pedra do dia que ele usa.

O prazer que o crack causa – narrado por quase todos os usuários – e seu potencial de vício estão diretamente ligados aos efeitos provocados por ele no sistema de recompensa do cérebro. Artificialmente, eles geram uma sensação de prazer, bem-estar e euforia em grau muito mais elevado, por exemplo, que os gerados naturalmente pelo sexo ou por uma situação que causa felicidade.

"É o prazer de um orgasmo, irmão. Uma vez minha vizinha perguntou isso: 'o crack é bom?' Eu disse: 'Vixe, a droga é a coisa mais gostosa que tem, é melhor que sexo'", conta Jimi (nome fictício), de 39 anos, em uma das minicracolândias de São José do Rio Preto. "Crack dá grande prazer. Um jovem falou comigo outro dia que é 22 vezes mais forte que o sexo", confirma o padre Haroldo Rham, referência no tratamento de dependentes no interior.

A principal substância envolvida nessa rápida e potente sensação de prazer criada artificialmente é a dopamina – neurotransmissor que age entre neurônios conduzindo mensagens do cérebro ao resto do corpo. Quando realizamos algo prazeroso, a dopamina é liberada, cai no espaço entre os neurônios (chamado sinapse) e, como uma chave entrando na fechadura, conecta-se a outro neurônio, passando mensagem de prazer. A dopamina que sobra volta ao neurônio que emitiu o sinal e o prazer acaba. Quando o crack chega ao cérebro, ele fecha no neurônio que emitiu o sinal os canais de recaptura da dopamina, fazendo com que ela fique mais tempo emitindo a mensagem. É a alta dosagem da dopamina e de outros dois neurotransmissores (serotonina e noradrenalina) no sistema de recompensa que superestimula os músculos do corpo, causando sensações de aumento de energia, bem-estar e euforia.

A coordenadora de Saúde Mental da Prefeitura de São José do Rio Preto, Daniela Terada, avalia que o crack é hoje o maior risco entre as drogas em circulação no País. "É a mais forte e de adição mais violenta no Brasil. O indivíduo deixa de ser produtivo, de ter vínculo com outras pessoas – mais do que um usuário de álcool – e perde as referências e as condições gerais de saúde."

Alexandre (nome fictício), de 33 anos, que descobriu o crack há oito, confirma. "Foi tudo muito rápido. Quando começou o crack, já me internei rapidamente, foi avassalador. Comecei a emagrecer muito e a virar dois dias seguidos sem aparecer em casa. Com a cocaína eu voltava, mas com o crack não conseguia mais. Estamos falando de uma epidemia. Tirando a heroína, que não se usa no Brasil, é a droga mais violenta." Em tratamento em Vera Cruz, no Centro-Oeste paulista, ele conta como descobriu a droga. "Acabou a cocaína, eu falei (para um amigo): ‘Posso experimentar o crack’. Ele me deixou usar. Depois daí, nunca mais cheirei cocaína."

A rapidez e a potência com que a droga age no cérebro estão relacionadas ao maior risco de o usuário virar dependente. No livro O Tratamento do Usuário de Crack (Editora Artmed), os psiquiatras Ronaldo Laranjeira e Marcelo Ribeiro afirmam que, quanto mais instantâneo, intenso e efêmero o efeito da droga, maior a possibilidade de ela ser consumida novamente, o que leva ao uso compulsivo. Enquanto o efeito da cocaína inalada pode durar até uma hora, no crack ele passa em média em 15 minutos.

"Você sente o prazer no primeiro trago. O primeiro é o melhor. Depois, nos outros você vai indo atrás do primeiro, vai buscando. Um só não vai satisfazer não. Você quer um, outro, outro, outro. Aí, R$ 200, R$ 300, o que tiver no bolso você leva", explica Carlos, em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de Garça.

Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Grandes Temas – Segunda-feira, 2 de junho de 2014 – Internet: clique aqui [é a primeira página, ao final, clicar em “próximo capítulo”].

Epidemia ou não?

O alastramento do crack nas pequenas e médias cidades paulistas nos últimos dez anos e sua maior visibilidade fizeram com que especialistas e autoridades passassem a tratá-lo como "problema de saúde pública de primeira ordem". Mas a conceituação se é ou não epidemia é controversa.

Um dos critérios para definir a existência do fenômeno é o crescimento expressivo de casos em determinado período. Segundo alguns especialistas, como ainda não há dados fundamentados sobre esse crescimento abrupto em pesquisas no Estado, não se pode admitir o termo cientificamente. É o que pensa, por exemplo, o diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad) Dartiu Xavier da Silveira. "Teve muitas pessoas falando sobre aumento de números (de crack) e eles foram chutados."

Na direção contrária, o coordenador do principal programa do governo do Estado para tratamento de dependentes e da política antidrogas, Ronaldo Laranjeira, é um dos principais defensores da tese de que o crack avança como epidemia. "O governo federal negou durante muito tempo, mas o nome do que está acontecendo é epidemia."

Um indicativo desse crescimento foi revelado no levantamento da frente parlamentar. Entre 2010 e 2011, registrou-se aumento no porcentual de cidades que têm o crack como droga prevalente nos atendimentos. De um ano para outro, o índice cresceu mais de 10 pontos porcentuais.

Já o responsável pela área no governo federal prefere não falar em epidemia, mas diz que a resposta ao avanço do crack tem de ser dada como quando se enfrenta uma doença que efetivamente se prolifera rapidamente. "Sei que esse tema – se tem ou não epidemia – passou a ser usado quase como uma queda de braço. O que posso afirmar é que o problema é grave e o País tem cada vez mais buscado instrumentos, recursos e meios para enfrentá-lo", garante o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano.

Internar para recuperar
 
Padre Haroldo Rahm (Campinas, SP) - fundador da primeira comunidade terapêutica
para dependente de drogas como o crack
Na maior parte dos casos, o tratamento não requer internação e, quando ela é feita sem necessidade, pode levar até mesmo a um aumento do consumo nas recaídas, afirmam especialistas. Contrário à política de internações, o psiquiatra Dartiu Xavier Silveira, diretor do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes (Proad), diz que o melhor modelo é o ambulatorial, com ênfase na redução de danos. "O problema dos Caps AD é que são em número insuficiente e as equipes não são suficientemente bem treinadas. Conheço alguns que são modelo de intervenção. Mas, se todos os Caps AD fossem como esses, o Brasil estaria muito melhor e não precisaria discutir coisas abjetas, do tipo internação compulsória e Justiça terapêutica."

No governo do Estado, as internações têm sido defendidas como necessidade crescente não só na capital como também no interior. A Secretaria de Estado da Saúde afirma que mais que dobrou o número de leitos especializados para tratamento desses dependentes entre 2011 e 2012.

Um dos centros considerados modelo para o enfrentamento ao crack no Estado foi o inaugurado em novembro em Botucatu. Primeiro hospital público do País destinado a tratamento e reabilitação de dependentes, o espaço oferecerá 76 leitos quando entrar em pleno funcionamento – hoje são 50.

O Estadão visitou a clínica, que pretende ser uma alternativa aos hospitais psiquiátricos. A unidade faz internações de curto prazo. Depois, encaminha os pacientes a serviços ambulatoriais, dos Caps ou de comunidades terapêuticas. "As pessoas acham que a internação é a solução. Ela não é, ela é parte de um processo. Tem um monte de casos que não precisariam da internação. O propósito é fazer parte de um processo de tratamento. Uma vez dependente químico, você vai tratar disso o resto da vida", diz a diretora do hospital, Janice Megid.

Um dos problemas da internação de curto período é o risco de recaída. Usuários ouvidos pela reportagem, em fase inicial de internação, seja na clínica de Botucatu ou em comunidades terapêuticas particulares e mantidas por entidades, afirmaram não estar preparados para retomar a vida.

"Eu não tô pronto para ir para a rua. São muitos anos de uso. Aqui são 15 ou 20 dias, mas eu vou tentar ver se fico um mês pelo menos, senão vou tentar outra clínica. Aqui a gente não tem contato com droga, não entra álcool, não entra nada. É da porta para fora que você vai ver o mundo real. Se eu saio na rua e um amigo meu chega com a droga ali, com 20 dias eu vou usar", conta Aderval, que é de São Manuel, cidade com 38 mil habitantes que também figura entre as que declararam alto problema no Observatório do Crack.

Uma modalidade vista como saída pelos governos federal e estadual para dar conta da demanda crescente de dependentes é a internação em comunidades terapêuticas. Nelas, o usuário vive com outros viciados por períodos que vão de seis meses a um ano e o uso do crack tem de ser completamente interrompido. O fundamento de tratamento nesses ambientes, segundo a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract), é a terapia – em grupo e individual – com ênfase na espiritualidade, uso da filosofia dos 12 passos criada para o tratamento do alcoolismo e depois adaptada aos Narcóticos Anônimos, tempo para se reorganizar sem a droga e busca por reestabelecer vínculos com a família e a sociedade.

Apesar de muitas comunidades serem mantidas por igrejas, entidades filantrópicas e fundações, há um mercado crescente de unidades particulares – muitas abertas por ex-usuários de droga, que viram no crack um bom negócio. Parte dessas comunidades virou apenas casas de acolhimento, com alto índice de recaída e insucesso de tratamentos. "Nós sabemos que há pessoas seríssimas que estão envergonhadas do alastramento de comunidades terapêuticas. Criou-se um mercado vantajoso", denuncia o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva.

"Temos intensificado bastante a fiscalização", responde Vitore Maximiano, secretário nacional de Políticas sobre Drogas (Senad). "Não é só com voluntarismo que conseguiremos vagas qualificadas. É importante que as comunidades tenham um espaço digno. É muito sério o acolhimento de pessoas que estão às voltas com a dependência química." Entre 2006 e 2007, foi feito o último grande levantamento de entidades que atendem dependentes no Brasil. Foram encontrados 9.503 serviços governamentais e não governamentais.

O governo paulista também aposta nas comunidades como um de seus principais focos para tratamento de usuários. O Programa Recomeço, carro-chefe da política estadual, prevê o repasse de dinheiro a essas entidades. "Temos 1,2 mil leitos de desintoxicação e estamos chegando a mais de 2 mil leitos de comunidades terapêuticas. Esses são os dois eixos do Programa Recomeço: o sistema médico de tratamento e o sistema terapêutico de recuperação", explica Ronaldo Laranjeira, coordenador do Recomeço. "A gente espera que vá atingir o Estado como um todo."

Uma crítica comum sobre o tratamento nas comunidades terapêuticas é o preço. Algumas chegam a cobrar mais de R$ 20 mil por mês, mas, em média, com R$ 3 mil é possível achar vaga em uma unidade séria no interior. Só agora Estado e governo federal passaram a pagar leitos nessas unidades, via repasse de verbas às comunidades. A União mantém dez unidades de acolhimento em São Paulo e pretende chegar a 70 até 2015, com um investimento de R$ 4,8 milhões. Também prevê mais R$ 1,8 milhão em 382 leitos de enfermaria especializada. "No âmbito do Crack é Possível Vencer, para atividades mais simples, que não demandam a instalação de equipamento, como o financiamento de comunidades terapêuticas, conseguimos avançar. Até meados de 2013, não tínhamos nenhuma vaga financiada. Hoje, temos 6.500 em todo o País e a meta de contratar 10 mil até o fim de 2014", revela Maximiano.

Na pesquisa da Fiocruz sobre o perfil dos dependentes, um dado chama a atenção: a gratuidade do serviço é o principal fator considerado por quem busca atendimento na rede pública . "Qual política precisa no Brasil? A do tratamento gratuito", defende o coordenador de Políticas sobre Drogas de Campinas, Nelson Hossri. A cidade mais populosa do interior paulista foi a primeira a ter os cartões Recomeço no Estado – já recebeu 200 cartões e espera chegar aos 500.
Entrada da "Fazendo do Senhor Jesus" - Campinas (SP)

Na Fazenda do Senhor Jesus, em Campinas, primeira comunidade aberta no Brasil, em 1978, falta vaga para tanta procura. O Estadão passou um dia em suas duas unidades. Afastada da cidade, a fazenda é cenário do primeiro momento da internação, que dura seis meses. Nela, o objetivo é fazer o dependente interromper o uso do crack e estabilizar o organismo para que reaprenda a viver sem a droga. O paciente pratica atividades laborais, como cuidar da roça, limpar ambientes e cozinhar a própria refeição. Visitas só são permitidas nos fins de semana e há horários e regras fixas, além de terapia, atividades físicas e muito contato com gente com problemas semelhantes. "Falo para eles que o melhor terapeuta aqui é um falando com o outro, não eu", diz o padre Haroldo Rham, responsável pela comunidade. Adorado pelos internos, ele é saudado sempre com o cumprimento "Alegria, padre!".

Na outra unidade, na área urbana de Campinas, ocorre o segundo momento do tratamento, no qual o dependente fica três ou quatro meses. Nessa etapa, os focos são a reinserção social, a reaproximação com a família e o retorno ao emprego. "Em resumo, se pode curar um craqueiro com motivação, amor, 12 passos, tempo, tempo, tempo conosco e bom exemplo", ensina Rham.

Fonte: ESTADÃO.COM.BR – Grandes Temas – Segunda-feira, 2 de junho de 2014 – Internet: clique aqui [é a primeira página, ao final, clicar em “próximo capítulo”].

Vale a pena ler o conjunto da reportagem do jornal "Estadão"!!!
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