É possível corrigir o rumo
Entrevista com Thomas Piketty*
Ana Clara Costa
(Paris)
O
economista francês que se tornou célebre com um livro sobre a desigualdade diz
que os governos têm de agir para diminuir o abismo entre pobres e ricos, mas
não prega a revolução
Thomas Piketty em seu escritório (Paris - França) |
Desde
os tempos do britânico John Maynard Keynes, um dos maiores pensadores
econômicos do século XX, o trabalho de um economista não despertava debates tão
acirrados quanto O Capital no Século XXI, do francês Thomas Piketty (que será lançado pela Editora Intrínseca no Brasil
em novembro). O livro traz um apanhado histórico da evolução da riqueza e da
desigualdade nas sociedades capitalistas e propõe remédios para os males que
enxerga — como a adoção de um imposto progressivo de até 80% sobre o patrimônio
dos mais ricos. Piketty rapidamente se tornou vedete de ganhadores do Nobel
alinhados à esquerda, como Paul Krugman e Joseph Stiglitz, mas também viu a
consistência dos dados que embasam seu livro ser duramente contestada — por
exemplo, numa longa investigação do jornal britânico Financial Times.
Em
entrevista a VEJA concedida em seu escritório na Escola de Economia de Paris,
onde leciona, Piketty defendeu sua pesquisa e procurou se dissociar de qualquer
campo político. Diz ele: “Fui beneficiado por pertencer a uma geração que tem
acesso mais fácil aos dados devido à tecnologia e que não é movida
necessariamente pela ideologia”.
O senhor dedicou toda a sua
carreira à pesquisa sobre a desigualdade. Por que o tema o atrai tanto?
Thomas Piketty: A
divisão da riqueza sempre foi um tema central para a política e a economia.
Contudo, minha motivação foi perceber que um tema tão interessante tinha tão
poucos dados disponíveis para pesquisa. Pouquíssimas pessoas estudaram a
desigualdade do ponto de vista histórico. O debate sempre existiu, mas sem
muitos dados que o embasassem. Ninguém havia feito uma pesquisa completa nos
arquivos fiscais de diferentes países para analisar a evolução da desigualdade
no mundo, por exemplo. Parecia ser um trabalho histórico demais para os
economistas e econômico demais para os historiadores. A originalidade da minha
pesquisa está justamente em juntar essas perspectivas e contar a história desse
dinheiro ao longo dos últimos séculos. Fui beneficiado por pertencer a uma
geração que tem acesso mais fácil aos dados devido à tecnologia e que não é
movida necessariamente pela ideologia.
No tom e nas propostas, como a de
taxação da riqueza, semelhante à encampada pelo presidente francês François
Hollande há algum tempo, o senhor parece bastante alinhado com o socialismo
francês.
Thomas Piketty: Faço
parte de uma geração pós-Guerra Fria. Tinha 18 anos quando o Muro de Berlim
caiu. Nunca fui tentado pelo comunismo. Durante a Guerra Fria era difícil
avançar no debate sobre o tema, porque havia um embate político muito forte
entre os dois blocos. O recuo temporal de hoje, aliado aos dados mais
acessíveis, nos permite retomar este que foi um dos grandes debates do século
XIX, a saber, o debate sobre a desigualdade no capitalismo.
O senhor acredita que o capitalismo
é um sistema que precisa ser superado?
Thomas Piketty: Eu
acredito no capitalismo, no livre mercado e na propriedade privada, não apenas
como origem de eficácia e crescimento, mas também como elemento de liberdade
individual. Sou muito positivo quanto a isso. Mas vejo que há um risco se não
mostrarmos que existem formas de repartir os ganhos da globalização de forma
mais equilibrada. Para que o processo virtuoso do capitalismo continue, é
preciso que todos se beneficiem. Caso contrário, surgem tentações como as que
assombram a Europa de hoje. Quando não conseguimos resolver nossos problemas
domésticos e sociais, procuramos um culpado, que pode ser o imigrante, a
Alemanha, a China, o Brasil.
O jornal britânico Financial Times publicou uma reportagem
que contradiz a base de sua pesquisa histórica, que é justamente o aumento da
desigualdade desde 1970. Sua base de dados é inconsistente?
Thomas Piketty: De
forma alguma. Serei bem claro sobre isso. Não há nenhum erro na minha pesquisa.
É claro que ela pode ser melhorada. É por isso que tudo foi colocado na
internet. Mas o ponto é que as pequenas correções feitas pelo Financial Times,
com as quais eu não concordo, têm impacto mínimo no resultado geral. No caso
dos dados sobre o aumento da desigualdade nos Estados Unidos, a pesquisa mais recente
dos economistas Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia,
reforça meu estudo. No caso da Grã-Bretanha, outro foco de críticas do jornal,
é óbvio que pesquisas que são baseadas em declarações entregues pelos próprios
contribuintes não mostram um quadro fiel sobre o aumento da renda em nenhum
lugar do mundo, ao contrário do que afirma o jornal. É um fato: todos os
rankings de riqueza indicam que os mais ricos estão cada vez mais ricos, e cada
vez mais rápido. O que não é errado. É apenas um fato que o jornal quer
ignorar. Eu acho que eles estão com medo do meu livro, mas deveriam estar com
medo do aumento da desigualdade.
O senhor discorda de que o
crescimento econômico, e não as medidas redistributivas criadas por lei, seja a
ferramenta primordial para melhorar a vida das pessoas?
Thomas Piketty: De
forma alguma acredito que o crescimento da riqueza seja algo inútil. Para os
países emergentes, como o Brasil, o crescimento é a chave do desenvolvimento e
da melhora da qualidade de vida. Ele é fundamental, mas não suficiente. É
preciso refletir sobre a desigualdade. O que observamos nos países ricos é que
a riqueza do topo da pirâmide, ou seja, da parcela de 1% da população, avança
três vezes mais rápido que o crescimento do produto interno bruto (PIB). E
isso, eventualmente, vai acontecer com os emergentes também. Até onde isso irá?
Eu não sei. Não posso ter certeza das taxas de crescimento econômico dos anos
que virão. Se os países ricos conseguirem crescer mais de 4% ao ano, por
exemplo, a desigualdade tende a se equilibrar. Mas não há evidências de que
isso deva ocorrer. Então é melhor termos outro plano caso essa taxa de
crescimento não ocorra. O que eu digo no livro é que será preciso transparência
sobre a renda e a riqueza dos indivíduos. Isso servirá para que possamos
produzir informações sobre a evolução do nível de renda e do patrimônio e, em
consequência, fortalecer nossa democracia, para que ela disponha de mais dados
sobre ela mesma.
Capa da obra original de Thomas Piketty: O Capital no Século XXI |
A base para sua tese sobre a
desigualdade é a relação r>g , segundo a qual a renda sobre o capital (r) é
sempre maior que o crescimento econômico (g). Por que, para sua tese, é tão
vital relacionar essas duas variáveis, uma microeconômica e outra macro?
Thomas Piketty: São
duas variáveis certamente de natureza distinta. Mas a comparação entre r e g é
importante, porque uma diferença muito grande entre elas significa que a
desigualdade inicial de riqueza tende a se ampliar a ponto de ameaçar a
estabilidade em muitos países. A ideia de comparar essas duas variáveis não é
novidade. Quando se abre um romance do francês Balzac, que viveu na primeira
metade do século XIX, um período de crescimento nulo e retorno sobre o capital
de 4% a 5% ao ano, essa preocupação está muito clara. Essa relação é,
inclusive, a base da sociedade tradicional, pois permite que um grande
proprietário viva da renda de seu patrimônio. Um ponto crucial do livro é
mostrar que a industrialização não mudou fundamentalmente essa dinâmica. Mesmo
que tenhamos passado de um mundo de crescimento zero para um mundo de
crescimento positivo, a longo prazo a produtividade não se mostrou tão alta
assim, foi de 1% ou 2% ao ano. Uma taxa de crescimento de 4% só é possível para
países ainda em desenvolvimento. Em países que já estão na dianteira do avanço
tecnológico, um crescimento de 4% ao ano parece improvável. Seria necessário um
salto inaudito de produtividade. Ou talvez um choque, como uma guerra mundial
que leve a um longo processo de reconstrução. Suponho que não queremos isso. Em
vez de depender de um milagre de crescimento, deveríamos nos acostumar a viver
com um crescimento positivo mas limitado e pensar no que mais somos capazes de
fazer.
O senhor propõe uma taxação
progressiva de até 80%. O Estado já não abocanha uma fatia grande demais da
riqueza produzida por empresas e indivíduos?
Thomas Piketty: Certamente.
Por isso, minha proposta para a Europa é, na verdade, reduzir os impostos para
a classe média e aumentá-los para os maiores patrimônios. O problema na Europa
é que a concorrência fiscal entre os países faz com que as grandes empresas
paguem muito pouco imposto em comparação às pequenas e médias. Por outro lado,
aumentam-se as taxas sobre os salários, ou o IVA, que é o imposto sobre o
consumo. Então, o problema não é aumentar os impostos, e sim reparti-los
melhor. Por exemplo, o principal tributo sobre o patrimônio nos Estados Unidos
e na Europa é o imposto proporcional sobre o valor dos imóveis. Eu não proponho
aumentá-lo, mas transformá-lo num imposto progressivo sobre o patrimônio
líquido. Se um indivíduo tem um apartamento que vale 300 000
euros, mas foi financiado em 290 000
euros, sua riqueza líquida
sobre esse bem é de 10 000
euros. Hoje, esse indivíduo
paga o mesmo imposto que aquele que não tem
financiamento, herdou seu apartamento ou tem várias casas e uma ampla carteira
de investimentos. Eu proponho mudar essa lógica.
Para aumentar tributos, é preciso
que a população confie no Estado como gestor. Como essa proposta se sustenta se
essa confiança está cada vez menor?
Thomas Piketty: Tem
razão. Uma das complicações nos países ricos é que, ao mesmo tempo em que há um
questionamento sobre a desregulamentação, há um questionamento sobre o papel do
Estado. A desconfiança é totalmente justificável. Nos países ricos hoje, quando
temos 40% ou 50% do PIB em carga tributária, não dá para aumentar mais. Mas há
outras formas de perseguir o mesmo objetivo. Uma delas é permitir um pouco de
inflação, o que traz riscos enormes. A outra é pôr em prática o imposto
progressivo sobre o patrimônio, que atinge de forma concentrada a camada mais
alta da população e, ao mesmo tempo, protege a classe média.
Medidas como essa não
desencorajam o empreendedorismo? Por que se arriscar em um empreendimento
quando se sabe de antemão que seus frutos serão duramente taxados?
Thomas Piketty: Não se
trata de “cortar a cabeça” dos ricos ou interditar o enriquecimento. É crucial
que um país tenha empreendedores, ricos, classe média e pobres. Não há nenhum
problema nisso. Mas precisamos assegurar que a riqueza dos diferentes grupos cresça
num ritmo minimamente coerente. Não precisa ser exatamente o mesmo ritmo, mas,
se a riqueza das classes mais altas cresce três ou quatro vezes mais que as
outras, há um desequilíbrio. É preciso que as instituições democráticas e
fiscais ajudem a retomar o equilíbrio desse crescimento. Mas a taxação não é a
única saída. A meu ver, aliás, a educação é e continuará sendo a maior força de
redução da desigualdade.
O senhor trata executivos com
altos salários como vilões da desigualdade. Salários altos são pagos para
atrair gente capaz e talentosa. Há algo errado com a meritocracia?
Thomas Piketty: As
desigualdade salariais são fundadas na lógica do mérito e da produtividade. O
problema é que o aumento dos salários dos grandes executivos pode ser
justificado por muitos indicadores, menos pelas estatísticas de produtividade
das empresas. Nos Estados Unidos, quando se comparam empresas que pagam a seus
executivos 10 ou 50 milhões de salário anual com empresas que pagam muito
menos, não se verifica que as empresas que pagam mais bônus cresceram mais.
Então, esse discurso precisa ser visto com cautela. Mas é certo que a
meritocracia é melhor que os sistemas do passado. Ela permite que as pessoas
consigam construir um patrimônio sem que tenham sido beneficiadas por uma
herança. O problema é que o ideal da meritocracia foi, em muitos casos,
deturpado.
O Brasil dificulta o acesso a
dados e ficou fora de sua pesquisa. Algo mudou depois da publicação do livro?
Thomas Piketty: O
Brasil foi o país em que tivemos mais dificuldades, e, por enquanto, continuamos
sem dados significativos. É uma pena, porque foi um dos países que mais
conseguiram, nos últimos anos, conciliar crescimento e redistribuição de renda.
Mas as conversas avançam. Não se pode ter medo da transparência, da democracia.
Espero, em breve, ter o Brasil em nossa base de dados.
Fonte: Revista VEJA –
Edição 2377 – Ano 47 – nº 24 – 11 de junho de 2014 – Pgs. 17-21 – Internet:
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