O COLAPSO DA VELHA ORDEM [Imperdível!]
Robert Kaplan
Analista
geopolítico da Stratfor*
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A crise
da Ucrânia tem algo de conclusivo, ainda que convulsivo, e levou o mundo a
acreditar que ingressamos em um novo capítulo das relações internacionais. Como
outros comentaristas observaram, a velha ordem entrou em colapso. Na sua visão,
velha ordem corresponde ao período outrora chamado pós-Guerra Fria.
É uma
fórmula chocante, porque significa que todo o sangue derramado e todas as tragédias
do Afeganistão e do Iraque não foram suficientes para assinalar uma nova fase
da história, ao passo que os últimos meses na Ucrânia foram. Como é possível? É
que os períodos históricos evoluem de maneira muito gradativa, ao longo de
muitos anos – durante uma década de lutas no Oriente Médio, por exemplo –,
enquanto é possível que só nos demos contra das mudanças mais tarde, de uma
hora para outra, como ocorreu quando a Rússia anexou a Crimeia.
Gostaria
de definir o que os outros entendiam por “velha ordem” e também onde acho que
nos encontramos atualmente. Na Ásia, a velha ordem significava o predomínio
naval americano, essencialmente um universo militar unipolar no qual os chineses estavam criando uma grande
economia, mas não uma grande força militar, e os japoneses continuavam entrincheirados numa mentalidade
semipacifista. A ordem pós-Guerra Fria,
na realidade, começou a ruir somente cindo anos depois da queda do Muro de
Berlim, em meados dos anos 90, quando o
desenvolvimento naval chinês foi notado concretamente.
Nas
duas últimas décadas, o poderio naval
chinês foi crescendo sem cessar a ponto de a ordem militar unipolar
americana ceder espaço a uma ordem multipolar, enquanto os japoneses, em resposta à ameaça chinesa, abandonavam aos poucos o
semipacifismo e redescobriam o nacionalismo. Em suma, a velha ordem está
desmoronando, embora só recentemente tenhamos notado isto. O recente impasse chinês-vietnamita, no Mar do Sul
da China, só dá mais ênfase à questão.
No
Oriente Médio, o pós-Guerra Fria significou que os americanos mantiveram o Iraque
de Saddam Hussein sob controle, expulsando-o do Kuwait e, em seguida,
asfixiando-o com uma zona de exclusão aérea. Por sua vez, o Iraque de Saddam
contribuiu para manter sob controle o Irã dos mulás. As invasões americanas do
Afeganistão e do Iraque, depois de 11 de setembro de 2001, e a posterior
aceitação dos EUA [Estados Unidos da América] do impasse nas duas guerras,
certamente minaram a credibilidade de Washington e permitiram que o Irã
expandisse sua influência geopolítica.
Mas,
enquanto a Marinha e a Força Aérea americanas estiverem no Mediterrâneo, no Mar
da Arábia e em outros pontos não se deve brincar totalmente com o poderia
americano. De fato, no Golfo Pérsico, cuja segurança é garantida pelo poderia
naval dos EUA, o transporte de combustíveis sempre foi seguro e não chegou a
ser afetado pelas guerras no Iraque e no Afeganistão.
Evidentemente,
o colapso de Estados e de semi-Estados, como Síria, Líbia e Iêmen, enfraqueceu
a influência americana nestes países, mas enfraqueceu também a influência das
grandes potências em geral. No entanto, podemos dizer que enquanto a anarquia
crescia com o passar dos anos nessa parte do mundo, a capacidade dos EUA de
exercerem influência foi se reduzindo. O fim da velha ordem deu-se assim, em
câmara lenta.
Na Europa, a velha ordem começou a
deteriorar-se no final da década passada, com o início da crise fiscal da União Europeia. Mas,
como a crise foi definida durante anos pela mídia como meramente econômica, era
vista naturalmente como um evento econômico, não como geopolítico, como era de
fato. Na realidade, a crise enfraqueceu a influência da EU [União Europeia] nos
antigos países satélites da Europa Central e Oriental, permitindo que a Rússia,
de Vladimir Putin, recuperasse sua
posição na região. Moscou construiu e ampliou oleodutos, gasodutos e investiu
em vários projetos de infraestrutura.
No
entanto, a velha ordem persistiu. Afinal, a expansão da Otan [Organização do
Tratado do Atlântico Norte] e da UE nos antigos países satélites e nas três
repúblicas do Báltico, a suposta independência da Bielo-Rússia e a emergência
de Ucrânia e Moldávia como Estados-tampão fizeram com que a Rússia se
deslocasse fisicamente para o leste e fosse contida.
Essa
situação persistiu inicialmente por causa do governo fraco e caótico de Boris Ieltsin na Rússia. No entanto, as
coisas começaram a mudar por volta do fim do milênio, com a posse de Putin, mais
competente, e a Europa, que se tornou mais dependente do gás natural russo. A anexação da Crimeia, desencadeada
pela queda do regime pró-russo em Kiev, assinalou
ao mundo que a Rússia não estava mais sendo contida. Por isso, todos agora
se dão conta de que a velha ordem na Europa acabou também.
A crise ucraniana foi simbólica
porque, enquanto a ameaça chinesa na Ásia vem sendo notada há algum tempo e a
instabilidade no Oriente Médio é considerada um dado de fato, a segurança
europeia foi considerada ponto pacífico por muito tempo.
Então, o que substituiu ou substituirá a velha
ordem? Alguns sugeriram um sistema de potências hegemônicas regionais: EUA, na América do Norte; Brasil, na América do Sul; Alemanha, na Europa; Rússia, na Eurásia; China, na Ásia; e assim por diante. O
problema desse quadro é que ele significa igualdade entre as potências
hegemônicas onde ela não existe. Também pressupõe que essas potências são
estáveis, quando frequentemente não são.
No Brasil, há graves problemas
institucionais e agitação social. A Rússia
não dominará tanto assim os mercados de energia no futuro, mesmo que sua
população decline. A Alemanha é
muito dependente da economia e do setor energético russos para manter uma
política externa eficiente. A China
se apoia sobre uma enorme bolha do crédito, que é apenas uma das suas
dificuldades estruturais e econômicas. Os EUA
têm seus problemas: a crescente disparidade entre pobres e ricos e assim por
diante.
Em
outras palavras, é possível que algumas potências hegemônicas tropecem
seriamente nos próximos anos, pois Rússia
e China poderão testemunhar uma
séria agitação social. É mais
provável que a Rússia pós-Putin se torne mais anárquica do que democrática. O
mesmo pode ocorrer com a China, se o Partido Comunista acabar enfraquecendo.
Robert David Kaplan |
Embora
os EUA possam ser, em sentido
relativo, a potência hegemônica mais forte no futuro, sua capacidade de intervir nas crises mundiais poderá, apesar de tudo,
diminuir. O poderio americano depende de uma autoridade central competente
em outra parte do mundo. No entanto, se a autoridade central ceder para as
democracias fracas e para a anarquia, onde na realidade inexiste governo, os
EUA não terão para onde se voltar para exigir ação.
Além
disso, há consideráveis evidências de que o povo americano se mostra mais
hesitante em respaldar a segurança em países distantes do que durante a Guerra
Fria, quando se viam numa batalha existencial contra uma ideologia rival.
As
elites políticas não têm dificuldade de imaginar um mundo de potências
hegemônicas rivais em substituição a um sistema americano de tipo imperial,
porque até um mundo de rivais hegemônicos significa algum grau de ordem e
organização reconhecível. Elas têm mais dificuldade de imaginar um mundo em que
ninguém esteja suficientemente apto a governar, onde impera a indeterminação,
onde a própria hierarquia entrou em colapso. Essa indeterminação anárquica,
combinada com tecnologia pós-moderna, pode contribuir para definir o mundo que
nos espera.
Traduzido
do inglês por Anna Capovilla.
* Strategic Forecasting, Inc. , mais comumente conhecida como Stratfor, é uma empresa norte-americana de inteligência global fundada em 1996 em Austin, Texas, por George Friedman, que é o presidente da empresa. Shea Morenz é presidente e diretor executivo. Fred Burton é vice-presidente de inteligência da Stratfor e Robert D. Kaplan serve como analista-chefe de geopolítica. A Stratfor apresenta-se como uma empresa de inteligência e consultoria geopolíticas, com receitas provenientes de assinaturas de seu site e de clientes corporativos. Do lado da consultoria, a empresa diz que ajuda os clientes a identificar oportunidades, tomar decisões estratégicas e gestão dos riscos políticos e de segurança (Fonte: clique aqui).
Fonte: O Estado de S. Paulo –
Internacional/Visão Global – Domingo, 1 de junho de 2014 – Pg. A19 –
Edição impressa.
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