"Não coma nada que sua bisavó não reconheceria como comida”
Esther
Vivas
Público
(Espanha)
10-06-2014
Vivemos
obcecados em comer bem e nunca antes havíamos comido tão mal. As estantes dos
supermercados estão repletas de batatas fritas, bebidas açucaradas, chocolates,
congelados, conservas, bolos. Vendem-nos uma grande variedade de comida
desnaturada, processada, com um “max mix” de vários aditivos, que tem um
impacto negativo em nossa saúde. No entanto, os mesmos que com uma mão comercializam
estes produtos, com a outra nos oferecem alimentos funcionais, “milagrosos”,
para combater justamente os efeitos prejudiciais deste tipo de alimentação
“moderna”. O negócio está servido.
Enfermos
e gordos
A
“dieta ocidental”, como destaca o jornalista Michael Pollan em seu best-seller
“O detetive no supermercado”, é responsável por muitas de nossas enfermidades.
“Quatro das dez primeiras causas de mortalidade, hoje em dia, são enfermidades
crônicas, cuja conexão com a dieta está comprovada: cardiopatia coronária,
diabetes, infarto e câncer”, afirma. Uma “dieta ocidental”, com muitos
alimentos processados, muita carne, muita gordura e muito açúcar acrescido, que
nos adoece e engorda. Em princípios do século XX, como destaca Pollan, um grupo
de médicos observou que nos lugares em que as pessoas abandonavam sua forma
tradicional de comer e adotavam a “dieta ocidental”, logo apareciam
enfermidades como a obesidade, a diabetes, os problemas cardiovasculares e o
câncer, que foram batizados como “enfermidades ocidentais”.
O
relator especial das Nações Unidas sobre o direito à alimentação, Olivier de
Schutter, coincide no diagnóstico: “As dietas pouco saudáveis são um risco
maior para a saúde mundial do que o tabaco”. E acrescenta: “Os governos
colocaram o foco em aumentar a quantidade de calorias disponíveis, mas foram
muito indiferentes acerca de que tipo de calorias se oferece, a que preço, para
quem são acessíveis e como são comercializadas”. Não em vão, segundo dados da
Organização Mundial de Saúde (OMS), a obesidade é responsável, em todo o mundo,
por 3,4 milhões de mortes ao ano.
No Brasil, o título é: Em defesa da comida: um manifesto (Editora Intrínseca) |
Os
Estados Unidos são o máximo expoente desta constatação: 75% dos estadunidenses
têm sobrepeso ou são obesos, 25% sofrem de síndrome metabólica, com maiores
probabilidades de sofrer enfermidades cardiovasculares ou diabetes, e entre 4%
e 8% da população adulta têm diabetes tipo 2, segundo aponta a obra “O detetive
no supermercado”. Os dados da OMS confirmam esta tendência em escala global:
desde 1980, a obesidade mais do que dobrou em todo o mundo. Atualmente, 1,4
bilhão de adultos tem sobrepeso, e destes 500 milhões são obesos.
No
Estado espanhol, a taxa de obesidade infantil só aumentou nos últimos anos,
tornando-se uma das mais altas na Europa. Segundo o Programa Perseo, do
Ministério da Saúde e a Agência Espanhola de Segurança Alimentar, calcula-se
que a obesidade atinge 20% dos meninos e 15% das meninas entre 6 e 10 anos. No
que se refere à população em geral, os números são, também, muito elevados. O
estudo Enrica, promovido pelo Governo, destaca que 62% da população têm excesso
de peso, e desta 39% estão com sobrepeso e 23% são obesos.
Uma
situação que só aumenta com a crise. Cada vez mais pessoas com menos renda são
impelidas a comprar produtos baratos e menos nutritivos. O livro em questão,
sobre a nutrição na Espanha, assim afirma: “Na atual situação de crise
econômica, as condutas dos consumidores também se viram afetadas. Escolhem
opções mais econômicas, tanto na hora de decidir o lugar onde comprar alimentos
e bebidas, como o tipo, qualidade e quantidade de produtos”. Com a crise, a
dieta daqueles que menos possuem se deteriora rapidamente. Compra-se pouco e
barato e se come mal. Um dos produtos que mais aumentou seu consumo, por
exemplo, são os doces embalados (bolachas, chocolates, sucedâneos, bolos e
pastelaria), com um aumento de 3,8% entre 2012 e 2013, segundo o Ministério da
Agricultura, Alimentação e Meio Ambiente.
Os
gordos, paradoxalmente, em geral, são os que menos têm, e, consequentemente,
pior comem. Olhando o mapa da península fica claro: as comunidades autônomas
com maiores índices de pobreza, como Andaluzia, Canárias e Estremadura,
concentram os números mais elevados de população com excesso de peso. A posição
de classe determina, em boa medida, o que comemos. E a crise só acentua a
diferença entre comida para ricos e comida para pobres.
Doctor
Jekyll e Mister Hyde
No
entanto, os mesmos que promovem uma comida lixo, de muito baixa qualidade, com
um impacto negativo em nossa saúde, são os que nos vendem “alimentos milagre”
para emagrecer, controlar o colesterol, reduzir a prisão de ventre, fortalecer
o sistema imunológico, manter a densidade óssea. Ao mais puro estilo Doctor
Jekyll e Mister Hyde é a forma como atuam as grandes empresas da indústria
alimentar.
Panrico
afirma vender pão com “uma massa como a do pão de sempre”. Meus avós, acredito,
não diriam o mesmo. Para além dos questionáveis ingredientes e resultado de seu
pão, oferece, também, Donuts Original, Donuts Bombom, Donettes, Donetts
Rajados, Donettes Nevados, Bollycao, Dip Dip, a lista continua. Porém, como
toda boa indústria da comida, se ficamos “passados” com tantas guloseimas,
Panrico nos ajuda a combater esses quilinhos a mais com seu Panrico Linha,
“para quem gosta de se cuidar, sem renunciar a seu delicioso sabor”, como o
define a empresa, ou Panrico Integral, com alto conteúdo em fibras. Panrico tem
pão para tudo.
Nutrexpa,
por sua parte, vende-nos Cola Cao Original, que de pais e mães para filhas e
filhos e netos e netas, repete-nos: é “o café da manhã e lanche ideal”.
Nutrexpa, sempre pensando nos pequenos, também vende Nocilla, muito “natural”,
com “leite, avelãs e açúcar”, lembram-se? E Phoskitos, com adesivos e demais
artefatos, que agora conta com nova linha. O tempo passa, mas Phoskito não, com
Mini-Phoskitos Hello Kitty e Phoskitos Bob Esponja. Sua gama de produtos não
acaba aqui, e inclui bolachas Cuétara, Chiquilín, Atiach, Filipinos. Apesar de
tanto sobrepeso e obesidade infantil, sua linha de bolachas Fibra Linha ou 0%
açúcares, assim como o Cola Cao Zero ou, ainda melhor, o Cola Cao Zero com
Fibra estão aqui para nos dar uma mão.
Danone
é o rei. Vende um grande leque de iogurtes de morango, coco, banana, maçã,
abacaxi, limão. Embora a única coisa que tem de parecido com a fruta seja o
sabor e a cor. Em sua gama de sobremesas se destacam, desde sempre, os cremes
de baunilha e chocolate, que nos acompanharam desde pequenos. Com o passar dos
tempos, não é que se se perdem os costumes... e a marca é abandonada.
Surpreendentemente, estes produtos estão em sua página web à margem daqueles
que a empresa inclui na seção de “bons hábitos”. Será que não são? Ao webmaster
terá traído o subconsciente? É nesta seção de produtos que a Danone empreende
toda a sua teórica preocupação por nosso bem-estar e oferece desde iogurtes
Activia, “o mais delicioso – como dizem – para ajudar a sua saúde digestiva”, passando
pelos Actimel e “seu exclusivo L-Casei, que incorpora as vitaminas B6 e D” até
o Danacol sem lactose que favorece, afirmam, “uma dieta sadia e equilibrada,
que ajudará a reduzir o colesterol”. O que mais podemos pedir?
Modus
Operandi
Seu
modus operandi não falha. [1º] Primeiro, a publicidade. Tanto para nos vender um
como o outro. Apesar de que entre um Danone Morango e um Danacol não exista
tantas diferenças para além do marketing nutricional. O investimento
publicitário não poupa recursos econômicos. Em 2005, por exemplo, a indústria
alimentar dos Estados Unidos gastou mais de 50 bilhões de dólares em
publicidade, mais do que qualquer outra indústria do país. A Coca-Cola,
concretamente, desembolsou 2,2 bilhões de dólares, um total muito superior ao conjunto
do orçamento da Organização Mundial de Saúde, como aponta o livro ‘Um planeta
de gordos e famintos’, de Luis de Sebastián [foto ao lado]. Os pequenos na maioria das vezes
são o seu público objetivo principal. Como afirmava Tim Lobstein, diretor de
The Food Commission, em um debate na BBC inglesa: “Vivemos em um entorno que
foi batizado como ‘obsogênico’, cheio de estímulos que nos animam a comer, a
fazer menos exercício e, sobretudo, a consumir. Trata-se de um entorno gerido
comercialmente”.
[2º] Segundo,
a culpabilização. Somos culpados por comer mal, engordar, adoecer. Se você
engorda, dizem, é que não tem força de vontade. Tem que se sacrificar, afirmam.
Vendem-nos o paradigma da mulher perfeita e do homem perfeito, como se fosse
tão fácil caber em um tamanho 38. Em definitivo, a culpa é nossa. Enquanto
isso, escondem as causas estruturais de tanta gordura e enfermidade. Ainda me
lembro do meu antigo chefe, como, às vezes, para o café da manhã pedia no bar
um pão recheado, açucarado, e um café com leite, esse, sim, com adoçante.
Fartamo-nos de comer mal, para depois nos sacrificar e comer, é claro, bem.
Todo um negócio, o de culpar nosso estômago.
[3º] Terceiro,
o produto “milagre” e o especialista. Os mesmos que nos vendem comida de má
qualidade, apresentam-nos lições de nutrição e nos oferecem alimentos
funcionais, que contém componentes que – dizem – beneficiam a saúde: leites
enriquecidos com ácidos graxos ômega 3, ácido fólico, fósforo e zinco; iogurtes
com cálcio, vitaminas A e D; cereais fortificados com fibra e minerais; sucos
com vitaminas. Apesar de tantos produtos, para que serviriam sem um “bom”
especialista ou organização “especializada” que o avalie (?). A Fundação
Espanhola do Coração é costumeira em emprestar a sua imagem para respaldar
estes produtos, o que a conferiu importantes críticas por parte da comunidade
científica. Entre seus “apadrinhados” se encontra a margarina Flora Original
com Ômega 3 e 6, da Unilever, o Danacol, leite fermentado com esteróis vegetais
acrescidos, da Danone, o suplemento MegaRed com Ômega 3, a Água de Firgas, com
baixa quantidade de sódio e alta concentração de cálcio e magnésio. Mas, quanto
de dinheiro terá recebido a Fundação Espanhola do Coração por seus serviços?
Isso, não se sabe.
Em todo
caso, se você tem uma empresa da indústria alimentar, coloque um “especialista”
em sua vida, parece que ganhará credibilidade, independente de que seja certo
ou não o que diz, e aumentará as vendas.
Como
nos alimentar bem?
Observado
isto, o que podemos fazer para comer bem? Como dizia Michael Pollan, trata-se
de “comer comida”, o que não é tão simples como parece. “Antes, a única coisa
que se podia comer era comida, hoje encontramos no supermercado milhares de
outras substâncias comestíveis parecidas com a comida”, afirma em seu livro “O detetive
no supermercado”. E acrescenta: “Se o preocupa a saúde, talvez devesse evitar
os produtos a respeito dos quais são feitas afirmações de propriedades
saudáveis. Por quê? Porque tais afirmações sobre um produto alimentício fazem
supor que não se trata realmente de comida”. Uma contradição: desnaturam os
alimentos, para depois nos vender outros artificialmente naturais, que dizem
que são melhores.
A
indústria alimentar e sua publicidade estigmatizaram a comida de sempre.
Fizeram-nos acreditar que comer fruta, verdura, legumes e cereais era coisa de
pobre. Que sentido faz espremer algumas laranjas? Se nós podemos tomar um
Bifrutas Mediterrâneo Pascual, não apenas com laranja, mas também com pêssego,
cenoura, leite e com 0% de matéria graxa e vitaminas A, C, E. Por que perder
tempo em descascar batatas, cenouras e cebola para um creme, quando posso
comprar um Sopinstant de verduras Gallina Blanca, já preparado e, como dizem,
com “baixa gordura, menos sal e sem conservantes”? Parece que a comida de
sempre já não tem “glamour”.
No
entanto, nos últimos tempos, as coisas começaram a mudar. Cada vez são mais as
pessoas que questionam o que comemos, de onde vem o que ingerimos, como foi
elaborado. A multiplicação de escândalos alimentares e o auge de algumas enfermidades
acenderam as luzes de alerta. O consumo de produtos ecológicos, camponeses,
locais, de temporada, aumenta, embora represente apenas uma porcentagem pequena
do consumo global. Comer bem implica em avançar nesta direção, em nos
reapropriarmos daquilo que comemos, exigir que a produção de alimentos responda
às necessidades das pessoas, leve em consideração o campesinato e a Terra, e
não se submeta aos interesses econômicos da indústria da comida.
Comer
bem implica comer natural. E ainda que alguns digam que os alimentos naturais
são uma fraude, o que, sim, é uma fraude é quando a indústria, por meio de
tanto alimento funcional e “milagroso”, quer nos vender gato por lebre. Como
diz Michael Pollan, “não coma nada que sua bisavó não reconheceria como comida”.
Tradução
do espanhol pelo Cepat.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos –
Notícias – Quinta-feira, 12 de junho de 2014 – Internet: clique aqui.
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