NOVAS TENDÊNCIAS NA SOCIEDADE E NA POLÍTICA
A quarta agenda democrática
Renato Janine Ribeiro*
Além da luta por melhores
serviços públicos,
há uma exigência de liberdade no Brasil
Manifestação na Avenida Paulista (S. Paulo) no dia 20 de junho de 2013 |
Desde o ano passado, o
Brasil mudou de futuro. As manifestações de maio a julho definiram um horizonte
novo. O problema é que as eleições de outubro estarão aquém da nova agenda
política. Tivemos três agendas democráticas bem-sucedidas nestes 30 anos:
- a derrubada da ditadura [1985],
- a da inflação [1994] e
- a inclusão social em larga escala [desde 2003].
Mas, além da exigência de
serviços de qualidade, outro tema vai se firmar em nossa política. Cresce uma
exigência de liberdade, nos mais amplos sentidos - uma exigência que os partidos
não parecem ter compreendido.
Essa liberdade tornada
valor, antes de mais nada, é a liberdade pessoal. Cada um tem o direito de
florescer o máximo, no que lhe importa. Essa ideia é liberal. Para ela, cada
ser humano tem riquezas singulares, únicas, que para se manifestarem só
precisam de uma coisa: não serem reprimidas. Estado, Igreja, externalidades,
impedem esse florescimento. Então, reduzindo esses obstáculos externos, cada um
crescerá. Só que tal ideia de liberdade, mesmo sendo de origem liberal, vai
muito além da direita. Hoje suas faces mais visíveis são a liberdade da mulher
em face do machismo, do homossexual diante da homofobia, do negro e do indígena
contra o racismo.
A pauta da liberdade se
fortalece a cada dia. Comentei em outro lugar que ela está, por exemplo, no[s jornais] El
País, no New York Times e, entre nós, na revista Trip e talvez Rolling Stones.
Sua primeira característica é se opor radicalmente a qualquer preconceito. Um
vídeo que se tornou viral no YouTube - The Ultimate (Sarcastic) Anti-Gay
Marriage Ad - mostra bem isso: diante da igualdade entre heterossexuais e
homossexuais, uma família bem norte-americana - crianças rosadinhas, todos
loiros, gente de comercial de margarina - chora e se descabela porque todos vão
ser “obrigados” a se separar e, cada um, a casar-se com pessoa do mesmo sexo...
É hilariante. Ou seja: o preconceito está sendo vencido quando, de odioso, vai
se tornando ridículo.
Timur Vermes, escritor alemão, com o seu livro em mãos |
Um romance que fez sucesso
na Alemanha - uma boa ideia, ainda que com resultado final fraco - é Ele
Voltou, de Timur Vermes. “Ele” é Hitler, que acorda, em 2011, de um desmaio que
durou décadas. Retoma sua carreira, mas todos creem que ele é um cômico. Talvez
seja esse o grande sucesso sobre a maldade - quando ela não desperta mais medo,
só riso. Quando sai do horizonte do possível e do pensável. Os preconceitos
parecem, hoje, estar perto de agonizar: em breve, quem se opuser a mulheres,
gays e negros será folclórico. É o que essa nova sensibilidade implica.
Mas isso não significa que
a luta tenha terminado. Crimes de ódio são frequentes no País. Não são
reprimidos de maneira sistemática. Pior: a veiculação de propaganda de ódio é
tolerada, em que pese afrontar diretamente a Constituição e constituir
incitação ao crime. Deputados, ainda que poucos, dizem enormidades, pelas quais
poderiam perder o mandato, ao negarem que membros dos grupos discriminados
sejam iguais em direitos aos homens brancos heterossexuais. E por isso mesmo,
essa nova sensibilidade não está - ainda? - vitoriosa. Na verdade, não sabemos
se triunfará ela ou o preconceito supersticioso. Seria bom os candidatos
firmarem um pacto contra o preconceito e a superstição.
Porém, seria errado ligar
diretamente esse novo modo de ver o mundo humano a um lado político específico.
Repudiar o preconceito contra indivíduos e grupos é uma tradição que, desde o
Iluminismo e seus herdeiros das grandes revoluções, inspira as esquerdas. Mas
em vários pontos a nova sensibilidade desagrada à esquerda brasileira. Pois faz
parte dessa atitude o horror à corrupção; ora, o PT, que já foi nosso partido
mais veemente na condenação do tráfico de dinheiros públicos, é acusado de ter
sido leniente, no governo, com essas velhas práticas brasileiras. Não importa se
o escore do PSDB é igual ou pior que o seu: o mensalão acabou simbolizando uma
séria falta dos governantes à honestidade. Tal situação gerou um estresse entre
o que chamo de nova sensibilidade e a esquerda.
Outro desencontro se refere
ao repúdio à opressão política e internacional. Alguns amigos meus, por
desconfiarem das intenções ocidentais sobre a Ucrânia, simpatizam com Putin.
Mas com isso acabam endossando políticas autoritárias e repressivas: negam o
valor da luta do povo na Praça Maidan, acusando-o de ingênuo ou agente
estrangeiro. Ou tomemos o voto facultativo. Embora haja no PT defensores do fim
da obrigatoriedade do sufrágio - ao que parece, talvez o próprio Lula -, a
esquerda é mais favorável a ele. Os argumentos pela obrigatoriedade são bons: havendo
voto facultativo, a abstenção dos miseráveis aumenta, o que leva os políticos a
não se preocuparem com eles, o que por sua vez aumenta a abstenção entre os
mais pobres. Mas aqui falamos de uma atitude pró-liberdade, de uma filosofia,
de uma sensibilidade. O voto facultativo e a descriminação da maconha andam
juntos: nos dois casos, se repudia a tutela sobre as escolhas pessoais.
Resumindo, o que temos? Uma
atitude contrária aos preconceitos de costumes, à opressão, à corrupção - e
também à repressão. Com todo incômodo que as greves pré-Copa causaram no
transporte público, também se vê com maus olhos a repressão a esses movimentos.
Resta explicar por que,
falando da mídia internacional, citei dois jornalões e, no Brasil, duas
revistas quase alternativas, Trip que nasceu para os surfistas, RS [Rolling Stones], que é de
rock - e por que eu, nem surfista nem roqueiro, as menciono. Ora, é
interessante que a atitude pró-liberdade que aqui celebro nasça fora da
política. Na verdade, a política é um setor da atividade humana sem dúvida
essencial, mas nem sempre fecundo.
Quando na mesma família se
sucedem gerações de políticos, o que sem dúvida é rotina nas regiões mais
atrasadas do País, mas também acontece nos Estados mais desenvolvidos, o que se
perde não é só a renovação de sangue, mas também a de ideias.
E disso, para nossa
política atual? Não penso, até o momento, que as eleições deste ano sejam
particularmente importantes para o Brasil.
Provavelmente marcarão o
fim de um ciclo, não o começo de outro. O PT fez um trabalho notável de
inclusão social, mas isso já não basta, tanto porque é preciso garantir que os
serviços públicos sejam bons quanto porque a sensibilidade que descrevo não é a
do PT dos anos 2010, embora fosse a sua de 1982 a 2002. Já os candidatos de
oposição cometeram um ato falho forte ao tentar surfar nos xingamentos à
presidenta Dilma Rousseff. Nem Eduardo Campos nem Aécio Neves deram importância
ao teor sexual do ataque a uma mulher. Provavelmente, netos ambos de políticos,
Miguel Arraes e Tancredo Neves, que figuram entre os mais importantes
governadores de nossa história, eles não se dão conta de quanto é difícil uma
mulher liderar na política. Os dois “insiders” desconhecem o que é ser a grande
“outsider”, a mulher. Basta ver uma coisa: a dificuldade enorme que tem uma
mulher em conciliar o poder e a feminidade. Candidatos a presidente podem se
casar e ter filhos em plena campanha; já a presidenta é sozinha. Aliás, veja-se
que a oposição situa entre seus principais temas de ataque ao governo a
existência ou não da palavra “presidenta”, que Carlos Drummond utiliza na sua
tradução das Relações Perigosas. Poderia ser mera “questão de opiniães”, como
diz Guimarães Rosa sobre “pão ou pães”, mas virou um cabo de guerra - que é
claro sinal, ainda que involuntário, dessa recusa a conjugar no feminino o
poder.
Disso resulta que, se
Dilma, mais preocupada com o desenvolvimento econômico e social, não assume
como sua essa agenda jovem, jovial, da liberdade que vai do pessoal para o
público, seus adversários parecem estar ainda mais longe dela. Aqui não discuto
programas votados em congresso partidário, e sim a reação quase instintiva de
dois homens para quem um insulto sexual não é coisa grave, dirigido a uma
mulher que chefia o Estado. Ora, quando alguém quer liderar o País, precisa
estar mais antenado com as novas tendências da sociedade.
Porque o Brasil não é uma
sociedade politizada, como foram França e Argentina. Nossa educação e cultura
políticas são precárias. Mas em termos de costumes, de vivido, somos bons.
Aqui, a política passa pelos costumes. Mesmo durante a ditadura, avançamos
extraordinariamente em sensibilidade democrática, por sinal graças à música
popular mais do que a manifestos políticos.
Quem se desliga da
renovação constante de costumes se desliga do que o Brasil tem de melhor, de
inovador - mais que isso, de invejável. Porque a política institucional está
perdendo terreno, mundo afora. Aqui, podemos ainda nos perguntar o que fazer;
podemos perguntar qual será a quarta agenda da democracia; podemos esperar
melhorar muito. Mas olhem França, Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, para
não falar da Itália; nenhum desses países tematiza, a sua frente, desafios como
os nossos, esperanças como as nossas. Dará trabalho conseguirmos serviços
públicos de qualidade. Mas dará satisfação conseguirmos uma relação entre
política e costumes que configure, uma e outros, como democráticos. Melhorar os
serviços é atingir o patamar dos países desenvolvidos. Democratizar os costumes
é propor algo novo, que irá além deles.
* Renato Janine Ribeiro é professor de Ética e Filosofia Política na USP e autor, entre outros
livros, de A sociedade contra o social: o
alto custo da vida pública no Brasil (Companhia das Letras).
Nota: para ler uma versão anterior desse artigo, contendo explicações mais pormenorizadas das três agendas democráticas anteriores, clique aqui.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 22 de junho de
2014 – Pg. D8 – Internet: clique aqui.
O "grande número" e a política
Luiz Werneck Vianna*
Desde
junho de 2013 as ruas não têm dado tréguas em suas manifestações, primeiramente
sob as bandeiras dos direitos, como os de acesso à saúde, à educação e à
mobilidade urbana, e, nesta segunda onda dos dias presentes, com o claro
registro da dimensão dos interesses. Em poucos meses, mudaram os temas e os
personagens. As camadas médias, antes com massiva participação, cederam lugar a
categorias de trabalhadores demandantes de melhorias salariais, por vezes à
margem da orientação dos seus sindicatos, e a movimentos sociais de extração
social difusa, como os do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), boa
parte deles sob a influência de partidos da esquerda radicalizada.
Os
diagnósticos que nos vêm da mídia são uniformes na interpretação economicista
do mal-estar reinante na população, carregando nas tintas o tema da inflação,
segundo eles, palavra-chave da sucessão presidencial que se avizinha.
Contraditoriamente, tal diagnóstico convive sem conflito aparente com o
reconhecimento por parte de analistas de diversas orientações de que, nos
últimos anos, indicadores confiáveis atestariam o alcance de setores
subalternos a melhores padrões de consumo e de acesso ao mercado de trabalho.
Muitos deles até sustentando que tais setores já fariam parte das classes
médias. Conquanto essas duas interpretações contenham seu grão de verdade, elas
apontam, como é intuitivo, para direções opostas, embora guardem em comum o
mesmo viés economicista e a mesma distância quanto à política.
O fato
novo que temos diante de nós vem, precisamente, dessa região oculta da Lua e se
manifesta na ruptura da passividade em que se mantinha o "grande
número", para flertar com a linguagem de um grande autor em suas alusões
ao homem comum da sociedade de massas. As duas florações da social-democracia -
a do PSDB e a do PT -, no governo por duas décadas, cada qual no seu estilo,
embora a do PT venha sendo a mais desenvolta na intervenção sobre a questão
social, não só têm estimulado, mesmo que indiretamente, a procura por parte dos
setores subalternos da porta de acesso aos direitos da cidadania, como atuado
no sentido de consolidar as liberdades civis e públicas previstas na Carta
Magna de 1988. Os limites em que o governo da presidente Dilma Rousseff se
manteve no curso da Ação Penal 470, o processo dito do "mensalão", em
que estavam envolvidos importantes dirigentes do PT, é um exemplo disso.
A
passividade do "grande número" ao longo desse período - evita-se o
uso do termo multidão para manter distância das ressonâncias metafísicas com
que ele, ultimamente, tem sido empregado - certamente não foi indiferente às
políticas bem-sucedidas dos governos social-democratas - declarados como tal ou
não - que têm estado à testa da administração pública, entre os quais a do
Plano Real e a do Bolsa Família, mencionado este último apenas pela sua
efetividade.
Contudo,
malgrado as diferenças entre PSDB e PT, inscritas no DNA de cada um deles,
ambos optaram por estilos de governo tecnocráticos. No caso do PT, bem
camuflado por instituições como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e
Social, logo esvaziado, e pelas reuniões informais entre o ex-presidente Lula e
as lideranças sindicais. E, sobretudo, pela incorporação de movimentos sociais
ao aparelho de Estado, marcas fortes dos governos de Lula. Para os setores
organizados e próximos ao partido, tais práticas podiam ser vivenciadas como um
sucedâneo de democracia participativa, mesmo que suas deliberações fossem, em
última instância, dependentes da discrição governamental.
Quanto
aos intelectuais, em que pese a forte atração que o PT exerceu sobre eles no
momento de sua fundação, incluídas grandes personalidades do mundo da ciência e
da cultura, eles não encontraram em sua estrutura partidária um lugar próprio
para exercer influência, rebaixados à situação de massa anônima de
simpatizantes. Nessa posição marginal, eles se confortaram na crença dos
poderes carismáticos da sua liderança, bafejada por sua origem operária, e hoje
padecem de desencanto com a revelação dos muitos malfeitos com origem na
máquina governamental.
O PSDB,
por sua vez, partido formado por intelectuais, não somente os deixou à deriva,
como igualmente se manteve ao largo dos movimentos sociais e do sindicalismo,
confiante nos louros conquistados com os êxitos do Plano Real. Assim, se o PT
se recusava a vestir a carapuça da social-democracia, que lhe cabia tão bem, o
PSDB assumiu-a apenas no plano do discurso, com seu núcleo duro constituído por
elites de formação e trajetória tecnocráticas. Nem um nem o outro enfrentaram o
desafio da "ida ao povo". Na versão petista, o sindicalismo tem-lhe
feito as vezes e, na do PSDB, a massa de consumidores. Nas favelas e nos bairros
populares, em termos de organização partidária - não de voto, frise-se -, em
meio a um oceano de evangélicos, não se nota a presença deles.
Nessas
condições, a ativação do "grande número", a que se assiste desde
junho do ano passado e, ao que parece, não vai recuar nem mesmo diante da Copa
do Mundo, tem encontrado à sua frente um terreno político desertificado. Nada a
surpreender quanto à sua descrença na política e à selvageria de muitas de suas
manifestações, fato que o governo do PT reconhece agora, de modo tardio,
atabalhoado e, como sempre, vertical, com a criação por decreto dos conselhos
populares de participação na administração pública.
Seja lá o
que o destino reserva a essa iniciativa discricionária, que não nos chega em
momento propício, já está na hora de fazer ouvidos moucos aos ideólogos do
economicismo, confessos ou encapuzados, que confundem o consumidor com o
cidadão e a política com o cálculo eleitoral.
* Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da
PUC-Rio.
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