Guerra: Israel x Hamas - Análise Crítica
“A sociedade israelense está radicalizada e racista demais
para resolver problemas de dentro para fora”
Entrevista com
Shlomo Sand
Professor
de História
Diego Sartorato
O
historiador Shlomo Sand, nascido na Áustria e radicado em Israel desde os
primeiros momentos da criação do estado judeu no Oriente Médio, na década de
1940, é uma das figuras mais conhecidas da esquerda israelense: seu livro A
Invenção do Povo Judeu, de 2008 [edição brasileira pela Benvirá, 2011], em que o autor questiona a
promiscuidade entre fato histórico e mitologia nacionalista na narrativa de
construção de Israel, esteve no topo dos mais vendidos no país por 19 semanas e
é o texto acadêmico israelense mais traduzido para outras línguas na história,
com mais de 80 mil exemplares vendidos apenas na França.
A
notoriedade, no entanto, não significa popularidade na terra natal. Rechaçado
por militantes sionistas, judeus ortodoxos, articulistas da mídia israelense e
especialistas da historiografia judaica tradicional, Sand segue investindo na
polêmica como forma de chacoalhar uma sociedade que está "mais cruel, mais
feia e muito mais racista" do que nunca. "Não sei se seus leitores
sabem que muitos dos israelenses sobem em montanhas no entorno de Gaza para
assistir aos bombardeios", conta o professor, ao falar sobre o conflito
entre Israel e o grupo Hamas, que já deixou mais de 600 civis palestinos mortos [atualmente, já são mais de 1000] por bombardeios aéreos e ações militares em terra.
Sand
questiona ainda o sequestro de três colonos israelenses como principal
motivação da guerra: de acordo com o professor, logo após o sequestro, em abril
deste ano, o estado de Israel rompeu acordo fechado em 2011 pela libertação do
soldado Gilat Shalit, que havia sido capturado por forças palestinas, e voltou
a prender os mais de mil prisioneiros políticos liberados àquela oportunidade,
inclusive parlamentares da Autoridade Palestina, como forma de provocar o Hamas
a entrar no conflito armado. "Se você me perguntar se o governo de Israel
queria esta guerra, tenho de dizer que não tenho certeza, mas acredito que
sim", resume.
Para
o professor, a situação atual pode não ter mais solução "de dentro para
fora" e depende de pressão externa. "A única coisa que eu acho que
pode provocar mudança é pressão externa, com exceção do terror. Soube que o
Brasil tomou posição e retirou seu embaixador do país. E isso me deixou muito
feliz. Esse é o caminho. A América Latina, como um bloco, pode fazer muita pressão
e pode ser muito importante para resolver conflitos", afirma.
Existem
motivos econômicos, sociais ou políticos para que uma nova rodada de agressões
a Gaza tenha início neste momento? Trata-se, mesmo, apenas de uma retaliação pelo
sequestro e morte de três colonos?
Shlomo Sand: É
muito difícil, neste momento, entender todos os motivos para esta nova guerra
entre Israel e Hamas, mas eu vou tentar responder à pergunta "há razões
políticas?" Há. Não vejo motivação econômica ou social, mas a razão política,
acredito, mesmo que não tenha provas, é a relação entre o Hamas e a nova
liderança da Autoridade Palestina, que levou o Hamas a aceitar se unir ao Fatah
em um governo unificado. A guerra atual foi provocada após o sequestro de três
colonos, mas como ela foi provocada? Sem nenhuma prova de que o Hamas tenha
qualquer envolvimento nos sequestros, sem nenhuma condição de acusar o Hamas
diretamente pelo que aconteceu com esses colonos, Israel começou a prender
todos os prisioneiros que foram liberados no acordo de Gilat Shalit. Israel
rompeu todas as regras do jogo. E, desta vez, quebraram o acordo abertamente,
prendendo todos os prisioneiros que haviam sido liberados, inclusive membros do
parlamento. Então não deixaram muita opção para o Hamas em Gaza. Se você me
perguntar se o governo de Israel queria esta guerra, tenho de dizer que não
tenho certeza, mas acredito que sim.
Como
tem sido a reação do povo israelense a este novo conflito?
Shlomo Sand: Não
sei se seus leitores sabem que muitos dos israelenses sobem em montanhas no
entorno de Gaza para assistir aos bombardeios. É importante compreender que a
polarização político-ideológica da sociedade israelense hoje em dia é muito
mais radical do que antes. A maior parte de Israel está muito mais racista do
que em comparação aos colonizadores dos anos 1960. A influência da mídia,
conduzida pela intelligentsia israelense, levou a uma radicalização muito
grande. Então, hoje, a sociedade israelense é mais cruel, mais feia e muito
mais racista.
A
expectativa mundial é por uma mudança cultural em Israel que siga no sentido
oposto...
Shlomo Sand: Não
acredito que Israel, no ponto em que está, possa ser mudado de dentro para
fora. Eu já perdi esperança que algo positivo possa vir da política ou da
sociedade israelense. O que quero dizer com isso é que não existe nenhuma força
política que possa se comprometer com um processo de paz com os palestinos e
nem mesmo os palestinos moderados. O processo de paz que os americanos tentaram
criar foi uma grande piada. O representante de Obama para as conversas de paz
Israel-Palestina no ano passado, Martin Indyk, antes de sua carreira
diplomática, era um lobista da Aipac (Comitê América-Israel de Assuntos
Públicos, na sigla em inglês, grupo que advoga por políticas pró-Israel junto
ao Congresso dos Estados Unidos). Não acredito que Israel possa mudar por
dentro se a situação econômica não mudar. A única coisa que acho que pode
provocar mudança é pressão externa, com exceção do terror. Toda pressão
externa, que não sejam atos de terror, irá ajudar a garantir a existência do
estado de Israel. Soube que o Brasil tomou posição e retirou seu embaixador do
país e isso me deixou muito feliz. Esse é o caminho.
O
senhor soube da resposta do governo israelense?
Shlomo Sand: Não.
Eles
condenaram a postura do governo e disseram que o Brasil é um “anão
diplomático”.
Shlomo Sand: (Risos)
Ainda não vi isso na imprensa israelense, talvez tenha saído apenas na TV, mas,
ora, eu conheci o embaixador brasileiro anterior em Israel (Maria Elisa
Bittencourt Berenguer). Uma mulher muito inteligente. A diplomacia brasileira
merece respeito.
A
diplomacia brasileira tentou envolver-se na solução de conflitos no Oriente
Médio em 2010, quando se uniu à Turquia para chegar a um acordo sobre o
enriquecimento de urânio no Irã.
Shlomo Sand: Sim,
me lembro do esforço diplomático do Brasil e da Turquia e aquele episódio
também me deixou muito feliz. A América Latina, como um bloco, pode fazer muita
pressão e pode ser muito importante para resolver conflitos. Já que os Estados
Unidos não aceitam interromper seu apoio incondicional a Israel... Você sabia
que na semana passada Israel pediu ao Departamento de Defesa mais de US$ 500
milhões a mais do que já recebem em apoio, para a guerra atual? E os Estados
Unidos aceitaram. Eles não dão o dinheiro, dão armas, porque assim pagam
dívidas com a indústria de armamento.
Como
podem os Estados Unidos imporem sanções à Rússia pelo que ocorreu na Crimeia e,
ao mesmo tempo, não se atreverem a mover sanções contra Israel, mesmo que a
população da Crimeia não tenha se oposto à ocupação como os Palestinos seguem
resistindo à ocupação israelense? Eu espero que a América Latina possa nos
ajudar, organizando a pressão internacional. E quando digo nos ajudar, digo
ajudar o Estado de Israel a continuar existindo, ao lado do Estado Palestino.
Eu não sou contra a existência do Estado de Israel. Sou a favor da existência
de dois estados confederados sob uma instância superior de governo.
Não
é possível propor a uma das sociedades mais racistas do mundo que ela passe a
ser uma minoria sob um Estado único. Não é uma utopia. É uma estupidez. Ao
mesmo tempo, não acredito que dois Estados possam existir completamente
separados no Oriente Médio nas condições atuais, em que Israel está atrelado
aos palestinos. Essa seria a forma para que ambos mantivessem a soberania.
Você
tem de entender que, para que haja uma solução de um estado, você precisa da
concordância de ambos os lados. Como chegar a isso nas condições atuais? Israel
está próximo de sair vitorioso e sabe disso. Vou te dizer o que estou
escrevendo em meu próximo artigo: a história mostra que a adoção de modelos
pode causar muitos danos.
Dou
três exemplos: a revolução bolchevique, que interrompeu a primeira guerra
mundial, se tornou um modelo muito ruim de criação de movimentos
revolucionários, que fez muito mal aos movimentos de trabalhadores na Europa
nos anos 1920 e 1930, gerou uma divisão no movimento dos trabalhadores. A
vitória da revolução cubana se tornou um modelo para a América Latina, mas era
um modelo ruim, porque não ajudou a América Latina a se livrar das oligarquias
norte-americanas. O terceiro exemplo é a África do Sul. A solução de um Estado
na África do Sul se tornou o modelo para o conflito Israel-Palestina no Oriente
Médio, mas a diferença é que a classe alta branca na África do Sul era
completamente dependente economicamente dos trabalhadores negros. Eles não
poderiam criar uma sociedade sem eles. Já os israelenses podem viver sem os
trabalhadores palestinos. Eles fazem dinheiro com a situação, mas podem viver
sem o conflito. Além disso, em algum momento, a existência do movimento negro
nos Estados Unidos e uma mudança de relações de poder lá colocaram a diplomacia
norte-americana com a África do Sul em muitas contradições. Mais uma vez, não é
o caso com Israel.
Existe
uma força considerável contra a guerra no parlamento e nas ruas? Como a
oposição e a esquerda israelense têm se posicionado neste momento?
Shlomo Sand: Os
partidos de esquerda não são de massas em Israel e não têm muito espaço no
parlamento. Temos partidos comunistas compostos por uma maioria árabe e uma
esquerda judia. As esquerdas se uniram, nas últimas semanas, pela primeira vez
em muito tempo, para atos políticos contra a guerra, mas, também pela primeira
vez, provou-se que está muito perigoso organizar manifestações em Israel.
Nunca
tivemos uma reação da direita como temos hoje nas ruas e está cada vez mais
perigoso se manifestar contra a guerra em Israel. Além disso, não há um grande
apoio popular à causa. Como eu disse, as relações estão muito mais radicais. E
falo dos cidadãos de Israel.
Semanas
atrás, houve uma tentativa de diálogo de paz com a intermediação do papa
Francisco. Essa iniciativa não teve nenhuma influência positiva antes do
reinício das hostilidades?
Shlomo Sand: O
diálogo intermediado pelo papa foi uma piada maior ainda. De um lado, você
tinha o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e, do outro, Shimon
Perez, que não é nada. Ele não representa o governo de Israel. Não tem
autoridade para negociar nada. É um político em aposentadoria com 91 anos de
idade que esteve lá, ao lado do papa, apenas para participar de um show
midiático ocidental. É inacreditável. O líder de Israel, de mesma autoridade
que Abbas, é Benjamin Netanyahu, mas ele não se apresenta ao diálogo. Neste
momento, duvido que ele aceitaria esse convite. Aquele encontro foi um grande álibi
para o governo israelense.
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