A taça da violência é nossa!
André Barrocal
Nenhum
país registra tantos homicídios quanto o Brasil.
A esquerda costuma associar violência e
desigualdade. O fato de as Américas serem ao mesmo tempo o continente mais
injusto e mais violento do planeta reforça essa impressão. A direita atribui os índices de
criminalidade à falta de repressão e de investimentos em segurança. Pede mais
polícia, mais presídios e aplaude quem defende a tese de “bandido bom é bandido
morto”. No Brasil, ex-policiais valentões são facilmente eleitos, pois ao menos
14% do eleitorado defende o olho por olho, dente por dente.
Sob qualquer ponto de vista, à esquerda ou
à direita, o País tornou-se um paradoxo:
- Na última década e meia, houve sensível melhora das condições de vida. O desemprego caiu à metade, o salário subiu de forma constante, 36 milhões de cidadãos foram retirados da extrema pobreza.
- Ao mesmo tempo, a elevação dos gastos em segurança tem se mantido contínua há, no mínimo, 20 anos. Os estados investem em tecnologia, equipamentos, treinamento.
Em 2012, último dado
disponível, o País registrou 56.337
assassinatos, segundo a prévia da versão 2014 do Mapa da Violência,
divulgada em maio. A fonte do documento são as certidões de óbito emitidas pelo
Sistema Único de Saúde, a mais confiável estatística disponível em território
nacional. Isso representa uma morte a cada dez minutos. E uma taxa de 29
homicídios para cada 100 mil habitantes, indicador mais utilizado por
especialistas para medir o grau de violência letal em uma nação, pois leva em
conta o tamanho da população. Uma década atrás, o índice não era muito
diferente: 28,5.
Ignacio Cano - sociólogo |
De lá
para cá, morreram assassinados 555.884
brasileiros, ou aproximadamente 50 mil por ano. Jamais, contudo, o País
contabilizara cifra tão elevada quanto aquela de 2012. E o dado pode até estar
subestimado. Um estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que o volume de homicídios é maior e já teria ultrapassado a marca de 60
mil anuais. O aumento das mortes classificadas como “causa indeterminada”,
desconfia-se, seria na verdade um subterfúgio de autoridades estaduais para
maquiar a realidade.
Coautor
do livro Violência Letal, Renda e
Desigualdade no Brasil e coordenador do Laboratório de Análise da Violência
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Ignacio Cano sustenta existir uma relação direta entre pobreza,
desigualdade e violência em áreas específicas – dentro de uma cidade, por
exemplo – e grupos específicos (entre os 20% mais pobres, no caso brasileiro).
Mas não em um ambiente mais complexo como um país. Daí a pequena relação vista
até o momento entre a redução da pobreza e os indicadores de violência.
Existiriam fatores externos à dinâmica
econômica, entre eles:
- a morosidade judicial,
- o excesso de armas de fogo disponíveis ou
- a tal noção conservadora do “bandido bom é bandido morto”.
O
mecanismo mais ousado do estatuto, a proibição
da venda de armas, esbarrou em uma frente de setores conservadores da
sociedade, responsáveis por uma poderosa campanha a favor do direito de se
armar. Em um referendo realizado em 2005,
como estava previsto na lei, 64% dos
brasileiros reprovaram a proibição. Até hoje, comprar uma arma no Brasil é
fácil. Na internet, é possível encomendar um revólver calibre 38 por algo em
torno de 1,1 mil reais e uma bala por 5 reais.
Matar com arma de fogo é bem típico das
Américas. Em nenhum outro lugar assassina-se tanto dessa maneira. De cada três homicídios na região, dois
resultam de disparos, conforme o Estudo Global Sobre Homicídios de 2013,
divulgado em abril pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, o
Unodc. O continente é o único onde as
pistolas são a principal ferramenta dos homicidas. Nos demais, predominam
objetos cortantes, facas e explosivos entre eles. A disponibilidade de armas é
uma das razões para o continente ostentar o inglório título de área mais
violenta do planeta.
Dos 437 mil assassinatos em 2012 estimados
pela ONU:
- 36% aconteceram em alguma nação americana,
- enquanto 31% foram na África,
- 28% na Ásia,
- 5% na Europa e
- 0,3% na Oceania.
A
exemplo do Brasil, os assassinatos mantiveram-se elevados no continente mesmo
durante um período no qual muitas nações, sobretudo sul-americanas e
caribenhas, viram a pobreza e a desigualdade declinarem. Um caso extremo dessa
situação é a Venezuela. A queda da
desigualdade e da pobreza foi acentuada, a ponto de o país tornar-se o menos
desigual na América Latina, segundo as Nações Unidas. O número de assassinatos disparou, porém. O país registra a segunda
maior taxa relativa de homicídios do globo: 53,7 por 100 mil. A cifra só não é pior do que os espantosos 90 casos de Honduras. Em consequência,
a violência esteve no centro da última eleição disputada por Hugo Chávez, em
2012. Presidente cujo governo comandou a distribuição de renda na Venezuela,
Chávez sofreu na eleição os ataques do adversário direitista Henrique Capriles
e sentiu-se obrigado a lançar às pressas um plano de segurança pública. Sem
maiores efeitos.
Responsável
pelo Mapa da Violência há mais de 30
anos e atual coordenador da área de Estudos sobre Violência da Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz avalia que o comportamento da taxa de
homicídios na última década no Brasil revela uma boa e uma má notícia. A boa: o
País reduziu o ritmo desse crime. Nos anos 1980, a taxa por 100 mil habitantes
dobrou. Na década de 1990, subiu 20%. De 2002 a 2012, cresceu “apenas” 2,1%,
embora entre 2011 e 2012 a situação tenha destoado e saltado 7%. O lado ruim da
história é que a sangria foi contida em um patamar absurdo.
Vivemos
uma situação que merece ser descrita como uma “epidemia de homicídios”.
Morreu
mais gente assassinada no Brasil, diz Waiselfisz,
do que
em todas as principais guerras da década passada,
incluídas
as do Iraque e Afeganistão.
O perfil médio das vítimas é de:
- jovens entre 15 e 24 anos,
- negros,
- moradores da periferia e
- do sexo masculino,
- padrão mais ou menos tradicional.
Em
2002, a lista dos cincos estados com as maiores taxas de homicídio era liderada
e dominada pelo Sudeste: Rio de Janeiro, Espírito Santo, Pernambuco, Rondônia e
São Paulo, pela ordem. Após uma década, é liderada e dominada pelo Nordeste:
Alagoas, Espírito Santo, Ceará, Bahia e Goiás. Entre as explicações para o
fenômeno estão a interiorização do
desenvolvimento da economia, o que atrai migrantes e dinheiro para cidades com
um aparato de segurança pública mais débil, e o próprio combate da violência nos grandes centros,
como Rio e São Paulo, o que forçou certa “fuga” de delitos rumo a outras
regiões.
Em Alagoas, que assumiu a embaraçosa
dianteira, com taxa (64,6 casos de
homicídio por 100 mil habitantes) bem superior àquela do segundo colocado
(Espírito Santo, com 47,3), as autoridades consideram inegável o impacto da
migração da criminalidade. “Há oito, dez anos, quase não havia tráfico de
drogas por aqui. Hoje, 90% dos homicídios são causados pelo tráfico, o pessoal
do Centro-Sul invadiu Alagoas”, diz o secretário estadual de Segurança Pública,
Diógenes Tenório.
Walter de Agra Júnior - promotor |
A
“invasão” de um dos estados mais pobres e dono de alguns dos piores indicadores
sociais do País transformou sua capital, Maceió,
na quinta cidade com mais assassinatos
no mundo, tomando-se por base o estudo da ONU. A situação é tão grave que, desde 2012, a polícia local vale-se do
apoio da Força Nacional de Segurança Pública no combate ao crime. Em 2013,
o estado criou uma divisão policial especializada em homicídios para tentar
melhorar as investigações e as possibilidades de punir os matadores.
A inoperância policial na averiguação de
homicídios é um problema nacional e precisa ser atacada com urgência, na
opinião dos estudiosos. E, diferentemente de outros serviços públicos como
saúde e transporte coletivo, a causa não é orçamentária. Desde 2005, o Brasil investe perto de 1,3% do Produto Interno Bruto em
segurança pública. É o mesmo porcentual aplicado pela França. Só no ano
passado, foram 61 bilhões de reais, conforme o anuário estatístico do setor.
Para o Conselho Nacional do Ministério Público,
o trabalho policial pouco qualificado dificulta o julgamento de suspeitos de
assassinato. É necessário, diz Walter de Agra, representante do CNMP
na Estratégia Nacional de Segurança Pública, ter:
- mais delegacias especializadas,
- laboratórios,
- perícia,
- inteligência,
- treinamento e
- integração entre as polícias.
Subsecretário
de Planejamento e Integração Operacional da área de Segurança Pública do Rio de
Janeiro, que em 2002 tinha a maior taxa estadual de homicídios e “perdeu” o
posto na última década, Roberto Sá, nega
que a baixa efetividade policial seja um convite ao crime de homicídio. A
polícia, afirma, melhorou e está mais produtiva. Linha-dura, ele sente falta de
rigor contra o crime. Defende a redução da maioridade penal para 16 anos e
penas mais duras. Segundo Sá, enquanto o Rio cortava pela metade sua taxa de
homicídios, por meio de iniciativas como as Unidades de Polícia Pacificadora e delegacia especializada, registraram-se uma elevada reincidência
(os detidos costumam ser os mesmos) e o aumento da participação de
adolescentes. “O que temos feito no Rio nos permite inferir que há uma
legislação branda para um povo violento.”
Julita Lemgruber - socióloga |
Os dados
indicam uma grande responsabilidade dos policiais pela elevada taxa de
homicídios. E não só por sua incompetência investigativa. No ano passado, a polícia matou cinco cidadãos por dia no Brasil,
quatro vezes mais do que nos Estados Unidos e duas vezes e meia o índice
registrado na Venezuela, segundo o anuário estatístico. “A polícia é parte do problema no Brasil. Matar cinco por dia é
inaceitável”, afirma a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro
de Estudos e Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes e ex-diretora
do sistema penitenciário fluminense:
- Com uma polícia que mata,
- poucas opções de lazer nas periferias,
- educação que avançou em matrículas, mas não em qualidade, e
- uma postura de “guerra às drogas” por parte do aparato de segurança, diz Julita Lemgruber, não dá para esperar resultados muito animadores contra os homicídios, em que pesem iniciativas estaduais específicas.
[...]
Para
além de mudanças pontuais na legislação, o combate aos homicídios carece,
sobretudo, de uma radical alteração na
postura por parte da sociedade e das autoridades. De um novo pacto
civilizatório, afirma o sociólogo Renato
Sérgio de Lima, da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e um dos
fundadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo ele, no Brasil não há sanção moral, econômica ou
judicial a assassinatos. A tese de que “bandido bom é bandido morto”
encontra uma ressonância de Norte a Sul, balas e revólveres custam pouco, não
se pega cadeia. “O Brasil é violento. A
morte precisa ser um tabu.”
O País
precisa urgentemente de um grande debate nacional e de prioridade no combate à
violência e aos assassinatos, afirma Lima.
Em todas as pesquisas de opinião, segurança pública e violência figuram entre
os três principais problemas brasileiros, ao lado de saúde e educação. É,
no entanto, um tema frequentemente evitado pelas principais lideranças
políticas, pois os resultados nessa área são lentos e normalmente não rendem
dividendos eleitorais. As eleições de outubro são uma boa oportunidade para o
assunto ganhar espaço no debate público. Ele precisa, porém, permanecer na
pauta nacional após o encerramento das urnas.
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