Em 2014, o mundo tem um califado islâmico. Como isso foi possível?
José
Antonio Lima
Imagem mostra o que seria a execução de soldados iraquianos por integrantes do Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS, em inglês), em 14 de junho, na província de Salahuddin |
No
domingo 29, o grupo ultrarradical Estado Islâmico do Iraque e da Síria anunciou
a criação de um califado, com o objetivo de governar todas as populações
muçulmanas. Por enquanto, o estado islâmico recém-inaugurado se estende do
norte da Síria ao Iraque oriental, mas seu projeto é territorialmente
ilimitado. A ideia de reeditar o califado é um delírio de extremistas, mas
ajuda a mostrar a gravidade daquele que se tornou o problema central para a
segurança do Oriente Médio.
Como
mostra a reportagem de capa de CartaCapital que está nas bancas desde a
sexta-feira 27, o Estado Islâmico do Iraque e da Síria, conhecido pelo acrônimo
ISIS [inglês: Islamic State of Iraq and Syria], é uma herança da desastrosa ocupação do Iraque liderada pelos Estados
Unidos em 2003. Uma das falsas alegações da administração George W. Bush para
invadir o Iraque era a suposta ligação entre o regime de Saddam Hussein e a
Al-Qaeda. Essa conexão jamais existiu, mas a organização terrorista de Osama
bin Laden eventualmente se instalou no país, graças ao vácuo administrativo e
de segurança provocado pela política americana de desmantelar o Exército
montado por Saddam Hussein e dissolver o Baath, partido que o sustentava no
poder.
A origem
Abu Musab Al-Zarqawi - líder assassinado do grupo radical sunita Jama'at al-Tawhid wal-Jihad |
Com o
Estado iraquiano falido, o país virou polo atrativo para jihadistas do mundo
todo e inúmeros grupos militantes passaram a ter mais liberdade para agir.
Neste período, cresceu a violência entre a minoria sunita, que até então estava
no poder por meio de Saddam Hussein, a maioria xiita, oprimida pelo ditador, e
os curdos, também reprimidos. Entre os grupos violentos sunitas estava o
Jama'at al-Tawhid wal-Jihad, liderado pelo jordaniano Abu Musab Al-Zarqawi. Em
2004, em sua campanha contra a comunidade xiita, Zarqawi jurou lealdade a Bin
Laden e transformou sua facção na Al-Qaeda no Iraque.
O braço
iraquiano da Al-Qaeda se notabilizou pelos métodos intensamente violentos
empregados na guerra civil ocorrida no Iraque em 2006 e 2007. As atrocidades
contra xiitas, curdos, sunitas e estrangeiros eram tão grandes que alienaram
também as populações sunitas do Iraque. Sob a coordenação dos EUA, diversas
tribos iraquianas se engajaram no que ficou conhecido como Despertar Sunita, e
passaram a combater a Al-Qaeda no Iraque ao lado das tropas regulares
iraquianas e das forças ocidentais. A campanha resultou no recuo da Al-Qaeda e
em uma importante, mas não definitiva, redução na violência sectária no país.
A
hostilidade à Al-Qaeda provocou também mudanças de estratégia na liderança
local do grupo. No fim de 2006, após o assassinato de Zarqawi, em um bombardeio
americano, a Al-Qaeda no Iraque passou a ser conhecida como Estado Islâmico do
Iraque. Não era apenas uma troca de nome. O grupo estava abandonando a “marca”
Al-Qaeda e também a luta global, para se concentrar na causa iraquiana.
A questão síria
A
chamada Primavera Árabe mudou os planos. Assim como na Tunísia e no Egito, a
Síria teve, a partir de março de 2011, inúmeras manifestações populares contra
o regime de Bashar al-Assad. O ditador alegava que não eram manifestações
legítimas, mas promovidas por terroristas. Assad estava errado, mas logo ficou
claro que sua profecia era autorrealizável. A repressão promovida por ele, em
conjunto com o financiamento de milícias anti-Assad pelos países do Golfo Pérsico,
fez a Síria tomar do Iraque o posto de polo atrativo de jihadistas.
Desde
2010 sob a liderança de Abu Bakr al-Baghdadi, o Estado Islâmico do Iraque
cruzou a fronteira, enviou inúmeros jihadistas para combater Assad e ajudou a
formar a Frente al-Nusra, braço da Al-Qaeda na Síria. Em 2013, Baghdadi
anunciou a fusão dos dois grupos – Estado Islâmico do Iraque e Frente al-Nusra
– sob o nome Estado Islâmico do Iraque e da Síria, ISIS. A aliança não duraria
muito.
Em guerra contra
todos
Hoje, o
ISIS tem uma atuação transnacional. Atua tanto no Iraque quanto na Síria, e vem
registrando inúmeros ganhos territoriais.
No
Iraque, o principal foco de violência é a província de Anbar, no oeste do país [veja mapa abaixo].
Líderes tribais sunitas, abandonados pelo governo do xiita Nouri al-Maliki após
o Despertar Sunita, combatem o governo central com a alegação de que são
marginalizados. Ao lado deles, mas com uma causa global, está o ISIS. Melhor
armado e preparado, o grupo tem tomado várias cidades iraquianas, sendo a
principal delas Fallujah, que desde janeiro segue sob domínio dos extremistas.
Em seu caminho, o ISIS deixa um rastro de violência extrema, que inclui
execuções em massa e até mesmo crucificações.
Tradução da legenda do mapa: ISIS: presença, cidade controlada ou contestada ataques Curdistão: áreas de controle (Síria) Região pertencente, de fato, ao Iraque |
Na
Síria, o ISIS combate tanto o governo Assad quanto outras milícias sunitas que
lutam para destituir o regime sírio. Parece um contrassenso, mas, pelo ponto de
vista de Abu Bakr al-Baghdadi, não é. Como sua causa é global, o ISIS busca
firmar seu domínio sobre os jihadistas de todos os tipos. Prefere, assim,
atacar agora outros extremistas e deixar a batalha contra Assad para o futuro.
Graças a esta estratégia, o ISIS entrou em confronto a Frente al-Nusra e com a
liderança global da Al-Qaeda.
Abu Bakr al-Baghdadi Atual líder do ISIS |
A
declaração de fundação do califado, desta forma, é também uma tentativa de
reivindicar a liderança do jihadismo global. Na declaração pública transmitida
pela internet em cinco línguas, o ISIS, que agora deseja ser chamado unicamente
de Estado Islâmico, pediu a lealdade de todos os jihadistas do mundo e também
de todos os muçulmanos.
A
"fundação" do Estado Islâmico escancara os problemas do Oriente
Médio. Normalmente, os conflitos na região têm origem nas diferenças entre dois
blocos. Em um deles estão os aliados dos Estados Unidos, como Israel, Arábia
Saudita e as monarquias do Golfo. No outro está o Irã, o grupo libanês
Hezbollah e o regime Assad. Hoje, a disputa entre esses dois blocos é uma das
principais causas a impedir o surgimento de governos inclusivos e democráticos
na Oriente Médio, e o que acontece no Iraque e na Síria é exemplo claro disso.
O ISIS nada mais é que o resultado extremo do desespero existente no Oriente
Médio. Eventualmente, o grupo será esfacelado, pelos EUA, pelo Irã ou por uma
união entre os dois. Mas a ideia da Al-Qaeda e do jihadismo global continuará
viva. Se o terreno fértil de pobreza, autoritarismo e violência em que ela se
desenvolve não for tornado infrutífero, novos grupos como esse continuarão a
surgir.
Fonte: CartaCapital –
Internacional/Oriente Médio – 30/06/2014 – 14h56 – última modificação:
30/06/2014 às 16h24 – Internet: clique aqui.
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