A IGREJA CATÓLICA QUER VIRAR PÁGINA

''Como Jesus, vou usar o bastão contra os padres pedófilos.''


Entrevista com Papa Francisco

Eugenio Scalfari
La Repubblica (Roma – Itália)
13-07-2014

"A pedofilia é uma lepra que há na Igreja e também afeta os bispos e os cardeais. Alguns sacerdotes passam por cima do fenômeno mafioso: a denúncia pública é rara".
Papa Francisco

São as 17 horas da quinta-feira, 10 de julho, e é a terceira vez que eu encontro o Papa Francisco para conversar com ele. Sobre o quê? Sobre o seu pontificado, que começou há pouco mais de um ano e que, em tão pouco tempo, já começou a revolucionar a Igreja; sobre as relações entre os fiéis e o papa que vem do outro lado do mundo; sobre o Concílio Vaticano II concluído há 50 anos e apenas parcialmente implementado nas suas conclusões; sobre o mundo moderno e a tradição cristã e, sobretudo, sobre a figura de Jesus de Nazaré.
Finalmente, sobre a nossa vida, sobre os seus afãs e as suas alegrias, sobre os seus desafios e o seu destino, sobre o que nos espera em um esperado além ou sobre o nada que a morte traz consigo.

Esses nossos encontros foram desejados pelo Papa Francisco, porque, entre as tantas pessoas de todas as condições sociais, de todas as fés, de todas as idades que ele encontra no seu apostolado cotidiano, ele também desejava trocar ideias e sentimentos com um não crente.

E eu o sou; um não crente que ama a figura humana de Jesus, a sua pregação, a sua lenda, o mito que ele representa aos olhos de quem reconhece uma humanidade de excepcional densidade, mas nenhuma divindade.

O papa considera que uma conversa com um não crente do gênero é reciprocamente estimulante e, por isso, quer continuá-la; digo isso porque foi ele quem me disse. O fato de eu também ser jornalista não o interessa especificamente; eu poderia ser engenheiro, professor escolar, operário.
Interessa-lhe falar com quem não acredita, mas gostaria que o amor ao próximo professado há 2.000 anos pelo filho de Maria e de José fosse o principal conteúdo da nossa espécie, enquanto, infelizmente, isso acontece muito raramente, dominado pelos egoísmos, por aquilo que Francisco chama de "cobiça de poder e desejo de posse".

Ele definiu isso em uma nossa conversa anterior como "o verdadeiro pecado do mundo, do qual todos somos afetados", e representa a outra forma da nossa humanidade, e é a dinâmica entre esses dois sentimentos que constrói, para o bem ou para o mal, a história do mundo.

Ela está presente em todos, e, além disso, na tradição cristã, Lúcifer era o anjo predileto de Deus, portador de luz até que se rebelou contra o seu Senhor, tentado a tomar o seu lugar, e o seu Deus o precipitou nas trevas e no fogo dos condenados.

Falamos dessas coisas, mas também das intervenções do papa nas estruturas da Igreja, das adversidades que ele encontra. Devo dizer que, para além do extremo interesse dessas conversas, nasceu em mim um sentimento de afetuosa amizade que não modifica em nada o meu modo de pensar, mas de sentir, isso sim. Não sei se é correspondido, mas a espontaneidade desse muito estranho sucessor de Pedro me faz pensar que sim.

Agora, estou esperando-o há alguns minutos na pequena sala no piso térreo de Santa Marta, onde o papa recebe os amigos e os colaboradores. Ele chega pontualíssimo, sem ninguém que o acompanhe. Ele sabe que eu tive nos últimos dias alguns problemas de saúde e, de fato, logo me pede notícias a respeito. Coloca a sua mão sobre a cabeça, uma espécie de bênção, e depois me abraça. Fecha a porta, ajeita a sua cadeira na frente da minha e começamos.

* * *   * * *   * * *

Pedofilia e máfia são os dois temas sobre os quais Francisco falou nos últimos dias e que levantaram uma onda de sentimentos e também de polêmicas dentro e fora da Igreja. O papa é muito sensível tanto em relação a um quanto ao outro assunto e já tinha falado, em várias ocasiões, mas ainda não os tinha tomado tão a peito, sobretudo sobre os pontos referentes ao comportamento de uma parte do clero.

"A corrupção de uma criança", diz, "é o que de mais terrível e imundo se possa imaginar, especialmente quando, como indicam os dados que eu pude examinar diretamente, grande parte desses fatos abomináveis ocorrem dentro das famílias ou mesmo de uma comunidade de velhas amizades. A família deveria ser o sacrário onde a criança e depois o menino e o adolescente são amorosamente educados ao bem, encorajados no crescimento estimulado a construir a própria personalidade e a se encontrar com a dos seus coetâneos. Brincar juntos, estudar juntos, conhecer o mundo e a vida juntos. Isso com os coetâneos, mas, com os parentes que os colocaram no mundo ou que os viram entrar no mundo, a relação é como o de cultivar uma flor, um canteiro de flores, cuidando-o do mau tempo, desinfetando-a dos parasitas, contando-lhes as fábulas de vida e, enquanto o tempo passa, a sua realidade. Essa é ou deveria ser a educação que a escola completa e a religião coloca no plano mais alto do pensar e do crer no sentimento divino que se assoma às nossas almas. Muitas vezes, transforma-se em fé, mas, mesmo assim, deixa uma semente que, de algum modo, fecunda aquela alma e a volta para o bem."

Enquanto fala e diz essas verdades, o papa se aproxima de mim ainda mais. Fala comigo, mas é como se refletisse consigo mesmo, desenhando o quadro da sua esperança que coincide com a de todas as pessoas de boa vontade.

Provavelmente – digo eu – isso é uma grande parte do que acontece. Ele me olha com olhos diferentes, que de repente se tornaram duros e tristes. "Não, infelizmente não é assim. A educação como nós a entendemos parece quase ter desertado as famílias. Cada um é tomado pelas próprias incumbências pessoais, muitas vezes para assegurar à família um padrão de vida suportável, às vezes para buscar o seu próprio sucesso pessoal, outras vezes por amizades e amores alternativos. A educação como tarefa principal em relação aos filhos parece ter fugido das casas. Esse fenômeno é uma gravíssima omissão, mas ainda não estamos no mal absoluto. Não apenas a educação inexistente, mas também a corrupção, o vício, as práticas torpes impostas à criança e, depois, praticadas e atualizadas cada vez mais gravemente, assim que ela cresce e se torna moço e, depois, adolescente. Essa situação é frequente nas famílias, praticada por parentes, avós, tios, amigos da família. Muitas vezes, os outros membros da família estão conscientes disso, mas não intervêm, enredados por interesse ou por outras formas de corrupção".
Eugenio Scalfari - jornalista italiano - diretor do "La Repubblica"

Eis a entrevista.

Para o senhor, Santidade, o fenômeno é frequente e generalizado?
Papa Francisco: "Infelizmente, é e é acompanhado por outros vícios, como a disseminação das drogas."

E a Igreja? O que a Igreja faz em tudo isso?
Papa Francisco: "A Igreja luta para que o vício seja debelado e a educação, recuperada. Mas nós também temos essa lepra em casa."

Um fenômeno muito generalizado?
Papa Francisco: “Muitos dos meus colaboradores que lutam comigo me tranquilizam com dados confiáveis que avaliam a pedofilia dentro da Igreja em nível de 2%. Esse dado deveria me tranquilizar, mas devo lhe dizer que realmente não me tranquiliza. Ao contrário, eu o considero gravíssimo. Os 2% de pedófilos são sacerdotes e até bispos e cardeais. E outros, ainda mais numerosos, sabem, mas se calam, punem, mas sem dizer o motivo. Eu acho insustentável esse estado de coisas, e a minha intenção é enfrentá-lo com a severidade que exige.”

* * *   * * *   * * *

Lembro ao papa que, na nossa conversa anterior, ele me disse que Jesus era o exemplo da doçura e da mansidão, mas, às vezes, pegava o bastão para derrubá-lo nas costas dos velhacos que sujavam o Templo moralmente.

"Eu vejo você se lembra muito bem das minhas palavras. Eu citava as passagens dos Evangelhos de Marcos e de MateusJesus amava a todos, até mesmo os pecadores que ele queria redimir, dispensando o perdão e a misericórdia, mas, quando usava o bastão, empunhava-o para expulsar o demônio que tinha se apossado daquela alma."

As almas – isso também o senhor me disse no nosso encontro anterior – podem se arrepender depois de uma vida de pecados, mesmo no último momento da sua existência, e a misericórdia estará com elas.
Papa Francisco: "É verdade, essa é a nossa doutrina, e esse é o caminho que Cristo nos indicou."

Mas pode ocorrer que alguns arrependimentos no último minuto de vida sejam interessados. Talvez inconscientemente, mas interessados em se garantir um possível além. Nesse caso, a misericórdia corre o risco de acabar em uma armadilha.
Papa Francisco: "Nós não julgamos, mas o Senhor sabe e julga. A sua misericórdia é infinita, mas nunca cairá em uma armadilha. Se o arrependimento não é autêntico, a misericórdia não pode exercer o seu papel de redenção."

O senhor, Santo Padre, no entanto, lembrou várias vezes que Deus nos dotou com o livre arbítrio. O senhor sabe bem que, se escolhermos o mal, a nossa religião não exerce misericórdia para conosco. Mas há um ponto que eu gostaria de destacar: a nossa consciência é livre e autônoma. Pode, em perfeita boa fé, fazer o mal convencida, porém, de que, a partir desse mal, nascerá um bem. Qual é, diante de casos desse tipo, que são muito frequentes, a atitude dos cristãos?
Papa Francisco: "A consciência é livre. Se escolher o mal, porque está segura de que dele derivará um bem do alto dos céus, essas intenções e as suas consequências serão avaliadas. Nós não podemos dizer mais, porque não sabemos mais. A lei do Senhor é o Senhor que estabelece, e não as criaturas. Nós sabemos somente porque foi Cristo que nos disse que o Pai conhece as criaturas que criou, e nada para ele é misterioso. Além disso, o livro de  examina a fundo esse tema. Recorda-se que falamos disso? Seria preciso examinar a fundo os livros sapienciais da Bíblia e o Evangelho quando fala de Judas Iscariotes. São temas de fundo da nossa teologia subjacente."

E também da cultura moderna que vocês querem compreender a fundo e com a qual querem debater.
Papa Francisco: "É verdade, é um ponto capital do Vaticano II, e devemos enfrentá-lo o mais rápido possível."

Santidade, ainda é preciso falar sobre o tema da máfia. O senhor tem tempo?
Papa Francisco: "Estamos aqui para isso."

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Papa Francisco: "Não conheço a fundo o problema das máfias. Sei, infelizmente, o que elas fazem, os crimes que são cometidos, os enormes lucros que as máfias administram. Mas me escapa o modo de pensar dos mafiosos, os chefes, os gregários. Na Argentina, como em todos os lugares, há os delinquentes, os ladrões, os assassinos, mas não as máfias. É esse aspecto que eu gostaria de examinar, e vou fazer isso lendo os tantos livros que foram escritos a respeito e os muitos testemunhos. Você é de origem calabresa, talvez possa me ajudar a entender."

O pouco que posso dizer é isto: a máfia – seja calabresa, seja siciliana, seja a camorra napolitana – não são acólitos desviados de delinquentes, mas são organizações que têm leis próprias, códigos de comportamento próprios, cânones próprios. Estados no Estado. Que não lhe pareça paradoxal se eu lhe disser que elas têm uma ética própria. E que não lhe pareça anormal se eu acrescentar que elas têm um Deus próprio. Existe um Deus mafioso.
Papa Francisco: "Entendo o que você está dizendo: é um fato que a maior parte das mulheres ligadas à máfia por vínculos de parentesco, as esposas, as filhas, as irmãs, frequentam assiduamente as igrejas das suas cidades, onde o prefeito e outras autoridades locais muitas vezes são mafiosos. Essas mulheres pensam que Deus perdoa os horríveis crimes dos seus parentes?"

Santidade, os mesmos parentes muitas vezes frequentam as igrejas, as missas, os casamentos, os funerais. Não acredito que se confessem, mas muitas vezes comungam e batizam os recém-nascidos. Esse é o fenômeno.
Papa Francisco: "O que você diz é claro, e, além disso, não faltam livros, pesquisas, documentações. Devo acrescentar que alguns sacerdotes tendem a passar por cima do fenômeno mafioso. Naturalmente, condenam os crimes individuais, honram as vítimas, ajudam como podem as suas famílias, mas a denúncia pública e constante das máfias é rara. O primeiro grande papa que a fez, justamente falando nestas terras, foi Wojtyla. Devo dizer que o seu discurso foi aplaudido por uma multidão imensa."

O senhor pensa que nessa multidão que aplaudia não havia mafiosos? Pelo que eu saiba, havia muitos. O mafioso, repito, aplica um código próprio e uma ética própria: os traidores devem ser mortos, os desobedientes devem ser punidos, às vezes o exemplo é dado com o homicídio de crianças ou de mulheres. Mas esses, para o mafioso, não são pecados, são as suas leis. Deus não tem nada a ver, muito menos os santos padroeiros. O senhor viu a procissão de Oppido Mamertina?
Papa Francisco: "Eram milhares os participantes. Depois, a estátua de Nossa Senhora das Graças parou na frente da janela do boss que está sob custódia em prisão perpétua. Justamente, tudo isso está mudando e vai mudar. A nossa denúncia das máfias não será feita de vez em quando, mas será constante. Pedofilia, máfia: a Igreja, o povo de Deus, os sacerdotes, as comunidades, dentre outras tarefas, terão essas duas questões muito principais."

* * *   * * *   * * *

Passou uma hora, e eu me levanto. O papa me abraça e me deseja que eu melhore o mais rápido possível. Mas eu lhe faço ainda mais uma pergunta:

O senhor, Santidade, está trabalhando assiduamente para integrar a catolicidade com os ortodoxos, com os anglicanos...
Ele me interrompe continuando:
Papa Francisco: "Com os valdenses, que eu considero como religiosos de primeira ordem, com os pentecostais e, naturalmente, com os nossos irmãos judeus".

Pois bem, muitos desses sacerdotes ou pastores são regularmente casados. Quanto esse problema vai crescer com o tempo na Igreja de Roma?
Papa Francisco: "Talvez você não saiba que o celibato foi estabelecido no século X, isto é, 900 anos depois da morte de nosso Senhor. A Igreja católica oriental tem a faculdade, desde já, de que os seus presbíteros se casem. O problema certamente existe, mas não é de grande entidade. É preciso tempo, mas as soluções existem, e eu as encontrarei.

* * *   * * *   * * *

Já estamos fora do portão de Santa Marta. Abraçamo-nos de novo. Confesso que me comovi. Francisco acariciou minha bochecha, e o carro partiu.

Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 14 de julho de 2014 – Internet: clique aqui.

Reforma financeira no Vaticano:
seriedade no trato do dinheiro

Entrevista com o Cardeal George Pell

Gerard O'Connell
revista America
11-07-2014
Cardeal George Pell
Prefeito da Secretaria da Economia - Vaticano

Papa Francisco está no bom caminho para conseguir uma reforma total e radical das finanças do Vaticano. Isso ficou abundantemente claro no dia 9 de julho, quando o cardeal australiano George Pell, o homem que ele nomeou para liderar essa reforma, apresentou o novo quadro econômico da Santa Sé, em uma lotada coletiva de imprensa no Vaticano.

Falando em inglês, ele anunciou uma reestruturação e um downsizing [enxugamento] do escandaloso banco vaticano, cujo nome próprio é Instituto para as Obras de Religião (IOR), a substituição de todo o seu conselho de administração e a nomeação de um executivo francês, Jean-Baptiste de Franssu, como novo presidente do banco. Uma unidade de gestão de ativos do Vaticano será estabelecida, disse ele, e o Fundo de Pensões será revisto para garantir um futuro seguro para os cerca de 5.000 empregados do Vaticano.

O cardeal Pell, a quem o papa nomeou como prefeito da recém-criada Secretaria da Economia no início deste ano, também anunciou uma reestruturação da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica, que coloca toda essa operação sob o controle de sua Secretaria.

Embora progressos significativos já tenham sido feitos nas finanças do Vaticano, eles ainda são um trabalho em andamento. Dessa forma, por exemplo, as contas da Santa Sé de 2014, como as de 2013, estão sendo preparadas de acordo com as velhas normas ainda pela Prefeitura dos Assuntos Econômicos da Santa Sé, um organismo que está destinado a desaparecer, enquanto as de 2015 serão feitas pela nova Secretaria.

Na coletiva de imprensa, o cardeal também anunciou a criação de um comitê que estará sob a liderança do lorde britânico Christopher Patten, ex-presidente do BBC Trust, para propor estratégias para a Comunicação Social do Vaticano.
Um dia depois, em 10 de julho, o cardeal Pell concedeu a seguinte entrevista exclusiva para a revista America, em seu escritório na Torre de São João na colina do Vaticano. Ele falou livremente sobre o que já foi alcançado e o que ainda precisa ser feito antes que ele possa afirmar que a reforma esteja concluída.

Eis a entrevista.

Ontem o senhor apresentou o novo quadro econômico para a Santa Sé e falou sobre essas mudanças de longo prazo como um divisor de águas na história das finanças do Vaticano. O senhor disse: "A nossa ambição é a de que nos tornemos uma espécie de modelo de gestão financeira, em vez de ser ocasião de escândalo". O senhor poderia identificar qual é a verdadeira novidade aqui, onde é a ruptura com o passado?
George Pell: Em primeiro lugar, há um significativo envolvimento leigo, de pessoas de diferentes países, com alto nível de conhecimento e com direito a voto. Isso é um novo desenvolvimento muito significativo. Outro objetivo bastante explícito é ter não apenas pesos e contrapesos, mas vários focos de autoridade. Assim, a Secretaria da Economia não está mais sob a Secretaria de Estado. Essa é a primeira grande mudança. O Conselho da Economia está a cargo da Secretaria da Economia, não é um órgão consultivo. Isso representa uma mudança também. E haverá grupos mistos significativos de cardeais e leigos responsáveis ​​pelas diferentes entidades do Vaticano, e substancialmente não haverá a mesma sobreposição - embora possa haver alguma sobreposição de pertença -, mas não vão ser as mesmas três ou quatro pessoas administrando cada instituição diferente. Nem qualquer pessoa em particular!

A criação da Secretaria da Economia é efetivamente uma mudança estrutural na Cúria Romana, porque até agora existiam o banco vaticano (IOR), a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA) e a Prefeitura para Assuntos Econômicos da Santa Sé.
George Pell: Sim, e muito importante também, agora existe o Conselho de Economia, que tem a supervisão e poderes significativos para agir e dirigir, bem como para supervisionar por meio da Secretaria da Economia. Isso também faz parte da mudança estrutural.

O senhor responde diretamente ao Conselho ou ao papa?
George Pell: Não, eu respondo ao Conselho. Eles fazem as recomendações políticas.

É o senhor quem escolhe as pessoas que são nomeadas para as diferentes comissões?
George Pell: Eu dou a minha opinião, mas outras entidades também. A Comissão Pontifícia para a Organização da Estrutura Econômica-Administrativa da Santa Sé (COSEA, recentemente dissolvida) deu uma contribuição significativa, a Secretaria de Estado tem participação significativa, e nas diferentes áreas nós temos opiniões de especialistas. Assim, por exemplo, na área da previdência, ouvimos alguns especialistas. Quanto à mídia, nós trabalhamos em estreita colaboração com o Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais para organizar o comitê. Então, muitas dessas pessoas eu não conheço pessoalmente.
Jean-Baptiste de Franssu - novo presidente do IOR (Banco do Vaticano)

Quem dá as cartas no fim das contas?
George Pell: Nós fazemos recomendações ao Santo Padre e, em alguns casos, podemos colocar dois ou três candidatos alternativos em uma determinada categoria. O Santo Padre aprova todos eles. Às vezes, ele escolhe um entre as alternativas e, às vezes, sugere um novo.

É o senhor quem controla, agora, o orçamento da Secretaria de Estado?
George Pell: No fim, seremos nós. A forma como vamos fazer isso é trabalhando com a Secretaria de Estado e com todos os outros dicastérios (escritórios) no Vaticano. Eles vão fazer o trabalho básico preliminar, organizando seus orçamentos. Será um pouco como em um governo, alguém tem que dizer no fim quanto dinheiro podemos gastar e então vamos distribuir o dinheiro disponível com os diferentes departamentos. Vamos controlar os gastos dentro do orçamento de cada dicastério durante o ano, e eles deverão permanecer dentro de seu orçamento.

No passado - e isso tem sido um ponto de discórdia - nos diversos dicastérios do Vaticano, havia um prefeito ou um presidente que tinha alguns projetos favoritos e que podia encontrar alguns bons patrocinadores, fossem eles ligados à Igreja Católica ou não, e que deram a esses organismos uma certa influência no Vaticano. Esse tipo de coisa vai continuar?
George Pell: Vamos ter que ver isso com muito cuidado. Nós não tomamos nenhuma posição oficial sobre isso ainda. Estou aberto a que os dicastérios recebam doações, mas teremos que ter regras para isso e teremos que ter claro que tais doações não vêm de partes interessadas e não podem ser usadas ​​como um instrumento de influência para projetos ou para quaisquer outros fins.

Então, as doações não podem ser usadas ​​para influenciar os projetos, as nomeações ou coisas semelhantes?
George Pell: Sim, é isso mesmo.

A seção ordinária da APSA está agora sob o controle da Secretaria da Economia. O que exatamente está envolvido aqui?
George Pell: A administração do dia a dia da Santa Sé, e não do Governatorato do Estado da Cidade do Vaticano e das propriedades da Santa Sé.

Isso inclui as propriedades da Propaganda Fide (Congregação para a Evangelização dos Povos)?
George Pell: Não, eles agora vão fazer a sua própria administração. Prevejo que vai continuar, mas eu também antecipo que, assim como com todos os nossos dicastérios, se eles tiverem investimentos, eles terão que cumprir determinados critérios. E se eles têm portfólios de propriedades eles deverão trabalhar dentro de certos parâmetros, e se eles não estão recebendo os aluguéis comerciais reconhecidos para as propriedades, vamos querer saber o porquê.

A seção extraordinária da APSA se tornará como um Tesouro. O que isso significa?
George Pell: Ela terá algumas das funções de um banco central. Os institutos do Vaticano terão a sua riqueza com a APSA. Mesmo agora muitas das propriedades dos institutos já estão com a APSA e não com o IOR.

No que diz respeito à política de emprego no Vaticano, o senhor estará envolvido no recrutamento de pessoal?
George Pell: Não muito no recrutamento, e em algumas áreas, certamente não. O que quero dizer é que a Secretaria da Economia não tem competência ou capacidade de dizer quais os especialistas teológicos ou peritos litúrgicos que deveriam trabalhar nas diferentes congregações. Mas eu acho que é altamente provável que vamos sugerir o que seria um número adequado de trabalhadores em uma determinada área, e também é possível que venhamos a dizer: "Vocês tem um orçamento, recomendamos este número de trabalhadores, mas se vocês desejam reorganizar os projetos e dizer, por exemplo, que querem ter um membro a menos na equipe e liberar os fundos, então, vamos olhar para isso". Dessa forma, tentaremos através da colaboração e discussão mútua chegar a um acordo sobre o valor adequado para o ano, e, em seguida, esse dicastério em particular terá de gerir o seu programa dentro desse montante específico. Então, valha-me Deus, eles não vão ter que esperar três semanas para comprar uma dúzia de canetas!

O senhor está introduzindo o que no mundo anglo-saxão seria considerado normal em uma contabilidade e procedimentos administrativos em todos os escritórios do Vaticano.
George Pell: Eu não gostaria de dizer que são padrões anglo-saxões, prefiro chamá-los de práticas internacionais de negócios.

O senhor terá um escritório de Recursos Humanos?
George Pell: Haverá um escritório de Recursos Humanos mais adiante. Obviamente, parte de seu trabalho estará muito relacionado com as finanças.

Vamos falar sobre o banco vaticano, o IOR. O senhor disse que a fase 1 da reforma foi alcançada com sucesso.
George Pell: De um modo geral, sim.

Por que foi necessário, então, mudar a cabeça do IOR após apenas 17 meses e trazer um novo chefe?
George Pell: Eu não sabia que era necessário, mas considerou-se adequado, e Ernst Von Freyberg (o chefe desde fevereiro de 2013) estava totalmente de acordo com isso. Ele deu dois motivos: um, ele não poderia dedicar-se em tempo integral ao trabalho e, outro, parte do futuro (do IOR) será tratar da gestão de ativos, e ele não é um especialista nessa área.

O senhor quis propor o novo chefe da IOR?
George Pell: Eu não sei se eu o havia proposto, mas certamente apoiei sua nomeação. Jean-Baptiste de Franssu foi recomendado por uma empresa de recrutamento e ele tinha trabalhado com o COSEA.

Ele estará envolvido na gestão de ativos. O que isto significa?
George Pell: Significa obter o melhor rendimento possível em seus ativos - ou seja, em suas propriedades, ações e investimentos - de acordo com normas éticas. Dentro desses princípios gerais, as verbas que pertencem a essas entidades diferentes serão colocadas todas juntas, porque eu acredito que, com uma soma maior, elas vão obter um retorno melhor.

No que se refere às normas éticas, eu entendo que o Vaticano vai garantir que ele não estará investindo em armas ou em áreas onde o trabalho infantil é utilizado.
George Pell: É isso mesmo. Nós já estamos fazendo isso, mas, nessa área, vamos ter certeza de que tudo estará sendo feito de forma correta.

No passado, o Vaticano teve um conselho de cardeais e um conselho de leigos que fiscalizavam o IOR (o banco vaticano), e tivemos muitos desastres. O que será feito para evitar que essa nova combinação de prelados e leigos vá por essa mesma estrada?
George Pell: Ninguém pode dar garantias absolutas, mas, desde a nomeação de Von Freyberg a situação tem mudado basicamente bem. A relação exata entre os peritos leigos internacionais e os cardeais nessa área ainda não foi completamente trabalhada. Mas podemos ter certeza de duas coisas: um grupo de cardeais com um conhecimento muito limitado na área bancária não vai estar administrando o banco, e um grupo exclusivamente de leigos não estará dirigindo a Igreja, de modo que haverá algumas formas eficazes de cooperação . Estaremos tentando conceber um sistema de forma a não cair nos velhos modos.
Há outra consideração muito importante aqui também: é o escritório da Autoridade de Informação Financeira (AIF). A AIF investiga a fundo todo o clero e os leigos que são nomeados para cargos financeiros superiores, de modo que ninguém será nomeado se não conseguir uma autorização da AIF. Esse é um grande seguro contra a introdução de pessoas como (Roberto) Calvi e (Michele) Sindona (Nota Editorial: dois banqueiros italianos, cujo envolvimento com o banco do Vaticano levou a grandes problemas financeiros e escândalo).

Então, é muito improvável que o caso do Monsenhor Scarano aconteça de novo? (Nota Editorial: Mons. Nunzio Scarano, ex-empregado e contador da APSA, foi acusado pelas autoridades italianas de lavagem de dinheiro e conspiração de contrabando de dinheiro para a Itália.)
George Pell: Quem sabe? Em qualquer caso, eu estou falando sobre os níveis superiores em termos de formulação de políticas. A AIF está lá para controlar e garantir que não haja reciclagem. E com um auditor geral a ambição é que nunca mais aconteça um caso Scarano.

Qual será o papel do auditor geral? Ele vai ser como um solucionador de problemas? Como o senhor o descreveria?
George Pell: Nós estamos avaliando uma série de modelos de diferentes países, e entendo que ele é visto de forma ligeiramente diferente em lugares diferentes. O auditor geral visitará ou vai se aproximar dos diferentes dicastérios inesperadamente e auditar o seu trabalho de forma totalmente independente dos auditores normais. Se eu ou o Conselho da Economia ou um membro do pessoal sentir que algo está seriamente errado em um dicastério, então podemos ir ao auditor geral, e se ele descobrir que há um caso prima-facie, então, ele irá investigar e, se necessário, denunciar às autoridades judiciais.

O auditor geral estará vinculado ao senhor?
George Pell: Não! O auditor geral será uma figura independente e não estará vinculado ao Secretário de Estado ou a mim, mas vai ter a capacidade de ir diretamente para o Santo Padre.

O senhor nomeou uma comissão para estudar o Fundo de Pensões. Por quê?
George Pell: O Conselho reconheceu que as pensões em pagamento hoje e aquelas da próxima geração estão garantidas, mas é preciso garantir que haja fundos suficientes para as gerações futuras em um ambiente econômico em mudança. E isso terá consequências financeiras.
Lord Christopher Patten

O senhor trouxe Lord Christopher Patten para dirigir uma comissão para propor reformas para a mídia do Vaticano. Mas o senhor originalmente tinha recebido um relatório de consultoria da COSEA sobre esse assunto. Por que o relatório não foi suficiente?
George Pell: Bem, suponho eu, porque foi patrocinado e envolveu a COSEA. Eu não tenho certeza de quanta informação inicial havia do Vaticano e dos diferentes organismos nesse relatório, e, além disso, qualquer relatório que vai adiante tem de gerar um nível de apoio. Uma coisa é ter um relatório de um grupo de negócios, mas uma coisa bem diferente é ter um conjunto de propostas de altos empregados do Vaticano e um organismo internacional de especialistas que tem peso real. É muito mais difícil ignorar propostas de tal corpo.

A Comissão, liderada por Lord Patten, foi convidada a desenvolver um plano de reforma para os meios de comunicação do Vaticano dentro de 12 meses, tendo em conta o relatório da COSEA. Seu objetivo é adaptar os meios de comunicação da Santa Sé às mudanças nas tendências de consumo de mídia, melhorar a coordenação e obter, de forma progressiva e com sensibilidade, substanciais economias financeiras.
George Pell: Sim. O objetivo é manter e melhorar a cobertura, coordenar melhor a mídia do Vaticano, assegurar que sejam colocados recursos suficientes nas novas mídias digitais e também de forma gradual, com sensibilidade, economizar dinheiro e reduzir despesas. No momento, na minha humilde opinião, uma quantidade desproporcional de dinheiro está indo para formas de mídia que estão sendo usadas ​​por um número decrescente de pessoas.

Onde o senhor espera estar em dois ou três anos?
George Pell: Bem, espero que em dois ou três anos tenhamos a nossa organização básica no lugar na área financeira, com certeza, e espero que na área da comunicação também. Espero que até lá estejamos gerando não apenas eficiência e coordenação, mas também transparência e seguindo as melhores práticas de normas internacionais em nossa administração.

Muitas pessoas me disseram: é ótimo que tenhamos essa reforma, mas sem identificar os erros do passado, e que pode ser uma operação dolorosa. Como podemos ter confiança de que esses erros não vão se repetir?
George Pell: Bem, dois "erros" muito graves são indicados no relatório do IOR: os investimentos do Lux Vide e do Optimum ad majorem (200 milhões de euros). Eles estão lá no relatório. A outra coisa a ser dita é que a AIF está investigando cerca de 200 infrações. Isso deve proporcionar uma segurança significativa de que nós estamos levando o trabalho a sério.

Quão de perto o Papa Francisco está rastreando tudo isso?
George Pell: Ele está muito interessado nessas reformas. Ele está comprometido com as melhores práticas. Ele explicitamente aprovou o pacote de reformas e quer que eu as implemente. Sei que temos o seu apoio total. Eu o vejo uma vez a cada 15 dias. Eu posso abordá-lo a qualquer hora que eu precisar. Eu acho que ele tem uma boa compreensão de economia e acho que a sua atividade com os bancos em Buenos Aires mostra que ele sabe qual caminho é o melhor.

Traduzido do inglês por Claudia Sbardelotto.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos – Notícias – Segunda-feira, 14 de julho de 2014 – Internet: clique aqui.

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