Bê-á-Bíblia - Religião na Escola e Sociedade
José de Souza Martins*
A
leitura obrigatória de versículos em escolas de município paulista mostra uso
ilegal do poder visando a sobrepor a fé da minoria à dos demais
A
Câmara Municipal de Nova Odessa (SP) aprovou projeto de lei, de vereador
evangélico, que obriga os alunos das escolas municipais a lerem pelo menos um
versículo da Bíblia no início da aula, todos os dias. A lei foi vetada pelo
prefeito, mas o veto pode cair. A proposta abusiva expressa a crescente intolerância
religiosa no País e as armadilhas usadas para fazer as instituições públicas e
do Estado cúmplices do proselitismo religioso. A lei é inconstitucional. Viola
a liberdade de consciência e o direito dos pais educarem os filhos na própria
crença.
Na
passagem do regime de religião compulsória para o de livre opção religiosa, em
1889, ocorreram ataques ao que fora a religião oficial do Império, quando ficou
claro que as religiões se equivaliam e nenhuma delas tinha privilégios em
relação às outras. O caso de Nova Odessa remete ao debate que se travou nos
jornais e nos tribunais sobre a chamada questão do Cristo no júri. Mas inverte
o cenário: os beneficiados pela liberdade religiosa da República querem agora
cercear a liberdade religiosa dos demais, impondo a sua.
Um
decreto de 1890 proibia às autoridades “instituírem alguma religião ou
vedarem-na”. Dele se valeu Miguel Vieira Ferreira, positivista, pastor da
Igreja Evangélica Fluminense, oriundo da Igreja Presbiteriana. Jurado em sessão
do tribunal do júri, em 1891, requereu ao juiz que o crucifixo fosse removido
da sala. A lei o obrigava a servir como jurado e ele o fazia como cidadão. Mas
não o obrigava a fazê-lo sob o império de um símbolo religioso.
Em face
dos conflitos que se disseminavam, Rodrigo Octávio de Langaard Menezes,
procurador da República, em 1892, emitiu luminoso parecer sobre a questão, que
se tornaria um marco no debate e nas decisões sobre o assunto. Nele, alude ao
despedaçamento de imagens de Cristo na sala do júri do Rio de Janeiro, ao
apedrejamento de templos protestantes e à violência contra uma procissão
católica. Invocando valores da Revolução Francesa, que inspiraram as leis da
República, sentenciou: “A permanência de um símbolo religioso em um lugar
público onde são chamados os cidadãos a cumprir um dever cívico ofende o
preceito constitucional de liberdade de consciência”.
Rui
Barbosa, em 1903, interpreta a questão da religião na Constituição republicana,
que ajudara a escrever, e atenua a interpretação de Rodrigo Octávio. Diz que a
inspiração da Carta fora a mesma da americana, na qual os fundadores da nação
viram a religião como anterior à fundação do Estado e inspiradora das leis. É
provavelmente essa interpretação que influenciará uma decisão da ditadura no
Estado Novo no sentido de reconhecer a religião católica como a da maioria da
nação. Isso abrandava a separação entre o Estado e a Igreja e abria caminho
para transgressões várias, numa recíproca cumplicidade.
Os
protestantes já haviam adotado uma estratégia de calmo confinamento nos
templos. Nem quando Café Filho, presbiteriano, tornou-se presidente da
República, em 1954, fizeram alarde ou se valeram do poder para impor ao País
seus próprios valores. Desde a proclamação da República, em face da liberdade
religiosa do novo regime, a maioria deles preferira limitar-se a explorar
brechas na organização do Estado para viabilizar a difusão de seus valores
sociais e não propriamente de suas concepções religiosas. Impunham-se pelo
republicanismo de sua tradição e nesse sentido tentavam enquadrar os católicos
e os confessantes de outros credos no mesmo princípio cívico. Uma das
consequências da celeuma inicial da República fora, justamente, um agressivo
reavivamento do catolicismo. Sobretudo nos anos 1910, com o movimento generalizado
de cerimônias de reintrodução do Cristo nas salas do júri e nas escolas
públicas. A campanha protestante contra o Cristo no júri fortalecera o
catolicismo.
José de Souza Martins - sociólogo |
Com a
multiplicação das igrejas pentecostais nas décadas recentes ressurgiu a
hostilidade contra religiões e crenças que delas diferem, especialmente contra
o catolicismo, no âmbito de uma “guerra santa” que tem tido expressões em
episódios como o do “chute na santa”, em 1995. Foi quando um pastor da Igreja
Universal chutou na TV uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Ou o
despedaçamento da imagem original e sagrada da santinha negra em 1978 por um
jovem pentecostal, depois de ouvir um sermão preconceituoso de seu pastor.
Têm
sido frequentes as manifestações dessa ordem no Brasil, incidindo de preferência
em imagens de Nossa Senhora Aparecida. Mesmo na visita do papa Francisco, no
Rio de Janeiro um homem quebrou uma imagem da santa e pisoteou-a em público.
Proclamada Padroeira do Brasil, a incidência de agressões sobre esse símbolo
religioso, que é também um símbolo político da nacionalidade, parece indicar
que o que está em jogo não é a religião, mas o poder. O episódio de Nova Odessa
indica isso e muito mais: é uma clara mostra de ilegal tentativa de uso do
poder para sobrepor a fé da minoria à dos demais.
* José de Souza Martins é
sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre
outros, de A Sociabilidade do Homem
Simples ( Ed. Contexto).
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