«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

QUE MUNDO É ESTE NO QUAL VIVEMOS?

Viver na sociedade da satisfação instantânea

Zygmunt Bauman
(1925 – 2017)
Sociólogo, filósofo e escritor polonês de renome internacional

Este é um trecho de um artigo que Bauman escreveu para
Concilium: Revista Internacional de Teologia (n. 4 de 1999)
É uma análise muito atual e lúcida, às vezes até cruel, da precariedade
estrutural do nosso mundo.
Palavras sobre as quais refletir para uma melhor compreensão do
sentimento de “crise” e instabilidade que permeia nossas vidas.
ZYGMUNT BAUMAN

Os antigos já sabiam a verdade. Em seu diálogo sobre a Vita beata, Lucio Aneu Sêneca [4 a.C. – 65 d.C.: filósofo, dramaturgo, escritor e político romano] destacou que, em modo totalmente oposto aos prazeres da virtude, as delícias do êxtase esfriam justamente no momento no qual estão mais fervendo; a sua capacidade é de tal modo pequena que se esgotam instantaneamente até a exaustão. Contentados somente por um momento fugaz, aqueles que vão em busca do prazer sensual caem rapidamente em languidez e apatia. Em outros termos, a sua felicidade tem vida breve e os seus sonhos são autodestrutivos. Admoestava Sêneca: a satisfação que vem mais rapidamente é também aquela que morre primeiro.

O antigo sábio tinha também adivinhado que tipo de pessoa tende a escolher uma vida dedicada à busca dos prazeres que levam, instantaneamente, à satisfação. Em um outro diálogo, dedicado à Brevidade da vida, ele observa que este tipo de vida é o destino de pessoas que se esquecem do passado, não cuidam do presente e têm medo do futuro.

As observações verdadeiras sobre a dificuldade da situação humana permanecem como tais pelo tempo. A sua verdade não é afetada pelas provações da história. As intuições de Sêneca pertencem, sem dúvida, a esta categoria. A fragilidade endêmica da satisfação instantânea e a estreita ligação entre a obsessão do prazer imediato, a indiferença em relação àquilo que foi e a desconfiança naquilo que deve vir tendem a encontrar confirmação hoje assim como encontraram há dois milênios atrás. Aquilo que mudou é o número daqueles que experimentam, pessoalmente, a miséria do viver em um tempo achatado e segmentado. Isso que para Sêneca parecia somente o sinal de um desvio deplorável do correto caminho – o sinal de um caminho perdido e uma vida desperdiçada – tornou-se a norma. Aquela que era, de costume, uma escolha de poucos, tornou-se agora o destino de muitos. Para compreender porque isso aconteceu, não será ruim seguir os suspeitos de Sêneca.
 
Um dos principais livros do sociólogo
Zygmunt Bauman
Um ensaio de Pierre Bourdieu [1930-2002: sociólogo francês de origem campesina], um dos mais sensíveis analistas sociais dos nossos tempos, intitula-se: A precariedade está hoje em toda parte. O título diz tudo: precariedade, instabilidade, vulnerabilidade são um caráter muito difuso (além de o mais dolorosamente sentido) das condições de vida contemporâneas. O teórico francês fala de précarité (precariedade), os alemães de Unsicherheit e Risikogesellschaft (insegurança e sociedade do risco), os italianos de incertezza (incerteza) e os ingleses de insecurity (insegurança). Mas todos tem em mente o mesmo aspecto da dificuldade humana, experimentada em toda parte altamente desenvolvida, modernizada e próspera do globo, onde é percebida como particularmente enervante e deprimente devido à sua novidade e ao fato de que em muitas maneiras sem precedentes: o fenômeno que eles tentam agarrar é a experiência combinada da insegurança da posição, dos direitos e dos meios de sustento, da incerteza quanto à sua continuidade e estabilidade futura e da insegurança do próprio corpo, do próprio “eu” e dos relativos prolongamentos: posses, vizinhança, comunidade. A tendência a esquecer o passado, a despreocupar-se do presente e a temer o futuro era depreciada por Sêneca como a falência pessoal de alguns de seus contemporâneos; hoje, ao contrário, podemos afirmar que, na experiência de nossos similares, o passado não conta muito a partir do momento que não oferece bases seguras para as prospectivas da vida, o presente não recebe a devida atenção porque é praticamente fora de controle, e existem boas razões para temer que o futuro tenha reservado ulteriores e desagradáveis surpresas, provações e tribulações. Hoje em dia, a precariedade/insegurança não é objeto de escolha; é destino.

Ter fé significa ter confiança no significado da vida e esperar que aquilo que se faz ou se abstém de fazer tenha uma importância de longa duração. A fé vem fácil quando a experiência de vida confirma que esta confiança é procedente. Somente em um mundo relativamente estável, no qual as coisas e os atos mantêm o seu valor por um longo período de tempo, um período comparável à duração da vida humana, é provável que se dê tal confirmação. Em um mundo lógico e coerente mesmo as ações humanas adquirem lógica e coerência. Como disse o eminente filósofo moral Hans Jonas (1903-1993: filósofo alemão], vivendo em um mundo como tal nós contamos os dias e os dias contam. Os nossos tempos são tempos duros para a fé – para qualquer tipo de fé, sagrada ou profana. Os nossos tempos são tempos desfavoráveis à confiança e, mais em geral, a propósitos e esforços de amplo alcance, devido à evidente transitoriedade e vulnerabilidade de tudo (ou quase tudo) aquilo que conta na vida terrena.

Comecemos pela condição preliminar de todo o restante: os meios de subsistência. Estes tornaram-se extremamente frágeis. Os economistas alemães escrevem sobre uma “sociedade dos dois terços”, esperando-se que esta torne-se logo de “um terço”, entendendo com isso que tudo aquilo que serve para satisfazer a demanda do mercado pode ser agora produzido por dois terços da população, e um terço será logo suficiente – deixando o restante dos homens e mulheres sem ocupação, tornando-os economicamente inúteis e socialmente redundantes. Por quanto possam parecer corajosas as caras dos políticos e audaciosas as suas promessas, o desemprego nos países ricos tornou-se “estrutural”: não existe, simplesmente, trabalho suficiente para todos.

Não é necessário grande imaginação para delinear o quanto tenha se tornado frágil e incerta a vida das pessoas que sofrem diretamente essas consequências. O ponto importante é, todavia, que todos os outros também as sofrem, ainda que pelo momento em modo somente indireto. No mundo do desemprego estrutural, ninguém pode sentir-se seguro. Não existe mais nada de similar a um emprego seguro em uma empresa segura; e não são as múltiplas habilidades e experiências que, uma vez adquiridas, garantem a oferta de um emprego e que o emprego, uma vez oferecido, seja duradouro. Ninguém pode, racionalmente, supor estar assegurado contra a próxima rodada de “reestruturação/redimensionamento”, “enxugamento” ou “racionalização”, contra os mutações erráticas da demanda de mercado e as pressões caprichosas e, no entanto, potentes da “competitividade” e da “eficiência”. “Flexibilidade” é o slogan do dia. Ele prediz ocupações que não incorporam qualquer certeza de direitos: contratos por tempo determinado ou renováveis, demissão sem aviso-prévio e nenhuma indenização.
Uma obra clássica do pensamento de
Zygmunt Bauman

Ninguém pode sentir-se verdadeiramente insubstituível; mesmo a posição mais privilegiada pode revelar-se somente temporânea e “até nova ordem”. E se os seres humanos não contam, não contam nem mesmo os dias de suas vidas. Faltando uma segurança a longo prazo, a “satisfação instantânea” aparece, com os seus afagos, como uma estratégia razoável. Qualquer coisa que a vida possa oferecer, oferece-a hic et nunc – imediatamente. Quem sabe aquilo que o amanhã poderá trazer? O adiamento da satisfação perdeu o seu fascínio: afinal de contas, é por demais incerto se o trabalho e os esforços investidos hoje representarão ainda um ativo no momento de alcançar a recompensa; é longe de ser certo, além do mais, que os prêmios que hoje parecem atraentes serão ainda desejáveis quando finalmente chegarão. Os ativos tendem a se tornar passivos, os prêmios reluzentes se transformam em símbolos de vergonha, as modas vão e vêm em uma velocidade espantosa, todo objeto de desejo torna-se obsoleto e desagradável antes de ser plenamente desfrutado.

Se as coisas estão assim, para evitar frustrações convirá abster-se de desenvolver hábitos e afetos ou assumir compromissos duradouros. Os objetos do desejo são desfrutados melhor no lugar, para depois liberar-se deles; os mercados são construídos desse modo – seja a satisfação como a obsolescência são instantâneas. Deste modo, os homens e as mulheres são adestrados (ou melhor, constrangidos a aprender por própria conta) a perceber o mundo como uma caixa cheia de objetos a serem jogados fora após o uso, objetos a serem usados uma só vez. Todo o mundo – inclusive os outros seres humanos. Todo artigo é substituível, e por acaso: o que aconteceria se aparecesse no horizonte um gramado mais verde, alegrias maiores – ainda não experimentadas – nos acenassem de longe? Em um mundo no qual o futuro é repleto de perigos, toda ocasião que não seja desfrutada aqui e agora é uma oportunidade perdida; não desfrutá-la é, por isso, imperdoável e injustificado. Uma vez que os compromissos do dia presente são um obstáculo para as oportunidades do dia seguinte, o prejuízo será tanto menor quanto mais tais compromissos sejam leves e superficiais. “Agora” é a palavra-chave de qualquer estratégia de vida, a qualquer coisa possa se referir. Em um mundo incerto e imprevisível, os viajantes hábeis, inteligentes e sábios movem-se com facilidade, sem derramar uma só lágrima por aquilo que poderia dificultar seus movimentos.

Desse modo, a política de “precarização” conduzida pelos operadores dos mercados de trabalho é auxiliada e apoiada por políticas de vida. Umas e outras conspiram para produzir o mesmo resultado: o enfraquecimento e desvanecimento, a ruptura e a decomposição dos vínculos humanos, das comunidades e das sociedades. Compromissos do tipo “até que a morte não nos separe” tornam-se contratos “até que dure a satisfação”, temporários pela sua própria definição e projeto – e suscetíveis de ser rompidos unilateralmente, em qualquer momento que um dos sócios fareje um maior valor no fato de sair da relação antes que continuá-la.
Um dos livros que mais repercutiram de
Zygmunt Bauman

Os vínculos e as relações são vistos, em outros termos, como coisas a consumir, não a produzir: estão sujeitos aos mesmos critérios de valorização aos quais é submetido outro objeto de consumo. No mercado de bens de consumo, os produtos ostensivamente duráveis são oferecidos, normalmente, por um “período de prova”, com a promessa da restituição do dinheiro se o adquirente não estiver plenamente satisfeito. Se os parceiros em uma relação são vistos nestes termos, a tarefa de ambos não é mais aquela de “fazer dar certo a relação” – de agir em modo que vá adiante em qualquer circunstância, de ajudar-se mutuamente nos momentos bons e naqueles maus, de reduzir, se necessário, as próprias preferências, de fazer acordos e sacrifícios para o bem da união duradoura. Trata-se, ao contrário, de obter satisfação de um produto pronto para o uso; se o prazer extraído não é à altura do nível prometido e esperado, ou se com a novidade se esgote a alegria, não há razão para permanecer ligado ao produto inferior ou envelhecido ao invés de encontrar um outro “novo e melhorado” no mercado.

Aquilo que resulta disso é que a pressuposta temporalidade das relações tende a transformar-se em uma profecia que se autorrealiza. Se o vínculo humano, como qualquer outro objeto de consumo, não é algo a se elaborar através de esforços prolongados e sacrifícios ocasionais, mas alguma coisa da qual se espera uma satisfação imediata, algo que se rejeita em caso contrário e que se conserva e se utiliza somente até que continue a gratificar (e não mais por longo tempo), então não há mais sentido realizar esforços sempre mais duros, e tanto menos suportar dificuldades e desconfortos a fim de salvar a relação. Um mundo saturado de incertezas e vidas segmentadas em episódios de breve duração (dos quais se requer trazer uma satisfação instantânea) mantêm entre eles uma relação de cumplicidade, sustentam-se e reforçam-se um ao outro.

Uma parte crucial de toda fé é o investimento de valor em algo de mais durável que a vida individual, evanescente e endemicamente mortal; algo de duradouro, que resista ao impacto e à erosão do tempo, talvez até mesmo algo imortal e eterno. A morte individual é inevitável, mas a vida pode ser utilizada para negociar e ganhar um lugar na eternidade; pode ser vivida de modo tal que a mortalidade individual seja transcendida – que a marca deixada pela vida não seja totalmente cancelada. A fé pode ser algo espiritual, mas para resistir tem necessidade de uma ancoragem mundana; as suas raízes devem fincar-se profundamente na experiência da vida cotidiana.

Se a dedicação a valores duradouros está hoje em crise, é porque a ideia de duração, de imortalidade, está ela também em crise. Mas a imortalidade está em crise porque a confiança cotidiana, de fundo, no caráter duradouro das coisas para as quais e com as quais a vida humana pode orientar-se é minada pela experiência humana de todo dia. Tal erosão de confiança é perpetrada, por sua vez, pela endêmica precariedade, fragilidade, insegurança e incerteza do lugar humano na sociedade humana.

A promoção da competitividade e da busca “aberta a todos” do ganho máximo, a supremo critério (ou mais ainda monopolizador) da distinção entre ação correta e ação incorreta, entre ação justa e ação errada, é o fator que traz a responsabilidade última da “atmosfera de medo” que permeia a vida contemporânea da maior parte dos homens e das mulheres, e seu sentimento generalizado, talvez universal, da insegurança. A sociedade não garante mais nem promete remédios coletivos às desgraças individuais. Aos indivíduos foi oferecida uma liberdade de proporções inéditas (ou melhor, os indivíduos foram jogados dentro dela), mas ao preço de uma insegurança analogamente inédita. E quando há insegurança, sobra pouco tempo para preocupar-se com valores que se elevam acima das preocupações cotidianas, bem como com qualquer coisa que dure mais do que o momento fugaz.

Se nada for feito para remediar o espectro da insegurança, a restauração da fé em valores permanentes e duradouros terá muito pouca chance de sucesso.

Traduzido do italiano por Telmo José Amaral de Figueiredo.

Fonte: Teologi@Internet – Forum teologico diretto da Rosino Gibellini – Editrice Queriniana, Brescia (Itália) – Quarta-feira, 11 de janeiro de 2017 – Internet: clique aqui.

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