A atualidade chocante de "Admirável Mundo Novo"
Ignacio
Ramonet
Outras
Palavras
24-07-2015
Oito décadas depois, romance de Aldous Huxley ganha
nova atualidade,
ao alertar que sociedades de controle podem apoiar-se,
além da repressão, na tecnologia e culto do “progresso”
Breve,
terão se completado 75 anos da primeira edição brasileira (1941) de Admirável
Mundo Novo [1], grande romance
perturbador lançado em 1932, na Inglaterra, pelo visionário filósofo e escritor
Aldous Huxley.
Diante
de tanta “felicidade artificial” em nossos dias, tantas manipulações e tantos
condicionamentos contemporâneos, cabe perguntar: seria útil reler Admirável Mundo
Novo? Acaso é necessário retomar um livro escrito há mais de oito
décadas, numa época tão distante que a Internet não existia e sequer a TV havia
sido inventada? Seria este romance algo mais que uma curiosidade sociológica,
um best-seller ordinário e efêmero, de que se venderam, em inglês, mais de um
milhão de exemplares, já no ano de sua publicação?
Estas
questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero a que pertence a obra –
ficção científica, distopia [2], fábula de
antecipação, a utopia científico-técnica – possui um grau muito elevado de
obsolescência. Nada envelhece mais rápido que o futuro, sobretudo na
literatura.
No
entanto quem, superando estas reticências, mergulhar nas páginas do romance
ficará chocado por sua surpreendente atualidade. Ficará claro que, pelo menos
uma vez, o passado capturou o presente. Recordemos que o autor, Aldous Huxley (1894-1963), narra uma
história que transcorre num futuro muito distante, próxima ao ano 2500 ou, mais
precisamente “no ano 600 da Era Fordiana”, em alusão satírica a Henry Ford (1863-1947), pioneiro
norte-americano da indústria automobilística e inventor de um método de
organização de trabalho para a fabricação em série e padronização de peças. Tal
método, conhecido como “fordismo”, transformou os trabalhadores em algo
inferior a autômatos, robôs que repetiam, ao longo da jornada de trabalho, um
único gesto.
Sua
emergência suscitou, à época, críticas violentas: pensemos, por exemplo, nos
filmes Metropolis (1926), de Fritz
Lang, ou Tempos Modernos (1935), de
Charles Chaplin.
Aldous
Huxley escreveu Admirável Mundo Novo,
visão pessimista do futuro e crítica
feroz do culto positivista à ciência, num momento em que as consequências
sociais da grande crise de 1929 afetavam em cheio as sociedades ocidentais,
e em que a crença no progresso e nos regimes democráticos parecia vacilar.
Publicado
em inglês antes da chegada de Hitler ao poder na Alemanha (1933), Admirável Mundo Novo denuncia a perspectiva “de pesadelo” de uma
sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico e convencida de poder
oferecer a seus cidadãos uma felicidade obrigatória. Apresenta a visão
alucinada de uma humanidade desumanizada pelo condicionamento pavloviano [3] e pelo prazer ao alcance de uma pílula (o “soma”).
Num mundo horrivelmente perfeito, a sociedade decide totalmente, com fins
eugenistas [selecionar somente os melhores, saudáveis e “perfeitos”] e
produtivistas, a sexualidade da procriação.
É
uma situação não tão distante da que se vive hoje em alguns países (sobretudo
na Europa), em que os efeitos da crise de 2008 estão provocando a ascensão de
partidos de extrema direita, xenófobos e racistas. Onde os anticoncepcionais já
permitem um amplo controle da natalidade. E onde novas pílulas (como o Viagra e a feminina Lybrido) dopam o desejo sexual e o prolongam até além da terceira
idade. Ao mesmo tempo, as manipulações genéticas permitem cada vez mais aos
pais a seleção de embriões, para engendrar filhos em função de critérios
pré-determinados – inclusive estéticos.
Outra
relação surpreendente com a atualidade é que o romance de Huxley apresenta um
mundo onde o controle social não dá
espaços ao acaso, onde, formadas a partir do mesmo molde, as pessoas são “clônicas”, produzidas em
série. A maioria tem garantidos o conforto e a satisfação dos únicos
desejos que está condicionada a experimentar, mas perdeu-se, como diria
Mercedes Sosa, a razón de vivir [4].
Em Admirável Mundo Novo, a americanização
do planeta está completa, a História acabou (como afirmaria, mais tarde, Francis Fukuyama [5]), tudo foi padronizado e “fordizado” – tanto a
produção dos seres humanos, resultado de puras manipulações genético-químicas,
quanto a identidade das pessoas, produzida durante o sonho por hipnose
auditiva: a “hipnopedia”, qualificada
por um personagem do livro como “a maior força socializante e moralizante de
todos os tempos”.
Os seres humanos são
“produzidos” no sentido industrial do termo, em fábricas especializadas – os “centros de incubação
e condicionamento” – segundo modelos variados, que dependem das tarefas muito
especializadas que serão atribuídas a cada um, e que são indispensáveis para
uma sociedade obcecada pela estabilidade.
Desde
seu nascimento, cada ser humano é, além disso, educado em “centros de
condicionamento do Estado”. Em função dos valores específicos de seu grupo, e
por meio do recurso maciço à hipnopedia, criam-se nele os “reflexos
condicionados definitivos” que o fazem aceitar seu destino.
Aldous Huxley ilustrava assim os riscos
implícitos na tese que vinha sendo formulada, desde 1924, por John B. Watson, o pai do “condutivismo”
[6], esta suposta “ciência da observação e controle do comportamento”. Watson
afirmava com frieza que podia escolher na rua, ao acaso, uma criança saudável e
convertê-la, à sua vontade, em médico, advogado, artista, mendigo ou ladrão,
independentemente de seu talento, inclinações, capacidades, gostos e origem de
seus ancestrais.
Em Admirável Mundo Novo, que é
fundamentalmente um manifesto humanista, alguns viram também, com razão, uma crítica ácida à sociedade stalinista, à utopia soviética construída com mão de
ferro. Mas também há, claramente, uma sátira
à nova sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se criava à época
nos Estados Unidos, em nome da modernidade técnica.
Extremamente
inteligente e admirador da ciência, Huxley expressa no romance, no entanto, um profundo ceticismo em relação à ideia de
progresso, e desconfiança diante da razão. Frente à invasão do
materialismo, o autor engendra uma interpretação feroz às ameaças do
cientificismo, do maquinismo e do desprezo à dignidade individual. Claro que a
técnica assegurará aos seres humanos um conforto exterior total, de notável
perfeição, estima Huxley com desesperada lucidez. Todo desejo, na medida em que
possa ser expresso e sentido, será satisfeito. Os seres humanos terão, nesse
ponto, perdido sua razão de ser. Terão transformado a si mesmos em máquinas. Já
não se poderá falar, em sentido estrito, de “condição humana”.
Mas o “condicionamento” não
cessou de se intensificar desde a época em que Huxley publicou o livro e anunciou que, no
futuro, seríamos manipulados sem que nos déssemos contas. Em particular, pela publicidade. Por meio do recurso a
mecanismos psicológicos e graças a técnicas muito experimentadas, os mad men da publicidade conseguem que
compremos um produto, um serviço ou uma ideia. Este modo, convertemo-nos em pessoas previsíveis, quase teledirigidas.
E felizes.
Confirmando
as teses de Huxley, Vance Packard
publicou The Hidden Persuaders (na
edição brasileira já esgotada, Nova
Técnica de Convencer), em meados da década de 1950 e Ernest Dichter e Louis
Cheskin denunciaram que as agências
de publicidade tentavam manipular o inconsciente dos consumidores.
Sobretudo mediante o uso de “publicidade
subliminar”, nos meios de comunicação de massas. Em 30 de outubro de 1962,
executou-se um teste que demonstrava a eficácia da publicidade subliminar:
durante a exibição de um filme, lançavam-se mensagens “invisíveis” sobre certos
produtos, em intervalos regulares. As vendas de tais produtos aumentaram.
Atualmente,
a “publicidade subliminar” avançou e existem técnicas mais sofisticadas e mais
perversas para manipular a mente do ser humano [7].
Por exemplo, mediante as cores que
modificam nossas percepções e influenciam nossas decisões. Os especialistas
em marketing sabem disso e utilizam as técnicas para orientar nossas compras.
Num
conhecido experimento de finais dos anos 1960, Louis Cheskin, diretor do Instituto
de Pesquisa da Cor, pediu a um grupo de donas de casa que experimentasse
três caixas de detergentes e decidisse qual delas dava melhor resultado com
roupas delicadas. Apesar de as três conterem o mesmo produto, as reações foram
distintas. O detergente da caixa amarela foi considerado “forte demais”, o da
cor azul foi visto como não tendo “força para limpar”. Ganhou a caixa bicolor.
Em
outro teste, duas amostras de cremes de beleza foram dadas a um grupo de
mulheres: uma num recipiente rosa; outra, num de cor azul. Quase 80% das
mulheres declararam que o creme de frasco rosa era mais fino e efetivo que o de
frasco azul. Ninguém sabia que a composição dos cremes era idêntica. “Não é
exagero dizer que as pessoas não apenas compram o produto per se, mas também pelas cores que o acompanham. A cor penetra na psiqué [mente] do consumidor
e pode converter-se em estímulo direto para a venda”, escreve Luc Dupont em seu livro 1001 truques publicitários [8].
Nos
anos 1950, quando a empresa produtora do sabonete Lux começou a vender seu produto nas cores rosa, verde e turquesa,
substituindo o tablete habitual de cor branca, converteu-se na líder de
mercado. As novas cores sugeriam delicadeza e cuidado, intimidade e carinho e
os consumidores mostraram-se entusiasmados. Mais recentemente, na Europa, o Mc Donald’s deixou sua mítica cor
vermelha (uma tonalidade apreciada pelas crianças e que costuma estimular a
fome), a favor do verde, numa tentativa de aproximar sua marca da comida
saudável e de um estilo de vida sustentável [9].
A
leitura de Admirável Mundo Novo
alerta contra todas estas agressões [10]. Sem
esquecer as manipulações midiáticas [11]. Este
romance também pode ser visto como uma
sátira muito pertinente da nova sociedade delirante que está sendo construída
hoje, em nome da “modernidade” ultraliberal. Pessimista e sombrio, o futuro
visto por Aldous Huxley serve de advertência e anima, na época das manipulações
genéticas e da clonagem, a vigiar de
perto os progressos científicos atuais e seus potenciais efeitos destrutivos.
Admirável Mundo Novo ajuda a compreender melhor
o alcance e os riscos e perigos que surgem quando, de novo e por todos os
lados, “progressos científicos e técnicos” nos chocam com riscos ecológicos [12] que põem em perigo o futuro do planeta. E da
espécie humana.
NOTAS:
[ 1 ] -
No texto original, Ramonet faz alusão aos 80 anos da primeira edição em língua
espanhola, publicada em 1935 pelo editor catalão Luís Miracle. No Brasil, a
Editora Globo foi pioneira em lançar Admirável Mundo Novo, em 1941, com
tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano. Esta edição ainda encontra-se em
catálogo, agora pelo selo Biblioteca
Azul (da Editora Globo), com 312 páginas, ao custo de R$ 39,90. A obra
também está disponível, gratuitamente, na Internet.
[ 2 ] –
Distopia é “qualquer representação
ou descrição de uma organização social futura caracterizada por condições de
vida insuportáveis, com o objetivo de criticar tendências da sociedade atual,
ou parodiar utopias, alertando para os seus perigos; antiutopia” (Fonte:
Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 3.0).
[ 3 ] -
Referência a Ivan Pavlov, médico
russo, Prêmio Nobel de Medicina em 1904 por seus trabalhos experimentais sobre
os “reflexos condicionados”, o mais célebre dos quais é o do “cão de Pavlov”.
[ 4 ] –
Assista ao vídeo, clicando aqui.
[ 5 ] -
Em uma obra extremamente huxleyana, O fim da História e o último homem (edição
brasileira: Editora Rocco, 1992).
[ 6 ] –
Para saber mais sobre esta teoria, clique aqui.
[ 7 ] -
Ler, de Ignacio Ramonet, Propagandas silenciosas, La Habana, 2002
(ed. bras.: Propagandas silenciosas.
Editora Vozes, 2002); e, de Noam Chomsky
e Ignacio Ramonet, Cómo nos venden la
moto, Icaria, Barcelona, 1995.
[ 8 ] -
Luc Dupont,1001 trucos publicitarios,
Lectorum, México, 2004
[ 9 ] -
Ler La Vanguardia, Barcelona, 13 de
enero de 2012.
[ 10 ] -
Ler também, por exemplo, de Mertxe
Pasamontes, “Una docena de modos en
que nos manipulan para que estemos insatisfechos”. Clique aqui.
[ 11 ] -
Ler também, de Noam Chomsky, Diez estrategias de manipulación a través de
los medios. Baixe o texto, clicando aqui.
[ 12 ] -
Ler Laudato sí, a Encíclica “verde”
do Papa Francisco, Vaticano,
16/6/2015. Para baixá-la e lê-la, clique aqui.
Traduzido por Antonio Martins.
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