Seriam dois pesos e duas medidas?
Dispensa ao sacerdócio e nulidade matrimonial:
por que a diferença de tratamento?
Questões
intersinodais.
Andrea Grillo
Settimana
Nº
24, 21-06-2015
As crises dos amigos padres e monges têm respostas
oficiais e definitivas em poucos meses; as dos amigos leigos chegam depois de
longos anos e nem sempre segundo a misericórdia: nessa diferença temporal,
esconde-se uma injustiça e uma indiferença pela qual – como escreveu Dom Vesco,
bispo de Oran – “nós, pastores, devemos pedir perdão”.
Na
conclusão de um artigo de Enzo Bianchi
no jornal La Stampa, publicado no dia
12 de outubro de 2014, pode-se ler esta importante consideração: «Reflita-se
(...) sobre um dado: por que padres, monges, religiosos que fizeram uma
promessa pública a Deus no coração da Igreja, embora tendo abandonado a vocação
recebida e contradito os votos pronunciados – votos que São Tomás de Aquino
dizia que a Igreja nunca pode desfazer – podem participar plenamente até na
vida sacramental da Igreja, enquanto aqueles que se encontram em outras
situações de infidelidade são dela excluídos? Essa parece ser uma injustiça de
uma disciplina feita por clérigos que vivem mais ou menos bem o seu celibato e
não conhecem a fadiga e as dificuldades do matrimônio...».
Nessa
breve passagem, está concentrada uma questão que atravessou a consciência
eclesial nesse período intersinodal: ou seja, a diferença na disciplina de «reconciliação» entre o desaparecimento de
um «voto» [no caso dos padres e religiosos] e a crise de um «vínculo» [no caso do matrimônio]. Tal
diferenciação, na história, pode ser compreendida de um modo muito articulado.
Por
um lado, decorre da diferença entre um «voto religioso» – que não é um
sacramento – e o matrimônio, que deve ser reconhecido como sacramento. Mas,
pode-se logo objetar, a ordenação é, por
sua vez, um sacramento, porém, mediante a «dispensa», continua sendo sempre
possível que aquele que foi padre – e
que padre, de algum modo, continua sendo – não só possa se casar, mas pertença
plenamente ao corpo eclesial, vivendo uma comunhão que também se faz mesa
eucarística.
Diferenças
Aqui,
provavelmente, devamos raciocinar sobre dois níveis da questão, que podem ser
considerados como «causas» da atual diferença de «disciplina»:
a) por um lado, pode-se chamar
em causa, com pleno direito, uma leitura «clerical» da realidade. A disciplina
é construída «à imagem e semelhança» dos clérigos que a conceberam: é o fruto
de uma Igreja marcada pela «autorreferencialidade» e que sabe ser extremamente
compreensiva aos «seus» e totalmente indiferente em relação aos «outros»;
b) por outro, deve-se
considerar um fundamento mais estrutural dessa diferença, ou seja, o fato de
que, enquanto nos votos religiosos ou na ordenação sacramental está em jogo,
simplesmente, uma relação entre o «indivíduo batizado» (que se torna monge,
freira ou padre) e a comunidade, no matrimônio, a relação é não só «entre dois
sujeitos», mas deve visar também a tutelar os «terceiros possíveis» (ou seja,
os filhos).
O
pedido que deve nascer do corpo eclesial, portanto, não pode ser formulado
simplesmente na forma da «superação do clericalismo» – que também é uma
exigência objetiva da Igreja contemporânea –, mas de um debate sério, não paternalista
e não ingênuo – com as «tutelas» necessárias para uma reconciliação não só dos
«clérigos em crise», mas também dos «leigos em crise». A tais crises, não se pode ser responder com as argumentações ou as
justificativas de 800 anos atrás.
Pode
acontecer, hoje, que justamente os «amigos padres» que viram a plena
reconciliação do seu «erro» se tornem os mais rígidos e frios defensores da «ordem
estabelecida», para a qual a Igreja deveria permanecer apenas como uma «pedagoga
social», negando a misericórdia, e não um «hospital de campanha» [expressão de
Papa Francisco], que cuida das feridas e as cura.
Por
outro lado, aos amigos leigos, devemos lembrar que não basta denunciar o «clericalismo
da instituição» – que certamente existe e condiciona muito –, mas também é
preciso indicar, com lucidez e com equilíbrio, por quais caminhos é possível «reconciliar
com a plenitude eclesial» aquelas vivências de crise nas quais não estão
envolvidos simplesmente «indivíduos», mas pequenas ou grandes comunidades,
papéis sociais, fontes de renda, relações educativas, locais de residência,
tempos de confiança, percursos de reabilitação, histórias de morte e de
renascimento.
Proximidade
Como
inúmeros observadores defendem, a Igreja precisa «integrar a história dos
casais e das famílias» na gestão da sua «crise». Isso, provavelmente, ajudará a
superar duas limitações da atual
disciplina: ou seja, tanto a «retrodatação» das questões, que muitas vezes
se torna pesada para todos e injusta para a res
[coisa] a ser protegida, quanto a distância abismal desse procedimento de «remédio»
em relação às exigências reais de «vida nova» que os sujeitos buscam, muitas
vezes às margens quando não contra a disciplina eclesial. Para não se tornar progressivamente marginal, a Igreja deve prestar
ouvidos à realidade, acima de tudo às suas margens e às suas periferias.
As
crises dos amigos padres e monges têm respostas oficiais e definitivas em
poucos meses; as dos amigos leigos chegam depois de longos anos e nem sempre
segundo a misericórdia: nessa diferença temporal, esconde-se uma injustiça e
uma indiferença pela qual – como escreveu Dom
Vesco, bispo de Oran – «nós, pastores, devemos pedir perdão».
Dando
novamente a palavra para Enzo Bianchi,
podemos nos perguntar: «O que espera, então, do Sínodo um católico maduro na
fé? Que se confesse, de novo e de novo, a indissolubilidade do matrimônio, mas
que se faça isso manifestando a misericórdia de Deus, indo ao encontro daqueles
que, nessa exigente aventura, incorreram em contradição à aliança e
convidando-os a caminharem na plenitude da vida eclesial. O Deus cristão tem um rosto em que a misericórdia é imanente à justiça:
é um Deus compassivo que, em Jesus, caminhou e caminha com quem está ferido,
com quem está doente... é um Deus que quer que todos se convertam e vivam».
Para manifestar essa «misericórdia»
e para sair de estilos clericais e autorreferenciais, deveremos levar a uma
maior proximidade as formas com que vamos ao encontro dos «amigos padres em
crise» em relação com aquelas com quem sanamos as crises dos «amigos leigos».
Para
fazer isso, de modo clarividente, deveremos admitir que a história que eles
viveram não pode ser reduzida simplesmente a um engano inicial nem a um erro
original.
Só
assim saberemos respeitar, ao mesmo tempo, a profunda dignidade da sua experiência
e a verdade inexaurível da Boa Nova.
Traduzido do italiano por Moisés Sbardelotto. Para acessar a
versão original deste artigo, clique aqui.
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