Quem está governando, de fato, o Brasil?
Ditadura do parlamentarizado
Eugênio Bucci
Jornalista e
Professor da Escola de Comunicação e Artes
– USP
É desse organismo que dependerá o que vai acontecer com
o Brasil
nos próximos meses
A
expressão “baixo clero”, de origem
evidentemente eclesiástica, tem servido
para a designação profana da maioria quase anônima da Câmara dos Deputados.
O “baixo clero” não tem “cardeais”, por definição, assim como não tem barões,
nem caciques, nem painhos (se quisermos metáforas menos canônicas e mais
miscigenadas). No baixo “clero” movem-se
figurantes qualificados, que têm direito a voto, mas, ainda assim, figurantes.
Quando acontece de um deles se projetar para o estrelato, o que se tem são
tipos como Severino Cavalcanti,
aquele que chegou a presidir a Casa e se tornou célebre por uma fotografia
umbilical. O leitor há de se lembrar, com certeza. O botão aberto no baixo da
camisa, rente à calça, punha-lhe o umbigo a nu. O “baixo clero” é isto: o umbigo da Câmara dos Deputados, umbigo sempre
presente (mas que só raramente se entrega aos holofotes).
Se
a totalidade dos deputados acabou se diferenciando como uma categoria à parte
na sociedade, como uma profissão, uma carreira, um ofício que conta até mesmo
com plano de aposentadoria, o “baixo clero” é seu ventre fundamental. No “baixo clero” concentram-se as obsessões
do corpo, ou melhor, da corporação supercorporativista a que foi elevado o
conjunto organizadíssimo dos parlamentares que lá estão. São obsessões nem
sempre declaradas, mas obsessivamente permanentes. São suas causas umbilicais.
Não
há como entender o Parlamento na Praça dos Três Poderes sem entender sua
maioria de rostos desconhecidos. Seu
poder é difuso, mas imenso:
- É dali que parte a demanda de jogar para o erário a conta de passagens aéreas dos cônjuges.
- Nasce lá a ideia de parlashopping [o shopping center luxuoso que está previsto ser construído em anexo ao Congresso Nacional].
- O “baixo clero” é contra o casamento gay,
- acha que a homofobia protege a família pátria e
- vocifera a favor da redução da maioridade penal.
- O “baixo clero” gosta de contratar assessores,
- gosta de ajuda de custo para comprar gasolina,
- gosta de polícia,
- gosta de tiro e
- gosta da Bíblia.
Se
você quiser descobrir a razão das medidas que vêm sendo aprovadas nesse
aglomerado desconexo a que estão chamando de “reforma política”, não a procure
em cartas programas ou nas ideologias. Essa razão está no espírito de corpo. Só o que
as explica é o desejo de beneficiar os parlamentares em exercício de seus
mandatos e dificultar a vida de quem está de fora. É por isso que basta um
parlamentar para que o partido faça jus à verba partidária. É por isso que
a Câmara dos Deputados não quer saber de reeleição no Poder Executivo, mas no
Legislativo quer manter a reeleição sem limites. Tudo para impedir a
alternância no poder (legislativo, bem entendido).
Na Câmara, renovação é
palavra em extinção:
- De cada dez parlamentares que tentam a reeleição, sete chegam lá.
- Em 2014, 56% dos deputados se reelegeram.
- Outros 5% dos eleitos são “retornados”, quer dizer, políticos que ficaram um período sem mandato, normalmente empregados em algum ministério, e depois voltaram.
- Restam cerca de 40% para chamarmos de “novos”.
- Destes, metade é parente de “políticos tradicionais”.
- No fim de tanta conta, segundo os dados reunidos recentemente pela consultoria Patri, especializada em políticas públicas, apenas 77 deputados, num universo de 513, jamais exerceram cargo eletivo e não têm parentesco com os cardeais.
Para
quem é um reles eleitor, o cenário da
Casa incumbida de representar o povo mostra-se ruim, difícil, impenetrável,
imperturbável e desanimador. Dependendo do ângulo pelo qual se olha o corpo
dos parlamentares, dele se vê o umbigo. Dependendo do ponto de vista, vê-se
claramente que, ao lado de representar a
sociedade, esse corpo se articula para representar o próprio umbigo. O que
se vê não é bem uma classe social descolada da vida cotidiana do País, mas algo
talvez mais grave: uma casta. Seu
nome há de ser “parlamentariado” (com o perdão do neologismo para um fenômeno
tão antigo) e seu centro de gravidade
está no “baixo clero”.
Poderia
ser pior? Poderia, sim. Tanto poderia ser pior que, efetivamente, é pior. No umbigo do parlamentariado moram os
pesadelos do presente (os discursos de ódio, por exemplo) e é lá que está
retida a chave do futuro. Desse organismo dependerá o que vai acontecer com o
Brasil nos próximos meses. Não é pouca coisa. Dilma cai ou Dilma fica? Vai depender desse organismo.
Dilma
Rousseff, a própria, parece não se dar conta. Parece acreditar que sua
permanência no cargo resulta exclusivamente de sua determinação pessoal. “As
pessoas caem quando estão dispostas a cair. Não estou. Não tem base para eu
cair”, declarou ela em entrevista a Maria Cristina Frias, Valdo Cruz e
Natuza Nery, publicada na Folha de S. Paulo
de terça-feira. Suas palavras, mais que comoventes, chegam a ser plangentes [de
chorar]. Um governante cai quando a
sociedade está disposta a derrubá-lo e, no caso presente, cai se o PMDB quiser
e se o “baixo clero” concordar. Dilma não foi avisada disso?
A
Presidência da República não é mais protagonista. É refém. Quem dita a agenda brasileira hoje é o parlamentariado instalado na
Câmara dos Deputados, não a vontade da presidente da República, por mais
voluntariosa, valente e valorosa que seja essa mulher.
Quem
controla o pulso da conjuntura é o parlamentariado, por mais raivosas,
interesseiras, desmedidas e gananciosas que sejam suas entranhas. Das esquisitices e das implicâncias
pessoais de seus chefes dependerá a estabilidade da República. Do grau de deslumbramento reacionário de sua massa
numerosa dependerá a saúde social do Brasil. O parlamentariado manda e a gente
torce para que ele não exagere na insensatez.
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