Quem está governando, de fato, o Brasil?

Ditadura do parlamentarizado

Eugênio Bucci
Jornalista e
Professor da Escola de Comunicação e Artes – USP

É desse organismo que dependerá o que vai acontecer com o Brasil
nos próximos meses 
Nesta charge temos as figuras de:
Eduardo Cunha, PMDB-RJ (à esquerda) - atual presidente da Câmara dos Deputados e
Severino Cavalcanti, PP-PE (à direita), foi presidente da mesma Câmara
de 14/fevereiro a 21/setembro de 2005

A expressão “baixo clero”, de origem evidentemente eclesiástica, tem servido para a designação profana da maioria quase anônima da Câmara dos Deputados. O “baixo clero” não tem “cardeais”, por definição, assim como não tem barões, nem caciques, nem painhos (se quisermos metáforas menos canônicas e mais miscigenadas). No baixo “clero” movem-se figurantes qualificados, que têm direito a voto, mas, ainda assim, figurantes. Quando acontece de um deles se projetar para o estrelato, o que se tem são tipos como Severino Cavalcanti, aquele que chegou a presidir a Casa e se tornou célebre por uma fotografia umbilical. O leitor há de se lembrar, com certeza. O botão aberto no baixo da camisa, rente à calça, punha-lhe o umbigo a nu. O “baixo clero” é isto: o umbigo da Câmara dos Deputados, umbigo sempre presente (mas que só raramente se entrega aos holofotes).

Se a totalidade dos deputados acabou se diferenciando como uma categoria à parte na sociedade, como uma profissão, uma carreira, um ofício que conta até mesmo com plano de aposentadoria, o “baixo clero” é seu ventre fundamental. No “baixo clero” concentram-se as obsessões do corpo, ou melhor, da corporação supercorporativista a que foi elevado o conjunto organizadíssimo dos parlamentares que lá estão. São obsessões nem sempre declaradas, mas obsessivamente permanentes. São suas causas umbilicais.

Não há como entender o Parlamento na Praça dos Três Poderes sem entender sua maioria de rostos desconhecidos. Seu poder é difuso, mas imenso:
  • É dali que parte a demanda de jogar para o erário a conta de passagens aéreas dos cônjuges.
  • Nasce lá a ideia de parlashopping [o shopping center luxuoso que está previsto ser construído em anexo ao Congresso Nacional].
  • O “baixo clero” é contra o casamento gay,
  • acha que a homofobia protege a família pátria e
  • vocifera a favor da redução da maioridade penal.
  • O “baixo clero” gosta de contratar assessores,
  • gosta de ajuda de custo para comprar gasolina,
  • gosta de polícia,
  • gosta de tiro e
  • gosta da Bíblia.
Gosta muito. Se pudesse, gostaria de ser sagrado “baixo clero” de verdade, “baixo clero” sem aspas. O “baixo clero” é que elege o presidente da Casa. Às vezes é Severino com o umbigo de fora. Outras vezes... Bem, outras vezes é pior. 

Se você quiser descobrir a razão das medidas que vêm sendo aprovadas nesse aglomerado desconexo a que estão chamando de “reforma política”, não a procure em cartas programas ou nas ideologias. Essa razão está no espírito de corpo. Só o que as explica é o desejo de beneficiar os parlamentares em exercício de seus mandatos e dificultar a vida de quem está de fora. É por isso que basta um parlamentar para que o partido faça jus à verba partidária. É por isso que a Câmara dos Deputados não quer saber de reeleição no Poder Executivo, mas no Legislativo quer manter a reeleição sem limites. Tudo para impedir a alternância no poder (legislativo, bem entendido).

Na Câmara, renovação é palavra em extinção:
  • De cada dez parlamentares que tentam a reeleição, sete chegam lá.
  • Em 2014, 56% dos deputados se reelegeram.
  • Outros 5% dos eleitos são “retornados”, quer dizer, políticos que ficaram um período sem mandato, normalmente empregados em algum ministério, e depois voltaram.
  • Restam cerca de 40% para chamarmos de “novos”.
  • Destes, metade é parente de “políticos tradicionais”.
  • No fim de tanta conta, segundo os dados reunidos recentemente pela consultoria Patri, especializada em políticas públicas, apenas 77 deputados, num universo de 513, jamais exerceram cargo eletivo e não têm parentesco com os cardeais.
A profissão de deputado aspira ser carreira vitalícia.

Para quem é um reles eleitor, o cenário da Casa incumbida de representar o povo mostra-se ruim, difícil, impenetrável, imperturbável e desanimador. Dependendo do ângulo pelo qual se olha o corpo dos parlamentares, dele se vê o umbigo. Dependendo do ponto de vista, vê-se claramente que, ao lado de representar a sociedade, esse corpo se articula para representar o próprio umbigo. O que se vê não é bem uma classe social descolada da vida cotidiana do País, mas algo talvez mais grave: uma casta. Seu nome há de ser parlamentariado (com o perdão do neologismo para um fenômeno tão antigo) e seu centro de gravidade está no “baixo clero”.

Poderia ser pior? Poderia, sim. Tanto poderia ser pior que, efetivamente, é pior. No umbigo do parlamentariado moram os pesadelos do presente (os discursos de ódio, por exemplo) e é lá que está retida a chave do futuro. Desse organismo dependerá o que vai acontecer com o Brasil nos próximos meses. Não é pouca coisa. Dilma cai ou Dilma fica? Vai depender desse organismo.

Dilma Rousseff, a própria, parece não se dar conta. Parece acreditar que sua permanência no cargo resulta exclusivamente de sua determinação pessoal. As pessoas caem quando estão dispostas a cair. Não estou. Não tem base para eu cair, declarou ela em entrevista a Maria Cristina Frias, Valdo Cruz e Natuza Nery, publicada na Folha de S. Paulo de terça-feira. Suas palavras, mais que comoventes, chegam a ser plangentes [de chorar]. Um governante cai quando a sociedade está disposta a derrubá-lo e, no caso presente, cai se o PMDB quiser e se o “baixo clero” concordar. Dilma não foi avisada disso?

A Presidência da República não é mais protagonista. É refém. Quem dita a agenda brasileira hoje é o parlamentariado instalado na Câmara dos Deputados, não a vontade da presidente da República, por mais voluntariosa, valente e valorosa que seja essa mulher.

Quem controla o pulso da conjuntura é o parlamentariado, por mais raivosas, interesseiras, desmedidas e gananciosas que sejam suas entranhas. Das esquisitices e das implicâncias pessoais de seus chefes dependerá a estabilidade da República. Do grau de deslumbramento reacionário de sua massa numerosa dependerá a saúde social do Brasil. O parlamentariado manda e a gente torce para que ele não exagere na insensatez.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Espaço abert0 – Quinta-feira, 9 de julho de 2015 – Pg. A2 – Internet: clique aqui.

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