A VINGANÇA COLETIVA DISFARÇADA DE LEI
Sofismas da lei
José de Souza
Martins*
Redução da maioridade
penal, malhação do Judas
e linchamentos têm por
base a vingança coletiva
Presidente da Câmara dos Deputados - Eduardo Cunha (PMDB/RJ) - vira Judas Iscariotes em protesto na cidade de Fortaleza (CE) |
Na mesma semana do Sábado de Aleluia, em que tradição e
barbárie se encontram na malhação de
Judas Iscariotes pela traição a Jesus Cristo, a Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de redução da maioridade
penal dos brasileiros para 16 anos. Se passar pelos plenários da Câmara e do
Senado, os adolescentes que cometerem crimes graves já não serão beneficiados
pelas penas aparentemente brandas aplicáveis aos que não sabem o que fazem.
Serão julgados como adultos: se supostamente sabem o que fazem quanto votam,
certamente sabem o que fazem quando matam. É o silogismo da lei.
A questão é mais complicada, sociologicamente falando. A
sociedade pós-moderna, que põe nas mãos de quem adulto não é instrumentos de
adulto, como drogas e armas de fogo, caracteriza-se por combinar o que de fato
não combina. Dota imaturos de instrumentos de poder, como a pistola que mata,
mas também o direito de voto, quando ainda estão sob a tutela dos pais. O que
engana, mas não amadurece.
A redução da maioridade penal acrescenta contradições ao
caos de desencontros entre modos de ser que tornam a figura do cidadão, na
sociedade brasileira, uma mistura de descombinações. De modo sumário, o Brasil decreta a antecipação da condição
de adulto dos imaturos e decreta que adolescente não é mais adolescente para
vários e fundamentais efeitos. Livra-se da conta que toda nação deve pagar
para formar devida e adequadamente suas novas gerações. Não paga o que deve, a formação do jovem, e quer receber o que não
merece, seu trabalho e seu voto, sua renúncia ao direito de ser jovem e de ser
protegido.
Ao mesmo tempo, o
Brasil não leva em conta que a efetiva entrada na idade adulta vem sendo adiada
cada vez mais, não só porque os requisitos para ser adulto se tornaram mais
demorados, pois já não basta ter força física para trabalhar e capacidade de
procriação para constituir família e entrar efetivamente no mundo dos adultos.
É preciso encontrar, antes, emprego estável, salário compatível com as
necessidades de uma família recém-constituída, estudar o número suficiente de
anos para ter a profissão compatível com esses reclamos da existência. Já foi o
tempo do analfabeto e do apenas alfabetizado baratos. A preparação para ser adulto hoje prolonga a adolescência para muito
além dos marcos cronológicos que a definiam há duas gerações. O
comportamento imaturo de certo número de nossos estudantes universitários, o
modo predatório e irracional como se comportam em movimentos de protesto, é um
indicativo de que estão se tornando
adultos muito mais tarde, com corpo de gente grande e mentalidade de criança.
A maioridade legal recua para os 16 anos de idade, mas a
maioridade real já não é alcançada antes dos 25 anos. Por volta dessa idade, há
60 anos, um homem era consolidado pai de família e uma mulher já não estava
muito longe de ser avó. Hoje, muitos nessa idade ainda estão indecisos entre
casar e “ficar” e têm sérias dúvidas quanto à conveniência de constituir
família. A lei vai numa direção e a
realidade vai noutra.
Argumenta-se que a redução da maioridade penal dissuadirá de
delinquir os delinquentes potenciais, isto é, os jovens em maior risco de cair
na tentação da criminalidade. No entanto, para que isso funcionasse, seria necessário que a sociedade tivesse,
para as novas gerações, uma alternativa de destino. Não a tem. Um dos
respeitáveis argumentos do excelente documentário de João Moreira Salles Notícias de uma Guerra Particular [para
assistir, clique aqui] é o de que um
adolescente no tráfico de drogas pode ganhar em uma semana muito mais do que
ganha seu pai em um mês de trabalho. Vale mais a pena correr o risco de
viver uma vida curta e boa do que uma vida longa, pobre e sofrida, à espera de
uma realização pessoal que não virá.
A casual coincidência da decisão da Comissão de Constituição
e Justiça com a semana em que em todas as regiões do Brasil ainda se faz a
malhação de Judas encerra o elemento cultural que move uma coisa e outra. Na
malhação estão contidos elementos do arquétipo da violência coletiva frequente
entre nós. Ou, sociologicamente, os elementos da conduta de massa do brasileiro
em face do medo e da adversidade. A
malhação no Brasil vem desde os tempos coloniais. Sintetiza as bases dos nossos
preconceitos e é prática folclórica que passa de geração a geração os
ensinamentos da vingança coletiva. Nesse sentido, a redução da maioridade
penal, a malhação de Judas e os linchamentos entre nós frequentes tem um único
feixe de significação.
Pode-se dizer que a
própria sociedade vai mais longe que o Legislativo na decisão que está tomando:
já decidiu pela pena de morte dos delinquentes linchando-os. No país que
mais lincha no mundo, que é o nosso, a violência dos linchadores é muito maior
quando a vítima é jovem. Mais de um de
um milhão de brasileiros participaram de linchamentos nos últimos 60 anos.
Na faixa dos menores de idade, 47% dos linchados foram mortos; na dos jovens já
maiores de idade, 31% o foram; enquanto 39% de todas as idades morreram. Uma
significativa indicação de que esta
sociedade devota um ódio particular aos jovens transgressores. Se a
antecipação da idade de punição provocasse a diminuição da criminalidade, a
ocorrência em média de um linchamento por dia no Brasil já teria tido efeito. O
que se vê, porém, é o aumento da criminalidade. O diagnóstico que capeia a
proposta de redução da maioridade penal, tudo indica, é equivocado. Existem
outros fatores por trás da criminalidade juvenil, que não inocentam nem o
Estado nem a sociedade. A mudança da lei criará para muitos o conforto de um
bode expiatório.
*
José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor, entre outros,
de Linchamentos - a justiça popular no Brasil
(Editora Contexto).
Fonte: O Estado de S.
Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 5 de abril de 2015 – Pg. E3 – Internet:
clique aqui.
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