PAPA FRANCISCO TAL COMO ELE É!
O pecador é para ser amado
Entrevista
com Dom João Braz de Aviz
Adriana Dias
Lopes
Para o cardeal
catarinense, o único brasileiro no primeiro escalão da
Cúria Romana, o papa
Francisco faz história ao trazer de volta a compaixão, a essência perdida do
catolicismo
CARDEAL JOÃO BRAZ DE AVIZ Prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica - Vaticano |
Aos 67 anos, dom João Braz de Aviz ocupa desde 2011 um dos
cargos mais poderosos do Vaticano – o de prefeito da Congregação para os
Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, responsável
pela disciplina das ordens e congregações religiosas.
Poucos prelados podem falar com tanta propriedade dos
desafios que a Igreja Católica enfrenta: “Há reformas mais profundas do que a
econômica em curso. Trata-se de uma reforma de base. A de fazer com que a
Igreja seja mais fraterna. Que se abra para valores autênticos – amor, justiça
e paz”.
Na semana passada, o cardeal esteve em Brasília, onde
recebeu VEJA, para lançar o livro Sou João – Verdade e Diálogo por uma
Igreja-Comunhão, pela editora Cidade Nova.
Eis a entrevista.
Recentemente, o papa Francisco disse
que tem a sensação de que seu pontificado será breve. O que ele quis dizer com
isso?
Dom João de Aviz:
O papa está com 78 anos. Pressupõe-se que uma pessoa nessa idade não viva por
muito mais tempo. Além disso, Francisco tem a saúde frágil. Os problemas no
joelho limitam muito seus movimentos. Viajar é um enorme sacrifício para o
papa. Ele raramente consegue se ajoelhar. Acredito que, se fosse alguma doença,
ele falaria. O papa é transparente. As pessoas se impressionam com o fato de
Francisco ter envelhecido muito nesses dois anos de pontificado. Isso é porque
ele trabalha muito, tem uma agenda atribuladíssima. O papa quer atender a
todos. Além dos compromissos oficiais e obrigatórios do cargo, ele recebe
doentes, crianças, velhos.
Mas não é só isso. O envelhecimento é causado, sobretudo,
pelos problemas graves com os quais ele tem de lidar. Há uma frase do papa
nessa direção: “Peço a Deus a graça de
viver o suficiente para que as reformas na Igreja sejam irreversíveis”.
Quais são as principais reformas do
pontificado de Francisco?
Dom João de Aviz: Ele
já mexeu na parte econômica do Vaticano. Mudou as regras de forma a tornar os
processos financeiros mais simples e transparentes. Há ainda muito que fazer,
mas o caminho está traçado.
Existe, no entanto, uma reforma muito mais profunda já em
curso. Trata-se de uma mudança de base – simples e complexa ao mesmo tempo. A
de fazer com que a Igreja seja mais fraterna, que se abra para valores
autênticos – amor, justiça e paz. Nós, católicos, formos sempre muito fechados.
Convivemos por séculos com a ideia de que é preciso converter as pessoas para
trazê-las para perto. Não podemos agir como se fôssemos donos da moral. O cristianismo não tem de crescer por
imposição, mas por atração. E isso o papa está fazendo muito bem. É só ver
como ele se comunica com as pessoas. O povo o adora, sente-se próximo dele. E o mais decisivo: não há incoerência entre
o que ele diz e o que ele faz.
Neste ano, o papa teve de explicar
publicamente, mais de uma vez, suas declarações sobre questões do Evangelho que
causaram desconforto. O que o senhor acha disso?
Dom João de Aviz: Há
duas maneiras de ler o Evangelho. Uma, de forma puramente doutrinal, racional.
A outra é ver a mensagem de Jesus nas palavras do Evangelho. A mensagem de amor
e de acolhimento de Jesus. O papa teve, então, de se justificar para as pessoas
que interpretam o Evangelho da primeira forma. Tome-se o exemplo do que ele
falou na ocasião do atentado ao jornal francês Charlie Hebdo. Ao dizer que daria um soco em quem dissesse um
palavrão contra a sua mãe, ele não contradisse o Evangelho. Ele não está
suscitando a violência com essas palavras. Mas está agindo como um ser humano
real. Quem não agiria assim? Ele não nega que é frágil. O papa se justifica
para essas pessoas. Pessoas que veem o Evangelho de forma restrita, puramente
doutrinal. São os tradicionalistas da Igreja. Aos eclesiástico e aos fiéis não
tradicionalistas, ele certamente não precisa se explicar.
O senhor poderia dar um exemplo
prático das duas formas de interpretar o Evangelho?
Dom João de Aviz: O
papa não pode jamais mudar o ensinamento de Jesus. Mas pode mudar a
interpretação. Tomemos como exemplo a questão do divórcio. Ele jamais será
aprovado. Mas muitos dos casamentos católicos hoje em dia, aos olhos da Igreja,
pelas mais diversas razões, são passíveis de nulidade. Ou seja, sob a ótica do
catolicismo, esses casamentos nunca existiram. No próximo Sínodo da Família, a
ser realizado em outubro deste ano, esse será um dos temas centrais. Veja
também a questão dos homossexuais. Uma coisa é condenar a homossexualidade. Outra
é acolher os homossexuais com pastorais especiais para eles. Temos de entrar na
vida das pessoas. E não no pecado delas. O
pecador é para ser amado. E não para ser julgado. Temos de ter mais compaixão. Esse é o cristianismo. E é
isso que o papa Francisco está fazendo.
O pentecostalismo é um desafio
constante ao catolicismo no Brasil. A proximidade do papa com o fiel pode
reverter esse cenário?
Dom João de Aviz: Não
há dúvida. Os pentecostais têm uma pastoral personalizada. É isso que o papa
tem feito. Mas sem a mediação do dinheiro. Acredito também que essa
evangelização mais profunda não arrebanhará um número enorme de fiéis. Pelo
contrário. Seremos em menor número no futuro. Mas seremos de qualidade.
Mas essa não é a realidade do Brasil
atualmente...
Dom João de Aviz: Cerca
de 60% dos brasileiros se dizem católicos e apenas 10% praticam a religião. É
uma condição que brota em dois momentos na história do catolicismo no país. O
primeiro, no século XVIII, quando o marquês de Pombal considerou a Companhia de
Jesus uma ameaça ao poder central da coroa portuguesa e baniu os jesuítas de
Portugal e de suas colônias.
No Brasil, em particular, ficamos praticamente sem padres
por muitos e muitos anos. O catolicismo sobreviveu por bastante tempo quase de
forma conatural entre os brasileiros – à solta, sem a orientação dos padres nem
uma boa evangelização por trás.
O segundo momento ocorreu mais recentemente, na década de
70, com a Teologia da Libertação, cujos princípios se perderam pelas tendências
ideológicas. A comunidade eclesial de base (grupo
reunido em razão da proximidade territorial e de carências e misérias em comum)
não pode ser um movimento de esquerda. Ela tem de ser uma comunidade de fé. O
fato de cuidarmos muito da realidade social fez com que a preocupação com a
moral pessoal fosse deixada de lado. Ficou tudo muito livre. O católico tem de
ser coerente com o Evangelho. Isso não é fácil. Demanda um esforço tremendo.
O senhor já viveu uma crise de fé?
Dom João de Aviz: Digamos
que eu passei por uma crise pessoal muito grande. Em 2012, o então secretário
da congregação que eu coordeno, o arcebispo
Joseph Tobin, foi destituído por Bento XVI sob a acusação de ter tomado o
partido das freiras americanas responsabilizadas por desvios de disciplina e
doutrina. A acusação era injusta. Posso dizer isso porque ele era meu
braço-direito. Eu sempre achei que fazer a vontade de Deus por meio do caminho
da Igreja é essencial. Mas, no momento em que passo a pensar que a vontade de
Deus pode ser mentirosa, como eu fico?
Simplesmente, calei-me diante daquela injustiça. Não tinha
mais força para falar em público. Não podia imaginar que o papa havia mentido,
mas também não podia dizer que falava a verdade. Garanti minha obediência ao
papa. Mas pedi a Deus uma resposta. Foi então que me lembrei de um episódio
bíblico. No momento da crucificação, no auge do sofrimento, Jesus pergunta a
Deus: “Por que me abandonaste?”. E o Pai não responde. Jesus Cristo morreu sem
resposta. Desesperei-me. Mas, em seguida, lembrei-me de última frase de Jesus,
ainda na cruz: “Nas tuas mãos eu entrego meu espírito”. Jesus entregou tudo o
que ele tinha a Deus. Até a racionalidade. A resposta veio na ressurreição,
celebrada agora na Páscoa. Quando percebi isso, eu me recuperei.
Papa Francisco saúda o Cardeal brasileiro João Braz de Aviz durante a Assembleia Plenária da União Internacional das Superioras Gerais. Quarta-feira, 8 de maio de 2013 - Sala Paulo VI - Vaticano |
Quais são as principais diferenças
no estilo de trabalhar de Bento XVI e de Francisco?
Dom João de Aviz: A
principal diferença está na forma de se comunicar. Vejo o papa Francisco pelo
menos a cada duas semanas. O relacionamento com ele é direto. Se preciso falar
com o papa, marco uma audiência. Raramente o encontro demora mais de uma semana
para acontecer. O papa tem o hábito de mandar bilhetes, sem intermediários. Tenho
uns onze guardados. Todos estão em espanhol: “Querido hermano, a ver si usted me puede ayudar”.
Quanto a Bento XVI, na última vez que pedi para falar com
ele, o encontro foi marcado para dali a quatro meses. Ele é extremamente
tímido, e essa timidez causou uma dificuldade de comunicação muito grande. Os
documentos que enviávamos a ele passavam antes por diversas instâncias. Muitas
vezes, já chegavam com interpretações que não eram as nossas. E eu acho que ele
sentiu isso. Admiro profundamente a sabedoria teológica de Bento XVI. Ele é
extremamente racional, lida com os problemas de modo objetivo. A renúncia,
inclusive, mostrou uma sabedoria sem medidas: “Não dou mais conta, não sou mais capaz e não vou mais atrapalhar a
Igreja”. De fato, Bento XVI praticamente virou um monge. Raramente vem a
público sem o convite do papa Francisco. Há uma frase dele não muito conhecida
que exemplifica à perfeição sua humildade: “Agora
eu percebo por que deveria renunciar – depois de mim, Deus suscitou um fenômeno”.
O senhor é muito próximo de
Francisco?
Dom João de Aviz: Tenho
profunda identificação com seu estilo de comandar a Igreja. Gosto do contato
direto com o povo, como ele. Gosto de falar de forma simples, como ele. E
Francisco facilita muito a intimidade. Na primeira vez que nos encontramos, ele
deu uma gargalhada e falou: “Você se
vingou de mim”. Fiquei preocupado com aquilo, muito preocupado mesmo, mas
ele logo explicou, às gargalhadas: “Você se vingou porque votou em mim”. O voto
durante o conclave é secreto. Mas é possível perceber alguns sinais em reações
subliminares. Quando vamos para o almoço, os grupos conversam entre si.
Perguntei então a ele por que meu voto se configurava como uma vingança, e ele
contou uma história extraordinária. Em 2011, quando o cargo de prefeito da
Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida
Apostólica ficou vago, o cardeal Tarcísio Bertone, na ocasião prefeito da
Secretaria de Estado, ligou para Bergoglio para ter referências de um bispo
argentino cotado para o posto. Bergoglio respondeu que essa pessoa não era
preparada e sugeriu meu nome. Não éramos muito próximos naquele tempo. Mas
Bergoglio esteve no Brasil em 2007, para a V Conferência do Episcopado
Latino-Americano e do Caribe, realizada em Aparecida. Ele disse que se lembrou
da minha proximidade com os fiéis durante as missas.
Como foi a experiência de participar
do conclave?
Dom João de Aviz: A
sensação é estranha. No fundo, você pensa: “Eu
posso ser o eleito”. Aí bate o medo de ser votado. Eu tive muito medo. Mas
isso logo passa quando um nome começa a se destacar durante os escrutínios. E o
papa Francisco foi eleito na maior harmonia, muito rapidamente. A Casa Santa
Marta, onde ficávamos hospedados, estava preparada para duas semanas. Foram
necessários apenas três dias. Sobrou tanta comida...
Na eleição de Ratzinger (Bento
XVI), em 2005, foi um pouco diferente. A certa altura, o cardeal Carlo
Maria Martini, de Milão [Itália], começou a receber muitos votos. Quando ele
viu que havia a chance de ser o escolhido, levantou-se, mostrou suas mãos
trêmulas para os cardeais e disse: “Vejam,
estou com Parkinson, e a doença está avançando. Vocês não podem votar em mim.
Votem em Bergoglio”. A partir de então, foi o nome de Ratzinger que ganhou
força.
O senhor votou no papa Francisco com
quais expectativas?
Dom João de Aviz: Votei
nele porque era um homem autêntico e simples. E era do que a Igreja estava
precisando naquele momento histórico, de transição. Confesso que tinha uma
pontinha de medo, porém. Ele é jesuíta. Havia o risco de ser duro, fechado.
Cheguei até a pensar que meu voto poderia ser perdido. Na verdade, não tínhamos
total consciência do que estávamos fazendo ao elegê-lo. Quem iria imaginar que
aconteceria esse fenômeno na Igreja? Era incalculável, imprevisível. Mas deu
certo.
Fonte: VEJA – Edição
2420 – Ano 48 – nº 14 – 8 de abril de 2015 – Pgs. 15, 18-19 – Edição impressa.
O papa verde
Kate Galbraith*
Francisco está
colocando as mudanças climáticas em destaque em sua agenda.
Conseguirá ele sanar
as divisões sobre o tema?
Cardeal Peter Turkson - Presidente do Pontifício Conselho para Justiça e Paz - Vaticano |
No início de março, diante de uma plateia modesta numa
universidade católica na Irlanda, o cardeal
Peter Turkson fez um longo pronunciamento sobre a importância de cuidar do
meio ambiente, que ele descreveu como inseparável de cuidar dos pobres. Este
será, disse Turkson aos estudantes, um “ano crítico para a humanidade”,
culminando na conferência internacional sobre mudança climática em dezembro. “Compelidos pelas evidências científicas
sobre mudança climática”, disse Turkson, “somos chamados a cuidar da humanidade
e respeitar a gramática da natureza como virtudes por seu próprio direito.”
Observadores do Vaticano têm muito com que se banquetear
hoje em dia, mas as palavras de Turkson mesmo assim repercutiram porque
oferecem uma janela para os planos do papa de encorajar ações sobre mudança
climática. Nativo de Gana, Turkson foi um favorito ao papado quando Bento
abdicou, em 2013, e agora preside o
Conselho Pontifício para Justiça e Paz. Mas o que realmente importa é o
seguinte: Turkson teve papel crucial no esboço de um importante documento
ambiental que chamará especial atenção para a mudança climática, que o papa
Francisco pretende publicar neste verão italiano. O documento, conhecido como encíclica, passou por uma revisão final
no fim de março e será traduzido e divulgado em breve. De modo que o
pronunciamento de 50 minutos de Turkson, que citou constantemente as posições
do papa, serve como uma preliminar, apontando para a intenção de Francisco de centrar nas relações entre pobreza e meio
ambiente em sua entrada nas guerras climáticas. “As ameaças que surgem da desigualdade global e da destruição do meio
ambiente estão inter-relacionadas”, disse Turkson, “e elas são os maiores
desafios que enfrentamos hoje como família humana.”
A decisão do papa de
publicar uma encíclica sobre ecologia é uma dádiva, por assim dizer, para
ambientalistas, e uma dor de cabeça para políticos conservadores que elevam a
economia acima da ação climática. Encíclicas são documentos filosóficos -
cartas, por tradição - disseminadas para autoridades eclesiásticas e o público.
Elas costumam ter dezenas de páginas e normalmente discorrem
sobre assuntos espirituais. O papa Bento publicou três nos seus oito anos de
papado, sobre caridade, esperança e amor cristão. Esta será a primeira encíclica de Francisco. O fato de ele ter mirado
o tema da “ecologia humana” - tópico
um pouco mais mundano que o usual - após somente dois anos de papado transmite
um claro sinal sobre suas prioridades.
A Igreja já se manifestou anteriormente sobre questões
ambientais, é claro. Em 2011, Bento, às vezes apelidado de “papa verde”,
defendeu um acordo global sobre o problema “preocupante e complexo” da mudança
climática. O papa Francisco vem refinando ultimamente suas considerações
climáticas. “Não sei se (a atividade
humana) é a única causa, mas principalmente,
em grande parte, é o homem que esbofeteou o rosto da natureza”, ele disse,
em janeiro, numa viagem à Ásia. Francisco conversou sobre mudança climática com
o rei de Tonga e manifestou preocupação de que as Filipinas, uma das nações que
visitou em janeiro, “provavelmente seriam gravemente afetadas por uma mudança
climática”.
O pronunciamento do cardeal Turkson relaciona a necessidade
de preservar o meio ambiente a ensinamentos bíblicos. Ele destaca o segundo capítulo do Gênesis, em que o
homem, recém-criado do pó, é posto no Jardim do Éden para “lavrá-lo e
conservá-lo”. Isso, desenvolveu Turkson, significa que, mesmo que como humanos extraiamos as dádivas da Terra, também devemos
“cuidar dela de maneira a garantir sua fecundidade para gerações futuras”.
Ao que parece, estivemos lavrando demais e não preservando o suficiente, em
outras palavras. Turkson também fez da melhor gestão da Terra uma questão
moral. “Como colocou São João Paulo II, requeremos uma ‘conversão ecológica’,
uma mudança radical e fundamental de nossas atitudes perante a criação, os
pobres e as prioridades da economia global”, disse ele.
Mas Turkson - e, em última análise, o papa - pode evitar a
questão politicamente polarizadora da ciência climática, esquivando-se de um
debate que está atolado em calúnias e não serve a seu propósito final de
estimular ações para ajudar o planeta. Francisco disse que o homem pode não ser
a única causa da mudança climática - algo que nenhum cientista contestaria -,
mas com certeza explorou excessivamente a Terra, uma circunstância que precisa
mudar. Francisco tem se debatido sobre questões da ciência climática, disse
Turkson: “Numa entrevista em avião quando voltava da Coreia em agosto passado,
o Santo Padre disse que um dos desafios que enfrenta em sua encíclica sobre
ecologia é como tratar do debate científico sobre mudança climática e suas
origens”. O papa aí ponderou: “Ela é resultado de processos cíclicos da
natureza ou de atividades humanas (antropogênicas), ou talvez de ambos? O que não é contestado é que nosso planeta
está ficando mais quente”. Em outras palavras, o papa está procurando um
terreno comum e avançar a discussão paralelamente à ação.
KATE GALBRAITH Jornalista norte-americana especializada em energia e clima Autora deste artigo |
Ao se esquivar do debate político sobre ciência climática
que vem dividindo algumas nações, entre elas os Estados Unidos, o
pronunciamento de Francisco passará por cima das cabeças dos políticos para
falar diretamente às massas. Assim como o papa estabeleceu uma reputação de
acessibilidade, sua encíclica provavelmente será mais legível que a maioria
delas. Outra peça longa de Francisco, sobre a alegria do Evangelho, é o
“primeiro documento do Vaticano que já vi usando a palavra rabugento”, disse Michael Budde, chefe do departamento de
estudos católicos da Universidade DePaul. O público de Francisco é certamente
enorme - 1,2 bilhão de católicos, muitos deles no mundo em desenvolvimento. Sua promoção desse tópico pode não só dar
impulso a um acordo em Paris como encorajar católicos que já estão tentando
ajudar outros em harmonia com a Terra, disse Budde. Pode também,
acrescentou, provocar uma discussão
incômoda sobre a relação entre capitalismo e mudança climática - pois é inquestionável que as economias
bem-sucedidas e em rápido crescimento estão gerando muito mais gases do efeito
estufa do que as nações pobres, que mesmo assim sofrerão os efeitos do
clima.
Estes são temas importantes, e se mobilizarem líderes
mundiais além das massas, tanto melhor. Muitos líderes que são, ou poderiam
ser, vitais no trabalho sobre mudança climática são católicos. Um deles é Tony Abbott, primeiro-ministro da
Austrália, que elogiou o carvão como “a base de nossa prosperidade” no futuro
previsível e ajudou a refutar o esquema de imposto do carbono na Austrália.
Outro é Dilma Rousseff, a cada vez
mais impopular líder do Brasil, que talvez se junte à agenda do papa numa
medida para livrar a cara, à luz da grave seca que drena a água de São Paulo.
Nos Estados Unidos da América, o segundo país que mais emite
gases do efeito estufa, a resposta à encíclica ecológica provavelmente rachará
ao longo de linhas divisórias que já existem sobre o papa Francisco, disse
Budde. A posição do papa sobre clima é outra razão para a esquerda abraçar
Francisco, que abrandou a linha da Igreja quanto aos gays e ajudou a forjar um
acordo sobre Cuba. A direita, e os interesses industriais endinheirados que se
alinham com ela, inevitavelmente a combaterão. “Embora respeitemos as posições
do papa, acreditamos também que estamos no lado dos anjos quando consideramos o
sofrimento de bilhões de pessoas em todo o globo que estão vivendo sem
eletrificação e sofrendo com uma pobreza indizível e doenças em função disso”,
disse recentemente à Bloomberg Laura
Sheehan, vice-presidente de comunicações da American Coalition for Clean Coal Electricity, uma associação do
setor de carvão. Stephen Moore,
economista-chefe da Heritage Foundation,
teve palavras mais duras. “O papa Francisco - e digo isto como católico - é um
completo desastre quando se trata de pronunciamentos políticos”, escreveu ele
em janeiro. “Sobre a economia, e agora sobre o meio ambiente, o papa se aliou à
extrema esquerda e adotou uma ideologia que tornará as pessoas mais pobres e
menos livres.”
Essas tensões
provavelmente atingirão um clímax em setembro quando o papa visitar os Estados
Unidos. Além de discursar perante as Nações Unidas e se reunir com o
presidente americano Barack Obama na Casa Branca, Francisco falará ao Congresso
a convite do presidente da Casa, John
Boehner, um católico que tem criticado a agenda climática do governo Obama
por eliminar empregos americanos. Quase certamente, Francisco usará esse
púlpito político para exortar ações climáticas enquanto, imagina-se, Boehner
estará observando com o rosto impassível atrás dele. A recepção de Francisco
será bem mais amena do que a de Obama, que levantou a mudança climática em seus
discursos ao Congresso.
Mas a verdadeira
missão do papa é trazer esperança e soluções para o mundo numa questão que até
agora tem desafiado uma anuência significativa. Ele identificou um problema
de ordem espiritual. Como colocou o cardeal Turkson, o papa viu os “sinais
aziagos da natureza que sugerem que a
humanidade pode ter cultivado demais e conservado de menos”. Se Francisco
puder abrandar o tom do debate sobre ciência climática e exortar o mundo a agir
- para conservar a Terra em vez de cultivá-la imprudentemente - então isso
teria os contornos da vitória.
Traduzido do inglês por Celso Paciornik.
*
KATE GALBRAITH é jornalista especializada em energia e
clima. Tem trabalhos publicados no Texas
Tribune, The New York Times e The Economist. Escreveu este artigo para
Foreign Policy.
Fonte: O Estado de S.
Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 5 de abril de 2015 – Pg. E8 – Internet:
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