ÍNDIOS BRASILEIROS: ESTRANHOS NO NINHO!
O que não queremos ver nos nossos índios
Washington Novaes
Jornalista
Continuamos a tratá-los
como seres estranhos,
que vivem pelados, não
falam nossas línguas...
Criança indígena do Mato Grosso |
Notícia de poucos dias atrás (Diário Digital, 19/4) dá conta de pesquisa (relatada pela revista Science) de um grupo de cientistas que, trabalhando na fronteira Brasil-Venezuela
com índios ianomâmis, conclui que eles têm anticorpos resistentes a agentes
externos - "um microbioma com o
nível mais alto de diversidade bacteriana" jamais registrado em qualquer
outro grupo. Por isso mesmo, "seu sistema imunológico apresenta mais
microrganismos e de todas as bactérias que o dos demais grupos humanos
conhecidos" - como demonstrou o sequenciamento de DNA e de bactérias
encontradas na pele, na boca e nos intestinos.
Essas análises foram confirmadas por pesquisas em
universidades norte-americanas, que recentemente devolveram aos ianomâmis 2.693
amostras de sangue levadas para os Estados Unidos em 1962 - e que agora foram
sepultadas pelos índios em cerimoniais respeitosos. Segundo os pesquisadores, na relação com outros grupos humanos esses
índios perdem a diversidade de microrganismos e se tornam vulneráveis a doenças
que antes não conheciam.
Vista aérea da aldeia Ipatse, no Parque Indígena do Xingu. Foto de Tiago Queiroz/AE |
A memória dá um salto e retorna a 1979, quando o autor
destas linhas, então chefe da redação do programa Globo Repórter, da Rede Globo, foi pela primeira vez ao Parque Indígena do Xingu documentar um
trabalho que ali vinha sendo feito por uma equipe de médicos da Escola Paulista de Medicina (hoje
Universidade Federal de São Paulo), liderada pelo professor Roberto Baruzzi. Os pesquisadores acompanhavam a saúde de
cada índio de várias etnias do sul do Xingu, mantinham fichas específicas de
todos e as comparavam com a visita anterior. A conclusão era espantosa: não havia ali um só caso de doenças
cardiovasculares - exatamente porque, vivendo isolados, os índios não
tinham nenhum dos chamados fatores de risco dessas doenças: não fumavam, não
bebiam álcool, não tinham vida sedentária nem obesidade, não apresentavam
hipertensão, não consumiam sal (só sal vegetal, feito com aguapé) nem açúcar de
cana. Saindo do Xingu, fomos documentar grupos de índios caingangues e guaranis
aculturados que viviam nas proximidades de Bauru (SP). Os que trabalhavam eram
boias-frias e os demais, mendigos, alcoólatras, com perturbações mentais.
Praticamente todos eram hipertensos, obesos, com taxas de mortalidade altas e
precoces. A comparação foi ao ar num documentário, As Razões do Coração, que teve índices altíssimos de audiência.
São informações que deveriam fazer parte de nossas
discussões de hoje, quando estamos às voltas com várias crises na área de saúde:
·
epidemias
de dengue (mais de 220 casos novos por hora, 257.809, ou 55% do total, em
São Paulo),
·
índices
altíssimos de obesidade, inclusive entre jovens e crianças,
·
doenças cardiovasculares entre as mais
frequentes causas de morte.
Mas em lugar de prestar atenção aos modos de viver de
indígenas, enquanto ainda na força de sua cultura, continuamos a tratá-los como
seres estranhos, que vivem pelados, não falam nossas línguas, não trabalham
segundo nossos padrões. A ponto de eles
terem agora de se rebelar para que não se aprove no Congresso Nacional, sob
pressão principalmente da "bancada ruralista", uma proposta de emenda
constitucional que lhes retira parte de seus direitos assegurados pela
constituição de 1988 e transfere da Funai para o Congresso o poder de
demarcar ou não terras indígenas.
Com esses rumos acentuaremos o esquecimento de que eles
foram os "donos" de todo o território nacional, do qual foram gradativamente
expulsos. Mas ainda são quase 1 milhão
de pessoas de 220 povos, que falam 180 línguas, em 27 Estados. Agora
avança, inclusive no Judiciário, a tese de que só pode ser reconhecido para
demarcação território já ocupado efetivamente por eles antes de 1988. E assim
cerca de 300 áreas correm riscos.
Só que nos esquecemos também dos relatórios da ONU, do Banco
Mundial e de outras instituições segundo os quais as áreas indígenas são os lugares mais eficazes em conservação da
biodiversidade - mais que as reservas legais e outras áreas protegidas. Que
seus modos de viver são os que mais impedem desmatamentos - esse problema tão
angustiante por sua influência na área do clima e dos regimes de chuvas.
Isso não tem importância apenas para o Brasil. A própria
ONU, por meio de sua Agência para a
Alimentação e Agricultura (FAO), afirma (Eco-Finanças, 17/4) que a "crise
da água" afetará dois terços da população mundial em 2050 (hoje já há
algum nível de escassez para 40% da população). E que o fator principal será o
maior uso da água para produzir 60% mais alimentos que hoje.
Mas há diferenças de um lugar para outro:
·
Os países ditos desenvolvidos, com menos de 20%
da população mundial, consomem quase 80% dos recursos físicos;
·
os
Estados Unidos, com 5% da população, respondem por 40% do consumo.
·
Segundo a sua própria Agência de Proteção
Ambiental, os EUA jogam no lixo 34
milhões de toneladas anuais de alimentos.
·
No mundo,
um terço dos alimentos é desperdiçado (FAO, 5/2),
·
enquanto mais
de 800 milhões de pessoas passam fome e mais de 2 bilhões vivem abaixo da linha
de pobreza.
·
No Brasil
mesmo, 3,4 milhões de pessoas passam
fome (Folha de S. Paulo,
22/9/2014).
·
A elas podemos somar mais de 40 milhões de pessoas que vivem do Bolsa Família.
Diante de tudo isso, vale a pena lembrar o depoimento do
saudoso psicanalista Hélio Pellegrino,
no livro Noel Nutels - Memórias e
Depoimentos, sobre o médico que dedicou sua vida a grupos indígenas. "Se estamos destruindo os índios",
escreveu Hélio Pellegrino, "é porque
nossa brutalidade chegou a um nível perigoso para nós próprios. Os índios
representam a possibilidade humana mais radical e íntima de transar com a
natureza (...). Homem e natureza são
casados (...). Dissolvido esse
casamento, o homem tomba num exílio feito de poeira amarga e estéril".
Fonte: O Estado de S.
Paulo – Espaço aberto – Sexta-feira, 24 de abril de 2015 – Pg. A2 –
Internet: clique aqui.
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