PARA ACABAR COM O TERRORISMO
É preciso resolver os conflitos do Oriente Médio, não
agravá-los
Alain Gresh*
Os atentados em Túnis
e Sanaa lembram que os países muçulmanos são os mais atingidos por ações contra
civis. A luta contra o “terrorismo” permite mobilizar a opinião pública, criar
coalizões militares e aprovar leis que restringem as liberdades. Mas isso torna
possível enfrentar a realidade política do Oriente Médio?
ALAIN GRESH Nasceu no Cairo (Egito) em 1948 e vive na França trabalha como jornalista especializado em Oriente Médio |
Foi uma batalha homérica, coberta hora a hora por todos os
meios de comunicação do mundo. A Organização
do Estado Islâmico (OEI), que havia conquistado Mossul em junho de 2014, prosseguia em seu avanço fulgurante em
direção a Bagdá e à fronteira turca, e ocupava 80% da cidade de Kobane, na
Síria. Os combates se agravaram durante meses. Os milicianos curdos locais,
apoiados pela aviação norte-americana, receberam armas e a ajuda de cerca de
150 soldados enviados pelo governo regional do Curdistão no Iraque. Seguidos
com paixão pelas TVs ocidentais, os
enfrentamentos terminaram no início de 2015 com a retirada da OEI.
Mas quem são esses heroicos resistentes que cortaram uma das
cabeças da hidra terrorista? Qualificados de maneira genérica como “curdos”, eles pertencem em sua maioria
ao Partido da União Democrática
(PYD), o ramo sírio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Ora, o PKK
figura há mais de uma década na lista das organizações terroristas elaborada
pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Assim, podemos ser condenados em
Paris por “apologia ao terrorismo” se emitirmos uma opinião favorável ao PKK;
em Kobane, porém, seus militantes merecem toda a nossa admiração. Quem ficaria
espantado com isso num momento em que Washington e Teerã negociam um acordo
histórico sobre a energia nuclear e em que o diretor do setor de informação
nacional norte-americano envia ao Senado um relatório no qual o Irã e o
Hezbollah não são mais apontados como entidades terroristas que ameaçam os
Estados Unidos? [1]
Um qualificativo aplicado ao outro
Foi um verão particularmente agitado. Em Haifa [Israel], um homem colocou uma
bomba em um mercado em 6 de julho; 23 pessoas foram mortas e 75 feridas, na
maioria mulheres e crianças. No dia 15, um ataque realizado em Jerusalém matou dez pessoas e fez 29
feridos. Dez dias depois, uma bomba explodiu, também em Haifa, fazendo 39
mortos. As vítimas eram todas civis e árabes. Na Palestina de 1938, esses atos foram reivindicados pelo Irgun, braço armado da ala
“revisionista” do movimento sionista que deu a Israel dois primeiros-ministros:
Menahem Begin e Itzhak Shamir. [2]
Resistentes? Combatentes da liberdade? Delinquentes?
Bárbaros? Sabemos que o qualificativo
“terrorista” é sempre aplicado ao outro, nunca a “nossos combatentes”. A
história também nos ensinou que os terroristas de ontem podem se tornar os
dirigentes de amanhã. Isso causa surpresa? O terrorismo pode ser definido – e
os exemplos do PKK e dos grupos sionistas armados ilustram as ambiguidades do
conceito – como uma forma de ação, não como uma ideologia. Nada liga os grupos de extrema direita italianos dos
anos 1970, os Tigres Tâmeis, o Exército Republicano Irlandês (Irish
Republican Army, IRA), sem falar da Organização
pela Libertação da Palestina (OLP) e do Congresso Nacional Africano (CNA), estes dois últimos denunciados
como “terroristas” por Ronald Reagan, por Margaret Thatcher e, é claro, por Benjamin Netanyahu, cujo país
colaborava estreitamente com a África do Sul do apartheid. [3]
Na melhor das hipóteses, podemos inscrever o terrorismo na lista dos meios militares. E,
como já se disse com frequência, ele é a arma dos fracos. Figura brilhante da
revolução argelina, preso pelo Exército francês em 1957, Larbi ben M’hidi, chefe da região autônoma de Argel, foi
interrogado sobre o motivo pelo qual a Frente
de Libertação Nacional (FLN) colocava suas bombas camufladas no fundo de
cestinhos de carregar bebês em cafés ou em lugares públicos. “Deem-nos seus aviões, nós lhe daremos nossos
cestinhos”, retorquiu a seus torturadores, que iriam assassiná-lo friamente
alguns dias depois. A desproporção dos meios entre guerrilheiros e um exército
regular leva a uma desproporção do número de vítimas. Se o Hamas [Palestina] e
seus aliados devem ser considerados “terroristas” por terem matado três civis
durante a guerra de Gaza de 2014, como deveríamos classificar o Estado de
Israel, que massacrou, segundo as estimativas mais baixas – as do próprio
Exército israelense –, de oitocentos a mil, entre os quais centenas de
crianças?
Para além de seu caráter indistinto e indeciso, o uso do
conceito de terrorismo tende a despolitizar as análises e, pelo mesmo caminho,
tornar impossível qualquer compreensão dos problemas levantados. “Nós lutamos contra o Mal”, afirmava o
presidente George W. Bush diante do
Congresso norte-americano em 24 de setembro de 2001, acrescentando: “Eles
odeiam o que veem nesta assembleia, um governo democraticamente eleito. Seus
dirigentes designam a si próprios. Eles odeiam nossas liberdades: nossa
liberdade religiosa, nossa liberdade de expressão, nossa liberdade de votar e
de nos reunir, de estar em desacordo uns com os outros”. Para enfrentar o
terrorismo, não é, portanto, necessário modificar as políticas norte-americanas
de guerra na região, colocar um termo ao calvário dos palestinos; a única
solução consiste na eliminação física do bárbaro. Se os irmãos Kouachi e Amedy
Coulibaly, autores dos atentados contra o Charlie
Hebdo e o Hyper Cacher da Porte
de Vincennes, são movidos fundamentalmente por seu ódio à liberdade de
expressão, como proclamaram os principais dirigentes políticos franceses, é
inútil nos interrogarmos sobre as consequências das políticas levadas a efeito
na Líbia, no Mali e no Sahel. No dia em que prestava homenagem às vítimas dos
atentados de janeiro, a Assembleia Nacional votava com o mesmo ímpeto o
prosseguimento das operações militares francesas no Iraque.
Um balanço da “guerra ao terror”
Não seria chegada a hora de realizar o balanço dessa “guerra contra o terrorismo” em curso desde 2001, do
ponto de vista de seus objetivos afixados? Segundo o Global Terrorism Database, da Universidade de Maryland [Estados
Unidos], a Al-Qaeda e suas filiais cometeram cerca de duzentos atentados por
ano entre 2007 e 2010. Esse número aumentou 300% em 2013, com seiscentos atos.
E ninguém duvida que as cifras de 2014 irão superar todos os recordes, com a
criação do califado por Abu Bakr
al-Baghdadi. [4] E quanto à quantidade de terroristas?
Segundo as estimativas ocidentais, 20 mil combatentes estrangeiros se juntaram
à OEI e às organizações extremistas no Iraque e na Síria, entre eles 3,4 mil
europeus. “Nick Rasmussen, chefe do Centro Nacional de Contraterrorismo
norte-americano, afirmou que o fluxo de combatentes estrangeiros que se dirigiu
para a Síria ultrapassa de longe o daqueles que partiram para a jihad no
Afeganistão, no Paquistão, no Iraque, no Iêmen ou na Somália em algum momento
ao longo dos últimos vinte anos.” [5]
Esse balanço da “guerra contra o terrorismo” seria bem
fragmentário se não levasse em conta os desastres geopolíticos e humanos. Desde
2001, os Estados Unidos, às vezes com a ajuda de seus aliados, conduziram
guerras no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e, de maneira indireta, no
Paquistão, no Iêmen e na Somália. Balanço:
·
o Estado
líbio desapareceu,
·
o Estado
iraquiano mergulha no confessionalismo e na guerra civil,
·
o poder
afegão vacila,
·
os talibãs
nunca foram tão poderosos no Paquistão.
Condoleezza Rice, ex-secretária de Estado norte-americana,
evocava um “caos construtivo” em 2005 para justificar a política da
administração Bush na região, anunciando os amanhãs que cantariam o hino da
democracia. Dez anos depois, o caos se
estendeu a tudo aquilo que os Estados Unidos chamam de o “Grande Oriente
Médio”, do Paquistão ao Sahel. E as populações foram as principais vítimas
dessa utopia cuja dimensão construtiva temos dificuldade de medir.
TOM ENGELHARDT Escritor e Jornalista norte-americano |
Dezenas de milhares
de civis foram vítimas dos “bombardeios direcionados”, dos drones, dos
comandos especiais, das prisões arbitrárias, das torturas sob a égide de
conselheiros da CIA. Nada foi poupado, nem festas de casamento, cerimônias de
nascimento e funerais, reduzidos a cinzas por tiros norte-americanos
“direcionados”. O jornalista Tom
Engelhardt citou oito bodas bombardeadas no Afeganistão, no Iraque e no
Iêmen entre 2001 e 2013. [6] Quando são evocadas
no Ocidente, o que é raro, essas vítimas, contrariamente àquelas que o
“terrorismo” faz, nunca têm rosto, nunca apresentam uma identidade; são
anônimas, “colaterais”. No entanto, todas têm família, irmãos, irmãs, pais.
Seria de admirar que sua lembrança alimentasse um ódio crescente contra os
Estados Unidos e o Ocidente? Podemos
imaginar que o ex-presidente Bush seja levado diante de um tribunal penal
internacional por ter invadido e destruído o Iraque? Esses crimes jamais
punidos dão crédito aos discursos mais extremistas na região.
Ao designar o inimigo como uma “ameaça à existência”, ao
reduzi-lo ao “islamofascismo”, como
fez o primeiro-ministro francês, Manuel
Valls, evocando uma terceira guerra mundial contra um novo totalitarismo
herdeiro do fascismo e do comunismo, o Ocidente concede à Al-Qaeda e à OEI
visibilidade, notoriedade e estatura comparável àquela da URSS, ou mesmo da
Alemanha nazista, fazendo crescer
artificialmente o prestígio e a atração exercidos por essas organizações sobre
aqueles que desejariam resistir à ordem imposta por exércitos estrangeiros.
É preciso entender as conexões
Certos líderes norte-americanos têm por vezes lampejos de
lucidez. Em outubro de 2014, o secretário de Estado, John Kerry, ao celebrar com os muçulmanos norte-americanos a “festa
do sacrifício”, declarou, evocando suas viagens na região e suas discussões em
relação à OEI: “Todos os líderes mencionaram espontaneamente a necessidade de
tentar alcançar a paz entre Israel e os palestinos, porque [a ausência de paz]
favoreceria o recrutamento [da OEI], a cólera e as manifestações de rua às
quais esses líderes deveriam responder. É
preciso entender essa conexão com a humilhação e a perda da dignidade”. [7]
Haveria então uma
relação entre:
·
“terrorismo” e Palestina?
·
Entre a destruição do Iraque e o florescimento
da OEI?
·
Entre os assassinatos “direcionados” e o ódio
contra o Ocidente?
·
Entre o atentado do Museu do Bardo, em Túnis, o
desmantelamento da Líbia e a miséria das regiões abandonadas da Tunísia, que,
se espera, sem muita convicção, vá receber enfim uma ajuda econômica
substancial não condicionada pelas receitas habituais do Fundo Monetário Internacional,
criadoras de injustiças e de revoltas?
GRAHAM E. FULLER Escritor e analista político norte-americano especializado em extremismo islâmico Trabalhou para o National Intelligence Council (NIC) |
Ex-integrante da CIA e excelente especialista no islã, Graham Fuller acaba de publicar um
livro, A World Without Islam [Um
mundo sem o islã], cuja conclusão ele mesmo resume: “Ainda que não tivesse
havido uma religião chamada islã ou um profeta chamado Maomé, o estado das
relações entre o Ocidente e o Oriente Médio seria hoje mais ou menos igual.
Isso parece contraintuitivo, mas revela um ponto essencial: existe uma dúzia de boas razões fora o islã
e a religião para que as relações entre o Ocidente e o Oriente Médio sejam
ruins [...]:
·
as cruzadas (uma aventura econômica, social,
política e geopolítica ocidental),
·
o imperialismo,
·
o colonialismo,
·
o controle ocidental dos recursos do Oriente
Médio sobre a energia,
·
a introdução de ditaduras pró-ocidentais sem
fim,
·
as fronteiras redesenhadas,
·
a criação pelo Ocidente do Estado de Israel,
·
as invasões e as guerras norte-americanas,
·
as políticas norte-americanas enviesadas e
persistentes em relação à questão palestina etc.
Tradução do título: "Um Mundo sem o Islã" |
Nada disso tem a ver com o islã. É certo que as reações da
região são cada vez mais formuladas do ponto de vista religioso e cultural, ou
seja, muçulmanos e islâmicos – o que não é de surpreender. Em cada grande enfrentamento, as pessoas procuram defender sua causa em
termos morais mais elevados. É o que fazem tanto as cruzadas cristãs quanto
o comunismo com sua ‘luta pelo proletariado internacional’”. [8]
Ainda que tenhamos de nos preocupar com os discursos de ódio
propagados por certos pregadores muçulmanos radicais, a reforma do islã depende da responsabilidade dos fiéis. Em contrapartida, é de nossa
responsabilidade a inflexão das políticas ocidentais que, há décadas, alimentam
o caos e os ódios. E desprezamos os conselhos de todos aqueles especialistas
na “guerra contra o terrorismo”. O mais ouvido em Washington há trinta anos não
é outro senão Benjamin Netanyahu, o
primeiro-ministro israelense, cujo livro How
the West Can Win (Como o Ocidente pode vencer) [9] pretende
explicar como podemos “acabar com o terrorismo”; [10] ele
serve de breviário a todos os novos
cruzados. Suas receitas alimentaram a “guerra da civilização” e mergulharam
a região em um caos do qual, ao que tudo indica, ela terá dificuldades para
sair.
*
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le
Monde Diplomatique (edição francesa).
N
O T A S :
[ 1 ] Cf.
Jack Moore, “US Omits Iran and Hezbollah From Terror Threat List” [EUA eliminam
Irã e Hezbollah da lista de ameaças terroristas], Newsweek, Nova York, 16 mar.
2015.
[ 2 ]
Uri Avnery, “Who Are
the Terrorists?” [Quem são os terroristas?], artigo publicado
no Haolam Hazeh, 9 maio 1979, e reproduzido no Journal of Palestine Studies,
Beirute, outono de 1979.
[ 3 ] Ler
“Regards sud-africains sur la Palestine” [Olhares sul-africanos sobre a
Palestina], Le Monde diplomatique, ago. 2009.
[ 4
] Cf. Gray Matter,
“Where Terrorism Research Goes Wrong” [Onde erram as pesquisas sobre
terrorismo], International New York Times, 6 mar. 2015.
[ 5
] Associated Press, 10
fev. 2015.
[ 6 ] Tom
Engelhardt, “Washington’s Wedding Album From Hell” [O álbum de casamentos do
inferno de Washington], Tom Dispatch, 20 dez. 2013. Disponível em:
www.tomdispatch.com/blog.
[ 7 ] Joseph
Klein, “Kerry Blames Israel for ISIS Recruitment” [Kerry culpa Israel por
recrutamento da OEI], 23 out. 2014. Disponível em: www.frontpagemag.com.
[ 8 ]
Graham E. Fuller,
“Yes, It Is Islamic Extremism – But Why?” [Sim, é extremismo
islâmico – Mas por quê?], 22 fev 2015. Disponível em: http://grahamefuller.com.
[ 9 ] Farrar,
Straus e Giroux, Nova York, 1986.
[ 10 ] Benjamin
Netanyahu, Paix et sécurité. Pour en finir avec le terrorisme [Paz e segurança.
Para acabar com o terrorismo], L’Archipel, Paris, 1996.
Fonte: Le Monde
Diplomatique Brasil – Ano 8 – Número 93 – Abril 2015 – Pgs. 22-23 – Internet:
clique aqui.
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