QUEM TEM MEDO DE IMPOSTO?

Entrevista com Heráclio Camargo

Christian Carvalho Cruz

A carga tributária brasileira não é simplesmente alta.
Ela é alta porque injusta e porque as contrapartidas oferecidas são muito baixas,
avalia procurador da Fazenda Nacional
HERÁCLIO CAMARGO
Procurador da Fazenda Nacional em São Paulo
Nada como uma frase em português capenga para explicar como é simples e simplória a vida nacional. “Quem paga imposto são os coitadinho. Quem não pode fazer acordo, negociata, se fode. Esses grandões aí estão passando tudo livre, tudo isento de imposto”, explicou Paulo Roberto Cortez em conversa grampeada pela Polícia Federal na nova operação do país das operações e da alma depauperada. Essa mais recente é a Zelotes, que descortinou jeitinhos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) para facilitar o nado de tubarões - dos grandões - que devem à Receita. O senhor Paulo Roberto Cortez é um conselheiro do Carf investigado por participação no esquema de subornos que pode ter deixado um rombo de R$ 19 bilhões nos cofres públicos ao livrar empresas do pagamento de dívidas e multas ao Fisco.

É importante que as pessoas entendam que a sonegação está intimamente ligada à corrupção. Elas são amantes, diz Heráclio Camargo, procurador da Fazenda Nacional em São Paulo e presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, o Sinprofaz. “E aí eu não falo da cervejinha pro guarda. Falo dos grandes esquemas. Sempre que há corrupção há sonegação. Tributos deixam de entrar nos cofres públicos porque descem pelo ralo da lavagem de dinheiro, são enviados a paraísos fiscais, contas secretas na Suíça.”

Subordinada à Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional é um órgão que, trocando em miúdos, corre atrás de devedores de impostos federais. Corre atrás da tal Dívida Ativa da União. Seus procuradores, por meio do Sinprofaz, idealizaram o Sonegômetro. Irmão menos aclamado do Impostômetro, o placar da sonegação registrou R$ 500 bilhões em 2014. Panelas? Passeatas? Como bem observou o colunista José Roberto de Toledo, aqui mesmo neste Estado, esquemas como o da Operação Zelotes são “o tipo de corrupção que não leva multidões às ruas, não ganha hashtag no Twitter, muitas vezes não vira nem notícia”. Na entrevista a seguir, o procurador Camargo destrincha a estrutura tributária brasileira, suas mazelas e seus possíveis consertos.

Historicamente, como se constitui o sistema tributário brasileiro?

Heráclio Camargo: Ele se ergue sobre uma tradição patrimonialista e oligárquica que vem do Brasil Colônia. Naquela época a Coroa Portuguesa arrecadava - e era até uma alíquota módica, a meu ver - 20% sobre o que se produzia e se comercializava aqui. E simplesmente levava essa arrecadação para a Metrópole, sem oferecer nenhuma contrapartida à Colônia. Apenas em 1946 foi mencionado pela primeira vez em âmbito constitucional o princípio da capacidade contributiva, que diz que cada um deve pagar tributos de acordo com a sua renda. Ou seja, quem tem menos paga menos e quem tem mais paga mais. Esse princípio, então, passou a orientar o sistema tributário do País, só que nunca foi adotado na prática. Nós continuamos a privilegiar uma tributação baixa sobre o patrimônio e a renda dos que podem mais e uma tributação alta sobre o consumo de bens e serviços de toda a população.

A Constituição de 1988 trouxe avanços no campo tributário?

H. C.: Sim, houve uma inflexão importante. Ela não só manteve o princípio da capacidade contributiva como sistematizou as competências e os tributos sob responsabilidade da União, dos Estados e dos municípios. Isso deu maior segurança ao sistema. O grande avanço, porém, foi a previsão de um Imposto sobre Grandes Fortunas, que até hoje não foi regulamentado - e isso diz muito da dinâmica da sociedade brasileira. Como o poder econômico tem um peso grande na vida política, é difícil dissociarmos o sistema tributário que existe na prática da formação de nossa representação política. O que quero dizer é que aquela tradição patrimonialista e oligárquica à qual me referi é o que nos leva à representação política que perpetua esse sistema tributário disfuncional, porque regressivo.

E, portanto, contrário ao que diz a Constituição.

H. C.: Exato. Um corolário do princípio da capacidade contributiva é a fixação de certa progressividade na tributação. Ela deve ser maior na medida em que os valores de patrimônio, por exemplo, ficam maiores. E aí até a política fundiária deve ser observada. Deveríamos aumentar as alíquotas de imóveis nas cidades e no campo que não cumpram a função social de servir como habitação ou de fomentar a atividade econômica. Tem uma lógica nessa tributação, não se trata de questão ideológica. É colocar a propriedade a serviço da população, preservando o princípio da livre iniciativa, que também é fundamental e cláusula pétrea da Constituição. Mas ele deve conviver com o princípio da capacidade contributiva e o da função social da propriedade. Não são princípios conflitantes, podem conviver numa sociedade que se quer mais justa do ponto de vista tributário e socioeconômico. Mas a estrutura fundiária brasileira continua privilegiando a propriedade, sem onerar o mau uso do título de propriedade e sem aplicar o que está na Constituição, que é a tributação progressiva sobre os latifúndios improdutivos. E a que pontos chegamos... Eu era criança nos anos 70 e 80 e ouvia essas duas palavras sempre juntas: latifúndio improdutivo. Ainda me vejo obrigado a usá-las em 2015. Prova de que a estrutura da sociedade brasileira, inclusive a tributária, não mudou. Ela continua desigual, injusta e concentradora de renda.

Sonegômetro em Brasília - DF
O Impostômetro diz que nos três primeiros meses de 2015 nós pagamos R$ 500 bilhões em impostos. Isso é muito ou é pouco?

H. C.: A carga tributária deve ser analisada tendo em vista o nível de contrapartidas que ela apresenta à população e não pelo índice que ela representa no PIB, hoje na casa dos 36%. Países escandinavos têm carga tributária maior, de até 45% do PIB, mas lá o sistema oferece tantas contrapartidas de qualidade à população - escolas, hospitais, benefícios sociais - que as pessoas não se sentem penalizadas. No Brasil, onde já existe um índice elevado em termos absolutos, precisaríamos de contrapartidas muito maiores para justificar esses 36%. Então, a carga tributária brasileira não é simplesmente alta. Ela se torna alta porque é injusta e porque as contrapartidas em políticas públicas são baixas.

Bolsa-Família, ProUni, Mais Médicos, aumento do salário mínimo não são contrapartidas proporcionadas pela arrecadação de impostos?

H. C.: São contrapartidas pífias e conjunturais. Políticas de governo e não de Estado. Podem ser interrompidas a qualquer momento por um governo neoliberal e até por este que aí está, em cujo peito bate um coração neoliberal. Para comparar, Getúlio Vargas fez uma série de reformas estruturais no Brasil. Na política industrial, nos direitos sociais e trabalhistas. Mas veja, por exemplo, a política de transferência de renda dos últimos 12 anos. É uma política compensatória de viés neoliberal americano. A Escola de Chicago prevê políticas compensatórias para situações em que, mesmo numa economia sem regulamentação, elas sejam necessárias para evitar que parcelas da população morram de fome. Não é uma política moderna. É conservadora.

O curioso é que os neoliberais de cabeça e não só de coração criticam essa política de transferência de renda. Chegaram a chamar o Bolsa Família de bolsa-esmola.

H. C.: Mais curioso ainda é que esses críticos do governo são os que mais se beneficiam dele, da sua política econômica baseada na elevação dos juros para conter a inflação. Estratégia ineficaz, por sinal, porque a inflação já sinaliza 8% ao ano. Vejamos a quem serve a elevação dos juros. Em 2015, o Bolsa-Família vai alocar R$ 25 bilhões. No mesmo ano, o governo gastará em amortização de juros da dívida pública interna mais de R$ 1 trilhão. Para ambos o dinheiro vem de arrecadação de impostos. Só que o Bolsa-Família beneficia 40 milhões de pessoas. Do outro lado, um número diminuto de brasileiros - umas 200 mil famílias, cerca de 1 milhão de pessoas - e mais um punhado de especuladores internacionais que detêm os títulos da dívida pública vão ficar com o R$ 1 trilhão. É bom repetir: para 40 milhões de pessoas, R$ 25 bilhões; para 1 milhão de pessoas, 40 vezes mais, R$ 1 trilhão. Isso nos leva ao começo de nossa conversa: o modelo tributário brasileiro tributa fortemente a classe média e os mais pobres e concentra a renda na aplicação dos recursos federais. E assim voltamos ao Brasil Colônia e à tradição oligárquica de nosso sistema tributário, que continua a beneficiar os poucos de sempre e drena os recursos que deveriam ser alocados em saúde, educação, etc. A única diferença é que a coroa não fica mais em Lisboa.

O ministro Joaquim Levy disse que algumas empresas brasileiras não gostam de pagar imposto. Alguém gosta?

H. C.: É dever de toda sociedade entender que a tributação é também o que a constitui. Não existe sociedade sem tributo, porque é ele que proporciona ou deve proporcionar a existência das políticas públicas. Sem tributação não podemos prover as escolas e universidades públicas, saneamento básico, hospitais. O discurso de sonegar em legítima defesa é um erro. Os mais pobres e a classe média estão comprando uma ideia da qual não podem participar, porque a tributação sobre eles é compulsória e inescapável. Quem pensa assim na verdade conecta a sonegação à corrupção, à lavagem de dinheiro e a práticas exercitadas pelos segmentos mais afluentes, os muito ricos e as corporações. A população deve exigir uma simplificação do sistema tributário e zelar pela arrecadação de tributos, porque ela será a beneficiária direta de um modelo que todos gostaríamos de ver aprimorado.

Esta semana a Câmara aprovou a ampliação da terceirização no mercado de trabalho. Isso tem relação com a questão tributária?

H. C.: O que temos aí é um desdobramento do que falou o ministro Levy. São empresas que não gostam de pagar imposto tentando reduzir a capacidade de o Estado tributar e tentando vulnerabilizar os direitos sociais e trabalhistas. A população deve ver com cautela essa iniciativa. Espero que haja bom senso ainda no âmbito parlamentar para que esses prejuízos sejam minimizados. Porque se trata justamente de uma busca de segmentos econômicos poderosos. É um retrocesso constitucional aviltante. E o governo está desestruturado, sem forças para resistir a esse ataque.

Qual a sua avaliação a respeito do Imposto sobre Grandes Fortunas?

H. C.: Sou favorável. Mais por seu caráter simbólico do que por seu poder arrecadatório. A regulamentação desse imposto sinalizaria uma importante inflexão na política tributária brasileira. Não é inteligente que ele tenha efeito confiscatório, com alíquotas muito altas. Taxar as grandes fortunas representaria um incremento modesto na arrecadação. Que ele arrecade R$ 10 bilhões ou R$ 20 bilhões. É pouco (a arrecadação total em 2014 foi de R$ 1,2 trilhão). Provavelmente supriria a elevação do preço dos combustíveis que neste momento atinge toda a população e tem impacto na inflação. Mas seu potencial simbólico transcende a arrecadação. Sinalizaria à população que o Estado brasileiro se preocupa com a justiça fiscal. Além das grandes fortunas nós precisamos tributar mais fortemente o capital especulativo e os lucros dos bancos. O lucro é compreensível. O que não tem explicação é a tributação baixa sobre esses lucros. Os bancos são concessões de serviço público. Eles funcionam mediante autorização do Estado brasileiro. Por isso não precisamos ter tantos pruridos em falar de aumentar a tributação sobre os lucros bancários. Um banco com lucro líquido de R$ 10 bilhões ao ano não vai quebrar se esse lucro for tributado em R$ 5 bilhões; ele vai continuar sendo grande, potente e saudável. Uma tributação de 50% sobre o lucro líquido de um banco é perfeitamente razoável. E, repito, não se trata de uma questão ideológica. É a aplicação do princípio constitucional da capacidade contributiva. Hoje, a tributação sobre o capital financeiro representa só 2% do bolo tributário. Um absurdo.

Imaginando que um “afortunado” possa espalhar sua fortuna com parentes para escapar do imposto, não seria custoso demais correr atrás desse dinheiro?

H. C.: De fato existem mecanismos para tentar burlar a tributação. Mas também temos um bom sistema de cruzamento de informações que facilita a identificação da burla e das grandes fortunas. A CPMF era um mecanismo interessante de controle de movimentação financeira. Não como ferramenta de arrecadação, mas por permitir que aferíssemos movimentações suspeitas e detectássemos esquemas de lavagem de dinheiro e de sonegação. Por isso é que ela foi extinta.

Governos de esquerda, direita, centro, neoliberal de fato, neoliberal de fachada. Ninguém regulamentou o Imposto sobre Grandes Fortunas. O sr. acredita que um dia acontecerá?

H. C.: Sem um amadurecimento do debate, sem uma conscientização da cidadania, nós ainda levaremos um tempo grande para que o sistema tributário seja mais justo. Enquanto a sociedade estiver mais preocupada em discutir costumes do que o cerne do Estado brasileiro, que é essa política econômica gerida de forma catastrófica, nós não teremos nenhuma perspectiva de mudança no sistema tributário. O Imposto sobre Grandes Fortunas não é uma panaceia, uma opção definitiva. Mas ele simbolizaria fortemente uma vontade de mudar, de mexer estruturalmente no País. Chamaria atenção para a alta concentração de renda no Brasil e para a política econômica que é muito concentradora de renda. Por isso ele não foi instituído até hoje.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 12 de abril de 2015 – Pgs. E2-E3 – Internet: clique aqui.

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