POR QUE DEUS VOLTA À CENA?
Roberto
Esposito
La
Repubblica
30-03-2015
"Parece
delinear-se uma nova aliança entre política e teologia"
Roberto Esposito - filósofo italiano |
Após longa pausa de relativa
autonomia, política e religião voltam a cruzar as próprias trajetórias com
efeitos inquietantes, de que os trágicos acontecimentos de Paris e Túnis constituem
os últimos episódios. A condenação mais intransigente dos atentadores e a
reivindicação da liberdade de expressão em todas as suas formas é a única
resposta adequada. Mas isso está bem distante de esgotar uma questão que é mais
profunda, e que diz respeito ao nó que há algum tempo se vai apertando entre
teologia e política.
A tese tradicional do progressivo fim
das religiões no mundo moderno, promovida pelos sociólogos da secularização,
choca-se com dados de fato, cada vez mais evidentes. Conforme já havia
argumentado em seu tempo Gilles
Kepel em A revanche de Deus: Cristãos, judeus e muçulmanos na reconquista do mundo (título original francês: La revanche de Dieu: Chrétiens,
juifs et musulmans à la reconquête du monde. Paris: Seuil, 1991 – sem tradução em português) , a
identificação entre modernidade e laicização de forma alguma é óbvia. Frente ao
que foi definido como “eclipse do sagrado”, pareceu opor-se o seu
“ressurgimento”.
O
primeiro sinal da inversão de tendência foi a revolução khomeinista no Irã, seguida por uma retomada do fundamentalismo
religioso, em formas muitos diversas, mas convergentes por reabrirem um cenário
teológico-político que parecia fechado para sempre. Sem a pretensão de tornar
idênticos fenômenos bem diferenciados:
·
o integralismo da direita conservadora norte-americana,
·
o catolicismo anticonciliar [contra as inovações do Concílio Vaticano
II] e
·
a linha mais ortodoxa do sionismo hebraico
já questionavam, em mais de uma direção, o esquema da
distinção liberal entre a esfera pública e a esfera privada da religião.
A explosão do extremismo islâmico conferiu um elemento de absoluta dramatização a
esse quadro, mas não deve ser isolado dele.
Não é
por acaso que a questão da teologia política voltou nos últimos anos ao centro
do debate internacional. Se nos Estados Unidos livros como:
·
The
Faith of the Faithless [A fé dos incrédulos], de Simon Critchley (Verso Books, 2012),
·
Crediting
God [Dar crédito a Deus], organizado por Miguel Vatter (Fordham
University Press, 2011) ou
·
The Power of Religion in the
Public Sphere [O poder da religião na esfera pública], organizado por E. Mendieta e J. Vanantewepern, com ensaios de Butler, Habermas, Taylor (Columbia
University, 2011),
estão
monopolizando a discussão, também na Europa a relação entre teologia e política
se tornou um dos temas dominantes. De Habermas a Taylor, de Zizek a Badiou, de Cacciari a Tronti, a pergunta pelo papel da teologia na
sociedade atual está monopolizando a atenção. A religião contribui para gerar ou para moderar a violência? É fator de
coesão social ou de conflito?
A
resposta de forma alguma é óbvia. Como se depreende da Encyclopedia of Wars de Charles Philips e Alan Axelrod,
que analisa 1763 conflitos na história, menos
de dez por cento dos mesmos foi causado por motivos religiosos. Se as
Cruzadas, as guerras entre católicos e protestantes, as primeiras conquistas
islâmicas e obviamente os atuais ataques jihadistas mostram um claro
envolvimento da religião na violência, o número de mortos atribuível a
conflitos de tipo laico, como as duas guerras mundiais, continua sendo muito
superior. Não nos esqueçamos que o primeiro
genocídio moderno, o dos armênios, foi perpetrado por Jovens Turcos
filo-ocidentais e secularizados, enquanto devotos muçulmanos procuravam salvar
os sobreviventes.
Uma
resposta do caráter dialético a tal pergunta foi agora proposta pelo psicólogo
social Ara Norenzayan [Princeton University, 2013], num importante ensaio
intitulado Big Gods: How religion transformed cooperation and conflict [Grandes deuses: Como a religião transformou cooperação
e conflito – sem tradução em português]. A tese do autor consiste em que as
grandes religiões favoreceram a socialidade por causa do temor suscitado pela
vigilância de um Grande Olho divino
sobre o comportamento dos seres humanos. Enxertando-se em tendências inatas
voltadas para a autoconservação, as
religiões inicialmente cumpriram uma função de agregação social.
Sucessivamente, porém, elas se
diferenciaram entre si ao entrarem em competição. Nesta luta pela sobrevivência, não diferente daquela darwiniana entre
as diversas espécies, acabaram por prevalecer as religiões que eram
capitaneadas por divindades onipotentes e intervencionistas. A partir daí,
aconteceu uma inversão da função originária socializante para uma tendência conflitual, ativada,
sobretudo, pelos monoteísmos, objetivamente concorrentes na identificação de um
único Deus exclusivo frente a qualquer outro.
A
partir desse momento, os efeitos históricos das religiões acabam tornando-se
diversos e ambivalentes com base em fatores de caráter histórico e contextual
sobre os quais não é possível emitir avaliações unívocas. Do seio da religião
podem nascer o Dalai Lama e Osama Bin Laden.
Certamente as sociedades modernas mais avançadas, como aquelas da Europa do
Norte, são capazes de criar mecanismos de cooperação sem a ajuda do Grande Olho
divino. Temos assim um problema resolvido? Pelo que acontece no mundo, dir-se-ia
que não. No que diz respeito à área
islâmica, a retomada das tendências mais radicais é visível a todos. Mas
nem sequer nas sociedades ocidentais, mesmo sendo admitida por todos em linha
de princípio, tal distinção parece resistir a uma série de dinâmicas
correlatas.
Por um lado, a globalização rompeu as fronteiras entre diferentes civilizações,
injetando dentro dos países ocidentais quantidades crescentes de culturas
dificilmente integráveis. Por outro, o regime biopolítico em que vivemos há
tempo, especialmente com o desenvolvimento das biotecnologias, rompe os
tabiques entre público e privado sobre questões relativas não só à origem e ao
fim da vida, mas também à saúde, à segurança, à ecologia – todas
contemporaneamente públicas e privadas, individuais e coletivas.
Sob este aspecto, parece delinear-se
uma nova aliança entre política e teologia. Não tanto porque na crise de
legitimação da autoridade, o núcleo de sentido conservado pelas religiões pode
cumprir uma função de ajuda, mas porque, num
mundo orientado cada vez mais para um domínio absoluto da economia, a teologia
parece representar, para massas cada vez maiores de seres humanos, a única
alternativa, a única potência capaz de resistir à lógica anônima do mercado
global. No momento em que se afirma uma nova forma de “teologia econômica”
do débito se a este propósito o recente volume organizado por Thomas Macho [Wilhelm Fink Verlag, 2014] sob o
título Bonds. Schuld, Schulden und
andere Verbindlichkeiten [Bonds. Dívida, dívidas e outros passivos] - a filosofia contemporânea olha para
uma nova forma, não mais de teologia política, mas de política da teologia.
Traduzido do italiano por Selvino J. Assmann. Algumas adaptações foram feitas à tradução por Telmo José Amaral de Figueiredo. Para acessar o artigo na versão original,
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Fonte: Instituto
Humanitas Unisinos – Notícias – Terça-feira, 7 de abril de 2015 – Internet:
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