SÍRIA: UMA TRAGÉDIA ESQUECIDA PELO MUNDO!
“Nunca mais” aparentemente não se aplica à Síria
Fred Hiatt
The Washington Post
Editorialista e Escritor
Obama, como Clinton no
caso de Ruanda e de Bush no de Darfur,
se limita a olhar sem fazer nada para
tentar acabar com a matança de civis
Um dos legados mais surpreendentes do presidente Barack
Obama poderá ser o fim da aspiração da política externa americana resumida na
afirmação "Nunca mais". Com isso, não estou afirmando que Obama é o
primeiro presidente que se limita a olhar sem fazer nada para as atuais
atrocidades. Não é.
Assim como ele assistiu passivamente ao desenrolar dos
acontecimentos na Síria, enquanto centenas de milhares de pessoas morriam e mais de 11 milhões - ou seja, metade da
população - eram obrigadas a abandonar seus lares, Bill Clinton nada fez
para acabar com as atrocidades em Ruanda e George W. Bush não conseguiu deter
as matanças na região de Darfur, no Sudão.
Clinton, porém, expressou seu remorso pela falta de ação em
Ruanda. Os americanos pediam nas igrejas e nas sinagogas que Bush fizesse alguma coisa para "salvar Darfur". Faltou
vontade política, mas havia ao menos uma sensação de desconforto, até mesmo
vergonha, pelo fato de os EUA não se mexerem diante do massacre de tantos
inocentes.
Crianças sírias morrem após um possível ataque com gás tóxico executado pelas forças do regime de Bashar Assad na cidade de Arbeen, em Damasco Comitê Local de Arbeen/AP |
Os quatro anos de
descida ao inferno da Síria, uma das três calamidades insistentemente previstas
que provavelmente poderia ter sido evitada, mereceu pouca reflexão. Por que
a mudança? É verdade que na Síria morreram menos pessoas (220 mil) do que em
Ruanda (mais de 800 mil), em um espaço de tempo mais prolongado. No entanto, esta é a catástrofe humana mais
horrenda dos últimos 20 anos, afirmam funcionários americanos.
Valerie Amos,
subsecretária-geral da ONU, escreveu recentemente no Washington Post que cidadãos sírios "foram expulsos de suas
casas pelas bombas, torturados, submetidos a abusos, deixados sem água e comida
e assistência médica. As famílias foram destruídas. Em cada visita, eu
perguntava a mesma coisa: por que ninguém se importa?" Hoje, a eterna resposta de Washington a
essas perguntas é que o mundo não está fazendo nada, pois não há nada que se
possa fazer. Muçulmanos matam muçulmanos, sunitas odeiam xiitas e o mundo
civilizado deve ficar à margem lamentando, até que a febre desapareça.
Esse é o argumento
sempre invocado para justificar a falta de ação. Nós o ouvimos a respeito
dos tutsis e dos hutus em Ruanda, e dos sérvios e dos croatas nos Bálcãs. E
sempre se revela falso. Se esses ódios são tão antigos e implacáveis, por que
as pessoas não se matavam reciprocamente alguns anos atrás e por que as pessoas
nos Bálcãs não se matam hoje? As forças políticas desencadeiam ódios, e as
forças políticas podem - muitas vezes com maior dificuldade - reprimi-los.
Criança síria atingida por bombardeios executados pelo ditador Bashar Assad em hospital, ao lado encontra-se sua mãe |
Obama teve inúmeras
oportunidades para empreender ações que poderiam ter prevenido os crimes contra
a humanidade que continuam sendo cometidos. Quando o ditador sírio Bashar
Assad começou a combater o que começara como um movimento pacífico pela
democracia, Obama poderia ter autorizado o treinamento de uma resistência
moderada, multissectária.
Quando Assad passou a
despejar bombas sobre edifícios de apartamentos repletos de crianças Obama
poderia ter destruído os helicópteros do líder sírio ou armado a resistência
com o que fosse necessário para fazê-lo. Com os aliados, ele poderia der
dado cobertura aérea a uma zona de segurança no norte da Síria onde as pessoas
pelo menos pudessem encontrar algum refúgio dos ataques de Assad.
Muitas pessoas, até
mesmo seus assessores, o alertaram que a falta de ação permitiria que os
extremistas ampliassem sua influência. Agora, a concretização das previsões
- a presença de extremistas - fornece mais um pretexto para a inação.
"Daqui a alguns anos, o mundo olhará para trás e perguntará por que tantos
de nós fizeram tão pouco?", escreveu recentemente o ex-premiê britânico Gordon Brown. Nenhuma das ações que
Obama poderia ter adotado estaria isenta de riscos ou garantiria o sucesso.
Quase por definição, esses problemas são difíceis - por isso Clinton e Bush
também deixaram de agir. A diferença, no
caso de Obama, é sua resoluta defesa da falta de ação.
Campo de refugiados de Yarmouk - Damasco - Síria Uma multidão de famintos, doentes e desesperados em meio às ruínas da cidade destruída |
Pouco após ser reeleito, numa entrevista à revista New Republic, ele perguntou: "E
como eu poderia comparar as dezenas de milhares de pessoas mortas na Síria às
dezenas de milhares que estão sendo assassinadas no Congo?" Depois, em
2013, falando na ONU, ele justificou a hesitação dos EUA na Síria afirmando que
a defesa da democracia e dos direitos humanos não é um dos "fundamentais
interesses" dos EUA - ao contrário, por exemplo, de garantir "o livre
fluxo de energia". Alguns poderão aplaudir esse realismo impassível.
Afinal, de que valeu para os tutsis o fato de Clinton ter admitido o erro? É
melhor que o povo aprenda a não esperar dos EUA um socorro que nunca chegará.
No entanto, se
impedir o genocídio e os crimes contra a humanidade deixou de ser um ideal
americano, com certeza desistimos de algo muito valioso. O próprio Obama
parece pouco à vontade com as implicações de sua doutrina. Este mês, ele
afirmou a Thomas Friedman, do New York Times, que "é de interesse
fundamental que as crianças não sejam atingidas por bombas e deslocamentos em
massa não ocorram". Talvez o sucessor de Obama leve essas palavras a sério
e trate de pô-las em prática.
Traduzido do inglês por Anna Capovilla.
Fonte: O Estado de S.
Paulo – Internacional / Visão Global – Sexta-feira, 24 de abril de 2015 –
Pg. A14 – Internet: clique aqui.
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