«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

sábado, 11 de junho de 2011

VALORIZAÇÃO DA VIDA


Rabino Michel Schlesinger*

Uma interpretação contemporânea da passagem bíblica que descreve o sacrifício de Isaac, ou “o aprisionamento de Isaac”, como o nome hebraico akedá sugere, nos oferece uma ótima oportunidade para analisar o valor que o judaísmo atribui à vida. Histórias semelhantes podem ser encontradas em outras culturas. Na tragédia Medeia, de Eurípides, do quinto século antes da Era comum, uma feiticeira estrangeira, que foi rejeitada pelo marido, resolve se vingar dele, sacrificando seus dois filhos. O cristianismo antigo se baseia na história de Deus, que sacrifica seu único filho para salvar a humanidade das consequências do pecado. Assim está escrito na bíblica cristã (João 3:16): “Deus amou tanto o mundo que deu o seu único filho”.

Mas a história da akedá apresenta desafios únicos. A ideia de um Deus que ordena a um pai que prenda e sacrifique seu próprio filho é assombrosa. Deus, que sempre está associado à ideia de justiça e amor, demonstra sua face mais cruel ao exigir do homem o inumano. Intérpretes clássicos e contemporâneos debateram exaustivamente o assunto. Por meio de midrashim, alegorias rabínicas, pensadores de diversas gerações buscaram justificar a ordem de Deus. A leitura literal da história sugere que se tratava de um teste. Assim está escrito: Vehaelohim nissa et Avraham, e Deus colocou Abraão à prova. Dessa maneira, Deus queria saber se o patriarca tinha fé absoluta, e ele passou no teste em que outros talvez seriam reprovados.

Outra possibilidade foi explorada. Talvez toda a história seja um protesto contra sacrifícios humanos. Assim como os primeiros filhotes do gado eram oferecidos a deuses, havia uma prática recorrente de oferecer o primeiro filho em altares de sacrifícios. Dessa maneira, toda a narrativa tem por objetivo marcar a noção de que israelitas não realizam sacrifícios humanos.

Seria o objetivo da passagem bíblica ensinar que a voz de Deus deve estar acima da consciência humana? Quando Ele nos ordena algo, mesmo que nos pareça absurdo, devemos seguir cegamente? Algo que o filósofo Kierkegaard, teólogo dinamarquês do século 19, chamou de “suspensão teológica da ética”. Esta possibilidade assusta muito porque abre as portas para um fanatismo sem fronteiras. Acredito em um judaísmo que prega justamente o contrário. A religião não anula a consciência humana.

Uma interpretação surpreendente para o sacrifício foi sugerida por Theodore Reik, psicanalista austríaco que viveu no início do século 20. Reik traçou um paralelo entre a história da akedá e os rituais de passagem em diversas sociedades antigas. Um menino que abandonava a infância e se tornava adolescente era afastado da companhia de mulheres e submetido a alguma experiência de ameaça a sua vida. Depois disso, era recebido como um homem capaz de assumir responsabilidades dentro de sua tribo. Segundo esta possibilidade, o “aprisionamento de Isaac” foi uma cerimônia antiga de Bar-Mitzvá (ritual de maioridade judaica do menino, que ocorre aos 13 anos de idade), semelhante aos rituais indígenas de nossos dias.

Judeus que sofreram perseguições, em gerações posteriores, leram a akedá de outra forma. Comunidades medievais perseguidas enxergavam a si próprias como reproduções do drama de Isaac; sem, no entanto, contar com a voz redentora que ordenou a Abraão largar a faca, poupando a vida do seu filho. Existe ainda um midrásh sugerindo que Issac foi efetivamente sacrificado e depois ressuscitou. Nossa tradição religiosa pluralista permite que não escolhamos uma única interpretação como correta. Ao contrário disto, o judaísmo nos convida a aceitar diversas interpretações e a criar as nossas próprias.

Gostaria de sugerir uma leitura particular da akedá e retomar a leitura literal da história que diz: Vehaelohim nissa et Avraham, e Deus colocou Abraão à prova. Em minha opinião, o aprisionamento de Isaac foi um teste de Deus, e Abraão foi reprovado. Deus queria verificar se aquele homem crente era capaz de colocar seu humanismo no mesmo patamar de sua fé, e Abraão falhou. E por que Deus fez esse teste? Porque sabia que, nas futuras gerações, muitas pessoas fariam crueldades em nome d’Ele.

Vivemos em um mundo em que o fanatismo religioso é uma realidade em todas as tradições. A história do sacrifício é, a meu ver, um alerta poderoso de que devemos ser pessoas de fé, escutar e seguir a voz de Deus e, ao mesmo tempo, permanecer humanos. Nossa crença em Deus não pode suspender nossa ética.

Se prestarmos atenção aos chamados de Deus, perceberemos que eles caminham em um só sentido. Nossa tradição religiosa valoriza a vida acima de tudo. A cultura judaica vê na família a instituição mais sagrada que existe. O amor ao próximo é um bem inquestionável.Que possamos ouvir as ordens de Deus e, quando sentirmos que alguma delas se opõe àquilo que nossa consciência nos diz ser correto, não escutar pode significar ser aprovado no teste da vida.

* Michel Schlesinger [foto acima] é rabino da Congregação Israelita Paulista, bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, e mestre em Talmud e Halachá pelo Seminário Rabínico Schechter, de Jerusalém.

Fonte: Revista Cultura (Livraria Cultura) - Edição 47 - Junho 2011 - Internet: http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/rc47/index2.asp?page=artigo

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