CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO: O QUE MUDOU E O QUE ESTÁ MUDANDO?
Incertezas da hora
JOSÉ DE SOUZA MARTINS*
A
crua realidade das razões de Estado e de mercado
corroeram
a utopia que nos aglutinava
Mudar. 2014 pode ser o ano de desiludidos e frustrados ativos |
O
embaralhamento do quadro eleitoral de 2014, com a alteração do elenco dos que
disputam a Presidência da República, vai muito além do que pode sugerir o
cálculo de probabilidades políticas com base na fugaz opinião eleitoral das
consultas. É compreensível, com a mudança do cenário, que se recalcule a chance
de Dilma Rousseff ante o fato de ser
também Marina Silva geneticamente
petista e ter tido quase 20 milhões de votos na eleição em que disputou o
governo já por outro partido. Marina é
residualmente Lula. Ou que se recalcule o destino de Aécio Neves, que, com a mudança, se desloca para uma posição que
lhe muda o perfil e não é mais a confortável posição de centro. Independente da opinião dos eleitores, na
hora de votar, tudo é relativo, mesmo em política.
A grande questão é saber como estão se
movendo os constituintes desses candidatos e dos partidos que por meio deles
falam e como se moverá no poder aquele que dentre eles for o escolhido. O
passado, e certamente o passado próximo, nunca deixou de influir em nosso
processo eleitoral. Não para eventualmente continuar, mas também para romper e
tentar mudar. Marina Silva personifica,
a seu modo, o que resta da eleição de Lula em 2002. Sua extração social é
dessa grande massa de órfãos do poder que se tornaram cidadãos nas entrelinhas
de um processo histórico tumultuado. Não
será estranho se o eleitor, por meio dela, cobrar os débitos de Lula.
Esse povo residual ganhou visibilidade no
período do regime militar de 1964, enquanto personagem dos movimentos sociais e, em particular, dos movimentos populares. A
redemocratização de 1986 permitiu-lhe emergir como novo e decisivo sujeito do
processo político brasileiro. Foi ele
que pesou em 2002 e ainda em 2010. O próprio fato de que duas mulheres
disputem a eleição, com real possibilidade de uma delas vencer, já é eloquente
expressão das mudanças pelas quais o País passou ao longo da história recente. A humanidade política desta eleição de 2014
é completamente diferente da humanidade política de 1889 ou mesmo de 2002.
Os novos sujeitos do processo político metamorfosearam-se. Os que não foram
capturados pelas tentações do poder e pelo conformismo cúmplice perderam a cara
e as ilusões e ganharam a máscara na identidade difusa de um querer mais difuso
ainda. As identidades corporativas estão
sendo postas em xeque.
O maior
alargamento do conceito de cidadão, nos anos recentes, não significou,
necessariamente, ganhos republicanos. Provavelmente porque faltou agregar-lhe a
educação política que de fato fizesse desse cidadão meramente conceitual o
concreto cidadão que os antigos chamavam de cidadão prestante, isto é, devotado ao bem comum por meio da
política.
A
política brasileira não se alicerça em partidos ideológicos e doutrinários, mas
em aglomerações de interesse político de relativamente curta duração. O que
acentua o protagonismo de grupos sociais
de identidades construídas sobre traços superficiais, de conjuntos humanos não
decisivos, mas influentes, que pouco têm a ver com a política propriamente
dita:
- os evangélicos,
- os sindicalistas,
- os sem-terra,
- os sem-teto,
- os ambientalistas,
- os excluídos e assim por diante.
Nesta eleição de 2014, deve-se acrescentar
os jovens e os identificados com as manifestações de 2013, um
grupo singular que capturou o imaginário dos brasileiros e que se expressa no protesto difuso. Mas que parece ter um
núcleo de consistência ao modificar, nestes últimos dias, os resultados das
pesquisas eleitorais em favor da candidata recém-chegada. Já não são os pobres e excluídos de 2002 que vão protagonizar a
eventual mudança, mas os jovens radicais da classe média ascendente. Em
1998, a esperança cultivada durante a ditadura finalmente triunfou. Em 2002 o
ressentimento acumulado com a derrota de um projeto popular alternativo teve
seu triunfo e no poder próprio sua derrota. É possível que 2014 seja o ano da frustração, dos desiludidos com as
promessas não cumpridas na eleição de 2002 e com os óbvios recuos da eleição de
2010. Porém, é ele, o frustrado ativo, que vota porque recusa. Um radical
do gesto, mas não da política ou da política apenas como teatro.
Nesse
plano, os perigos são mais do que óbvios:
- Em primeiro lugar porque o eleitorado vai às urnas consciente de que programas de governo já não são programas para governar, mas programas para ter poder.
- Em segundo lugar porque nem os candidatos nem seus partidos têm um projeto de nação.
* José de Souza Martins é
sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre
outros, de Uma sociologia da vida
cotidiana (Contexto).
O “swell” Marina
JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
A
onda de agora tem origem na mesma tempestade
que
causou as turbulências de 2013
Marina Silva - candidata à Presidência da República pelo PSB |
Há data
e hora marcados para todo mundo ficar sabendo o que a turma diferenciada já
vislumbrou desde suas coberturas: a candidatura
de Marina Silva (PSB) está surfando uma onda de opinião pública de proporções
havaianas. Será nesta terça-feira, às 18h, quanto o Estadao.com divulgar a pesquisa
Ibope que está em campo. O que ninguém sabe é quão longe a onda vai chegar.
Por
força da legislação eleitoral, o eleitor indiferenciado só tem acesso às
pesquisas registradas pelos institutos. A divulgação dos números de pesquisas
não registradas e das sondagens telefônicas diárias é punível com multa alta
pela Justiça eleitoral - para jornal, jornalista e instituto.
A lei
provocou um oligopólio informativo dos mais excludentes. Uma quantidade anormal
de pesquisas foi encomendada, mas não divulgada desde a morte de Eduardo Campos
e a assunção de Marina. Só candidatos,
partidos e operadores do mercado financeiro já conhecem os resultados - e estão
assombrados.
As
mudanças são diárias e na mesma direção. Indicam uma tendência que vai além do impacto emocional provocado pela morte de
Campos e de seus auxiliares. A tragédia foi o despertador do público para a
eleição, mas não só. Também catalisou um
sentimento difuso de insatisfação com a política, com a polarização PT x PSDB.
Ambos correm risco de afogamento, mas os tucanos foram pegos primeiro, em local
mais fundo.
O "swell" [trad.:
ondas largas sem arrebentar] Marina tem origem na mesma tempestade que
causou as turbulências de junho de 2013. Uma sensação coletiva de que é
preciso mudar, mas não se sabe bem como nem o que. Ao se reconhecer no outro, a
inquietude individual se espalha e se multiplica em muitas direções, com efeito
potencialmente devastador quando chega à praia. A praia pode ser a urna.
Ou não.
Em 2002, a onda Ciro Gomes quebrou
antes do tempo e derrubou o presidenciável de sua prancha eleitoral. Dez anos
depois, o fenômeno Celso Russomanno
parecia irrefreável rumo à cadeira de prefeito paulistano, mas se desfez tão
rapidamente quanto surgiu. Ambos se autoimolaram. O cearense destratou um
ouvinte numa entrevista; o outro sinalizou que quem mora longe deveria pagar
mais caro pelo transporte público.
Pelo histórico, Marina é também o pior
inimigo de Marina. Saiu do governo Lula ao não conseguir fazer o
que queria. Saiu do PT quando não viu o futuro que almejava para si. Saiu do PV
ao não alcançar o controle que pretendia. Saiu do projeto da Rede sem criar um
partido onde 32 outros conseguiram. Mal entrou no PSB, já provocou saídas. Não
é exatamente uma agregadora.
Mas é em momentos de insatisfação coletiva
que personalidades disruptivas [que causam rupturas, interrupções] encontram a sua chance. A onda é de Marina, e os adversários não a
enfrentarão de peito aberto. Subirão onde der e, olimpicamente, torcerão para
que faça espuma logo.
Dilma Rousseff (PT)
tem mais chance de escapar à correnteza do que Aécio Neves (PSDB), mas não está a salvo. Ela se equilibra no saldo
de popularidade que, segundo o Ibope, mantém em ao menos 15 estados, mas com
grande variância: do pico de 51 pontos no Piauí a rasos 5 pontos em Santa
Catarina.
O lugar
mais difícil para a presidente se manter no seco é o Sudeste. A popularidade de Dilma está soçobrando nos
maiores colégios eleitorais: tem saldo
negativo de 19 pontos em São Paulo, de 11
no Rio de Janeiro e de 1 em Minas
Gerais.
Pergunte aos
acreanos
Lula
diz que Marina foi candidata a presidente em 2010 porque não se reelegeria
senadora no Acre. Presidenciável, ela acabou em 3º lugar no próprio Estado.
José Serra teve lá o seu melhor desempenho no país. No Acre, seria eleito
presidente no primeiro turno. Ninguém é
governado há mais tempo por petistas do que os acreanos: 16 anos. Lá,
Marina e PT têm mais em comum do que em qualquer outro lugar.
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