Estamos criando, mesmo, uma nova humanidade?
Direitos não humanos
MASSIMO DI FELICE*
Nossa
interação com as redes digitais está criando uma nova humanidade.
As
leis dos homens valem para mediar essa simbiose com as máquinas?
As
mudanças ocorridas nos últimos dez anos em nossas sociedades têm, em sua maior
parte, uma origem comum. Elas nascem das formas peculiares de interação
proporcionadas pelas redes digitais e pelas práticas e situações decorrentes
das interações entre nós, humanos, e os circuitos informativos digitais. Nossa
dimensão social estende-se até as fronteiras da biosfera e, hoje, inclui, após
algumas dezenas de anos de conexão, não apenas atores humanos, mas um conjunto
de entidades de naturezas diferentes (vegetais, animais, minerais) que se
conectam e comunicam entre si, tornando-se todas atuantes e ativas nos diversos
aspectos do nosso cotidiano. Diante dessa nova dimensão ecológica do social nos
encontramos completamente despreparados.
O nosso
social se ampliou e não podemos mais considerar possível regulá-lo somente por
meio das práticas da política ou do direito, elaboradas apenas pelos habitantes
da polis em defesa de seus interesses. Os resultados deste ativismo regulador,
enquanto expressão de uma cegueira conceitual que não reconhece outra sociedade
senão a constituída pelos humanos, acabam sempre revelando a nossa inadequação
diante dos desafios do presente. Uma das últimas questões polêmicas foi a
levantada pelo site da Wikimedia
Foundation, a entidade que gere a Wikipedia,
a enciclopédia editada colaborativamente online, e que publicou as notificações
por meio das quais o Google informou ter eliminado alguns links existentes na
Wikipedia relacionados a determinados nomes de pessoas. O motivo da eliminação
nasceu em consequência da sentença do Tribunal de Justiça da União Europeia que
acolheu a solicitação de alguns cidadãos de retirar da internet certas
informações associadas ao seu nome no motor de busca. A instituição jurídica
europeia entendeu que tais solicitações se baseavam num tipo específico de direito,
o direito ao esquecimento. Em razão desta sentença, o Google recebeu cerca de
90 mil solicitações de exclusão que comportaram a modificação de cerca de
cinquenta páginas da Wikipedia.
O fato
é provavelmente menos grave do que parece, pois a decisão do tribunal, e a
consequente adequação do Google, não implicou o desaparecimento das páginas do
motor de busca. Ou seja, não se trata de uma retirada dos conteúdos. Os
verbetes da enciclopédia continuam acessíveis e ainda podem ser encontrados
mediante o motor de busca, só não o serão quando na busca for inserido o nome
próprio de alguém que não quer ser associado a determinados conteúdos.
Com
esta sentença, o cidadão europeu pode solicitar aos motores de busca que
eliminem dos resultados das pesquisas online alguns links que ele considera
inadequados ou comprometedores. Em consequência disso, a Wikimedia Foundation
lançou por intermédio da diretora executiva da fundação, Lila Tretikov, um alarme para a defesa da liberdade da rede. “Os
resultados precisos das pesquisas estão desaparecendo da Europa sem nenhuma
explicação pública. O resultado é um
lugar em que as informações incômodas simplesmente desaparecem”. A tais
declarações fizeram eco as palavras de Jimmy
Wales, um dos fundadores de Wikipedia: “A história é um direito humano. Eu me encontro debaixo do foco dos
refletores há bastante tempo. As pessoas falam de mim coisas boas e outras
tantas ruins. Mas esta é a história, e jamais usaria um procedimento legal como
este para tentar esconder a verdade. Acho isto profundamente imoral”.
O
próprio Google procurou distanciar-se oficialmente da sentença por meio do
porta-voz do seu escritório de advocacia D. Drummond que recentemente declarou:
“Não concordamos com a sentença; equivale aproximadamente a dizer que um livro
pode se encontrar na biblioteca, mas não pode ser incluído no seu catálogo”.
Por
outro lado, a motivação dos juízes do Tribunal
da União Europeia considerou o motor
de busca do Google uma arquitetura de manipulação das informações, que,
graças a algoritmos específicos, permite criar associações entre notícias e
pessoas revelando nesta peculiaridade, na sua opinião, o caráter artificial da
produção de conteúdos, e portanto o direito do cidadão de pedir sua
modificação.
O que
resulta evidente da complexidade das questões levantadas neste enésimo caso é
que, não só não possuímos instrumentos adequados para os novos contextos
digitais, mas que também não temos condições de compreender a qualidade dos
desafios que eles nos apresentam. Um direito que se estende aos dispositivos,
aos algoritmos, aos motores de busca e aos não humanos não pode ser baseado nas
normas que regulamentam os humanos. Se
entre nós existe uma memória capaz de esquecer ou de remover, no campo digital,
entre os arquivos e as arquiteturas interativas, ao contrário, as memórias
tendem a ser eternas, não esquecem e não apagam e, portanto, não preveem o
esquecimento. Reivindicar a supremacia do sujeito humano e os seus direitos
sobre as máquinas significa não ter compreendido a qualidade da questão.
O que
as redes e os contextos digitais nos oferecem é a condição singular de nos
encontrarmos diante de um novo tipo de
fronteira do pensamento diante da qual é preciso assumir outra atitude.
Seria necessário, em vez de colonizar o não humano, criando e aplicando leis e
normas humanas ao que humano não é, começar
a pensar a internet não como uma realidade separada, nem como um mundo virtual,
mas como um ecossistema vivo e complexo que já habitamos e que, pela sinergia
simbiótica entre a inteligência humana e a artificial, depois de já ter criado
outro gênero de social, está criando outro tipo de humanidade conectando
esta última a tudo o que existe, proporcionando-nos, desse modo, a
possibilidade de um outro tipo de futuro.
* Massimo Di Felice é
professor da USP e coordenador do Centro Internacional de Pesquisa sobre Redes
Digitais ATOPOS.
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