HOMENS - MERCADORIA
JULIANA DIÓGENES
No
impasse do tráfico de pessoas,
Brasil tenta equilibrar repressão e prevenção
Traficar
gente é comercializar o ser humano. Na tentativa de chamar a atenção para um
crime que sempre esteve presente na história mundial, o calendário mundial
ganhou uma nova efeméride. Aprovado pela Assembleia Geral da ONU em novembro de
2013, o Dia Internacional Contra o Tráfico de Pessoas, 30 de julho, estreou
nessa semana.
Para
tratar do tema, o Aliás entrevistou o
auditor fiscal de trabalho Renato Bignami, coordenador do Programa Estadual de
Erradicação do Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas do Ministério do Trabalho
e Emprego (MTE), organizador do livro Tráfico de Pessoas: Reflexões para a
Compreensão do Trabalho Escravo Contemporâneo [Edições Paulinas]. A seguir, trechos da conversa
com Bignami, que resgata vítimas de tráfico, garante a reconstituição salarial
delas e multa os responsáveis.
Renato Bignami - auditor fiscal do trabalho |
Cenário atual
“O
principal avanço hoje é que as pessoas estão começando a perceber. Esse era um
ponto crucial: a sociedade não enxergava o tráfico. Ou enxergava de maneira
muito restrita. Agora, passou a acreditar e a refletir sobre o tema. Mas o
tráfico continua tão ativo quanto antes. Há estudos que indicam que, a partir
do incremento da globalização - da década de 1990 em diante -, paralelamente
aos fluxos oficiais de comércio, também se intensificou o fluxo irregular e
ilegal. Não só de contrabando de armas e drogas, mas também, infelizmente, de
pessoas. Nenhum lugar do mundo está isento ou livre do tráfico. É óbvio que
pobreza e tráfico andam praticamente juntos. Quando a pessoa está numa situação
de extrema pobreza, não é difícil que caia numa rede de tráfico, que para ela
representa uma promessa de vida melhor. Mas o tráfico de pessoas ocorre mesmo
nos países mais ricos e desenvolvidos. Não é incomum encontrar vítimas de
tráfico em países como Suíça, Suécia e Noruega, citados como os mais avançados
do planeta.
Brasil e São Paulo
“O
Brasil é tanto um país de trânsito como de origem e destino de pessoas
traficadas. É ‘trânsito’ quando algumas redes utilizam nosso território para
trazer vítimas de um país e mandar para outro. É país de ‘origem’ para mão de
obra, exploração sexual e trabalho escravo. Origem também de brasileiros que
saem imaginando que conseguirão uma vida melhor no exterior e acabam vítimas. E
o Brasil também é ‘destino’, principalmente, das populações andinas. Quem mais
chega a São Paulo como vítimas de tráfico são os bolivianos. Em segundo lugar,
paraguaios; depois, peruanos. Se você for verificar PIB per capita, condições
de vida e de moradia, não é coincidência que a Bolívia seja o país mais pobre
da América do Sul, seguida de Paraguai e Peru. Em São Paulo, há uma situação
crônica de cidadãos andinos explorados na indústria da moda. O andino está numa
situação financeira desfavorável e ouve dizer que em São Paulo se ganha bem na
costura. Quem ajuda é o amigo, o vizinho, o parente. Muitas vezes, empresta
dinheiro para ele, que vai ter que pagar com trabalho. Na construção civil
também se encontra muito aliciamento. Outras situações se repetem: falsas
agências de emprego. Uma empresa com fachada, CNPJ e abertura para a rua recebe
trabalhadores, mas no fundo está ali para aliciar, prometer o que não vai ser
cumprido. Há ainda as falsas agências de modelo. Se for possível resumir,
tráfico de pessoas é comercializar de forma ilegal o ser humano, seja para
exploração sexual, exploração de trabalho, extração de órgãos ou adoção ilegal.
É tratar o ser humano como mercadoria.
Bolivianos em São Paulo - trabalho em costura |
Imigração e tráfico
“Se um
imigrante ouve dizer que um país é interessante de se morar, ele vai fazer de
tudo para chegar lá. É um impulso natural. Se puder entrar de forma regular e
correta no país, ótimo. Mas se essa imigração correta, adequada e canalizada
não estiver facilitada ou, pior ainda, estiver dificultada, esse imigrante
certamente vai buscar caminhos alternativos. A maioria desses caminhos implica,
em algum momento, a utilização de redes de tráfico de pessoas. Cada vez mais
tem nos preocupado a questão dos haitianos e de alguns povos africanos, que vêm
numa situação ainda não consolidada. O trabalhador haitiano, por ser imigrante
muitas vezes irregular, vem pelos fluxos incorretos. Ele não entra pela cota
que a embaixada brasileira está disposta a fornecer. Vem pelas fronteiras. Há
uma relação muito direta entre o endurecimento do controle de fronteiras e o
aumento de fluxos irregulares de imigrantes. Não acho que endurecer corrija o
assunto. Pelo contrário. Só favorece mais ainda a submissão. A solução passa
necessariamente por uma revisão do conceito moderno de fronteira e da
integração entre os povos, além da diminuição das assimetrias [desigualdades] mundiais.
Perspectivas
“Existem
os que negam a existência do trabalho escravo e os que reconhecem que existe,
mas negam sua responsabilidade pela situação. Essa segunda vertente ocorre
quando você encontra trabalho escravo em cadeias produtivas de grandes
corporações. Elas não negam a existência, mas costumam negar responsabilidade.
Outras empresas menores preferem se alinhar a discursos de determinados
políticos que, talvez para angariar mais eleitores, dizem o que agrada ao
ouvido de um nicho econômico: que trabalho escravo não existe. Tivemos
recentemente a PEC da Expropriação (promulgada em junho no Congresso, permite a
expropriação de imóveis onde houver trabalho escravo). É importante que a
sociedade não permita que a PEC reduza o conceito de trabalho escravo só para
agradar determinado setor da economia. Outro ponto importante é um sistema
nacional sólido de emprego, que faça uma intermediação correta e rápida. As
medidas de cunho repressivo também são importantes, mas me parece que, nos
últimos 20 anos, o Brasil as priorizou muito em prejuízo das preventivas. Hoje
estamos buscando esse equilíbrio.”
Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS –
Domingo, 3 de agosto de 2014 – Pg. E8 – Internet: clique aqui.
Comentários
Postar um comentário