Torquemadas de todo o mundo, uni-vos!
Fernão Lara
Mesquita
Jornalista
Adeus ao tédio do crack e da heroína.
Há muito mais emoção em explodir e ser explodido.
“Só há um deus e Maomé é seu profeta” diz
a bandeira do Estado Islâmico. “Alá é
grande” é a última coisa que ouvem as vítimas da sua truculência. Mas esses deuses absolutos têm muito pouco que
ver com aqueles outros que nasceram para explicar as maravilhas e consolar as
dores deste mundo. Só aparecem, na história da humanidade, depois que ela
aprende a se organizar pela violência.
O wahabismo, a tal “corrente radical do Islã” em que “se inspira” o grupo Estado
Islâmico, é só uma tática de assalto ao
poder, que, como o leninismo, funciona exatamente porque não põe nenhum limite à violência que
emprega para conquistá-lo e mantê-lo. Não é uma questão de sutilezas na
interpretação da palavra de deus (ou de Marx). O wahabista (como o leninista) é aquele que se dispõe a empunhar a
arma e puxar o gatilho; a torturar e estuprar filhas diante de seus pais. Os islâmicos sem mais nem menos (como
os que por aqui saltavam “o muro”) são
os que levam os tiros, os que são estuprados, os que se atiram ao mar.
Alá
o escambau!
O tamanho do prêmio é quanto
basta para explicar essa brutalidade toda. “Fazer
deste mundo o inferno é o caminho para o céu aqui mesmo, na Terra”, é o
sinal com que a realidade instalada no Oriente Médio de hoje acena. Se você tiver estômago para ser implacável
o bastante, pode se tornar o rei da sua própria arábia saudita.
Deus será você mesmo!
Só
o assassinato randômico rende a onipotência, grau máximo da embriaguez pelo
poder. Por mais unânimes, bizarras e degradantes que se tornem as demonstrações
públicas de “fé” das vítimas tentando evitar o suplício, elas nunca serão
suficientes. O fatalismo é um ingrediente imprescindível. É preciso que tudo agrida a lógica e o senso de justiça; é preciso que
não haja explicação; é preciso que não exista meio de garantir isenção ou
prevenir o pior. A onipotência alimenta-se de doses regulares de sangue.
Não há ponto de chegada. Quando todos os
“hereges” se tiverem “convertido”, os assassinos redefinirão a heresia para
continuar assassinando.
A
primeira, de todos os tempos, é a mais básica. Mate para não ser morto. É daí
que vêm os “soldados”. O resto da “mensagem” são “os meios” de cada momento. A
de hoje é a do congraçamento planetário do mal. Por que não se agora dá?
Torquemadas de todo o mundo, uni-vos! Que
venham os psicopatas e os suicidas! Adeus ao tédio do crack e da heroína.
Há muito mais emoção em explodir e ser explodido.
A
humanidade já viu isso em todos os tempos, em todas as línguas e em todas as
latitudes. Essa é a história de todos nós. A
barbárie é o padrão e o terror tem sido o instrumento universal da conquista e
da manutenção do poder desde que há memória, inclusive nessa Europa das
monarquias absolutistas que vieram crucificando, degolando e queimando hereges
até “ontem”.
Mas
desde a fatídica sexta-feira 13 de Paris há uma avalanche de tentativas de
explicação mais sofisticadas da barbárie. É um perigo, pois discutir as
“razões” de assassinatos em massa é abrir espaço para que seus autores as
forneçam e para que se apresente quem as aceite. A ideia de que a barbárie tem de ter uma “causação” racional decorre daquela crença de que o homem é
essencialmente bom e tem de haver a interferência de algo externo para
corrompê-lo. A história e a ciência apontam para o contrário. A barbárie é
que é o estado natural da espécie, e ela tende a se tornar total sempre que é
aparelhada de uma “religião”.
TRAFICANTES EM MORROS DO RIO DE JANEIRO: a mesma lógica de barbarizar para conquistar e manter o poder impera aqui e no Oriente! |
O Estado Islâmico é o
fenômeno dos morros cariocas com ambições exponencialmente multiplicadas; o crime organizado com
domínio sobre um território e amado/odiado por uma população imersa no horror
que não tem a quem mais recorrer, só que sentado em cima de um mar de petróleo.
Em que momento o chefe de uma quadrilha vira um rei e um complexo de favelas
vira um Estado nacional como o Iêmen do Sul? Historicamente a resposta tem
dependido tanto da geografia quanto da oportunidade. Lá foram a corrupção e a
guerra; aqui foi a corrupção sozinha que se encarregou dessa metade da receita.
O resto depende do tamanho do butim.
A luta pelo poder sem
limites tem uma lógica própria. Perder o poder que se instala e se mantém pelo
assassinato significa a certeza de ser assassinado. Daí o vale-tudo. A cada “chefão” morto corresponderá uma
nova guerra por seu espólio. Foi para deter a infindável espiral da
barbárie nesses infernos dentro dos quais o suicídio na flor da idade passa a
ser uma opção racionalmente palatável que a democracia foi inventada. Mas foi
preciso esperar pelo surgimento de um território isolado por um oceano de
distância do mundo culturalmente dominado pelos degoladores e torturadores de
sempre e seu aparato “religioso” para que a ideia do império da lei encontrasse
um chão onde pudesse fincar raízes sem ser arrancada, supliciada e queimada
viva à vista de todos para reafirmar o império do terror.
Fala-se, agora, num “sofisticado aparato” que teria sido
necessário para perpetrar os assassinatos de Paris. Mas o que houve de
essencialmente diferente neles dos que Al
Capone protagonizava na Chicago do século 20, dos que o PCC perpetrou em
São Paulo em 2006, ou, ainda, das chacinas endêmicas do Brasil? O problema é o inverso; é a facilidade com
que qualquer um pode perpetrar uma barbaridade, especialmente se não fizer
questão de sair vivo da experiência.
O terrorismo é um problema
crônico tanto quanto o crime organizado e diferencia-se dele muito mais pelo tamanho das
ambições envolvidas do que pelas condições que os tornam resilientes. Deus só entra
nisso como coadjuvante e confundir as coisas é fazer o jogo do inimigo.
As multidões que têm invadido a Europa não escolheram esse caminho. Gostariam
de ter ficado em casa se o Estado Islâmico não estivesse lá. A solução para os
dois problemas é uma só e a mesma. É imprescindível “ocupar os morros” e
garantir a segurança neles, ou nunca haverá paz “no asfalto”. E para isso é
necessário que todas as vítimas joguem juntas e a favor da “polícia”.
Fonte: O Estado de S. Paulo –
Espaço aberto
– Terça-feira, 17 de novembro de 2015 – Pg. A2 – Internet: clique aqui.
Como derrotar o exército de “zumbis” do
Estado Islâmico?
Gilles Lapouge
Governos e sociedades do Ocidente têm de encarar o fato
de que novas
ideias sobre a própria natureza da guerra são
necessárias
FRANÇOIS HOLLANDE Presidente da República francesa diz que o país está em guerra |
França está em guerra, disse o presidente
François Hollande e seu primeiro ministro Manuel Valls repetiu: “Estamos em
guerra”. Não é exato. É o Estado
Islâmico (EI) que está em guerra. E a França sofre essa guerra.
A
pergunta complexa é essa: como um país
pode responder a uma força que lhe faz a guerra se ele próprio não está “em
estado de guerra”? Todas as acrobacias da França ao longo do dia são
explicadas pela assimetria dessa guerra que um dos lados trava enquanto o outro
não está oficialmente em estado de guerra.
Esse
desequilíbrio beneficia o agressor, assegurando flexibilidade e surpresa. Há um
ano, o Estado Islâmico [EI] evitava, salvo em casos quase “pessoais” como o do Charlie Hebdo, atacar um “inimigo
distante”. O grupo visava ao inimigo próximo, ou seja, xiitas e regimes árabes
ímpios. Agora, sai da solidão e semeia a morte no país do inimigo distante.
Um segundo trunfo que o EI
tem em mãos
é de outra estirpe. Ele atinge a
psicologia do ser humano. Durante a guerra de 1914, ou a de 1939, os
alemães, ingleses, franceses e americanos se matavam sem fim, mas
compartilhavam emoções semelhantes. O soldado inglês tinha medo, como também
tinha medo o soldado alemão. A morte de um camarada levava seus amigos a
chorar, tanto entre alemães quanto entre americanos.
Nada
disso se verifica entre os combatentes do EI. Eles conseguiram criar uma
psicologia desconhecida. Um exemplo: geralmente, um homem, mesmo um gângster,
um bandido, ao cometer um crime procura não ser descoberto e quando é capturado
vai negar seu crime. No caso do EI, é
diferente: não só o militante não nega o crime que cometeu, mas o reivindica e
insiste em mostrar que esse crime é horrível e atroz: decapitações etc.
Coroando
esse edifício psicológico monstruoso, o uso
de uma arma nova e absoluta: a morte voluntária como martírio. E os jornais
ocidentais continuam a dizer estupidamente que os membros do EI são covardes.
Não,
eles não são covardes. Pelo contrário. Possuem
uma coragem incrível. Uma coragem repugnante, desumana, sem limite. E contra um soldado que dispõe, entre suas
armas, da sua própria morte, ninguém consegue lutar. Ora, está claro que o EI possui um enorme arsenal de camicases,
jovens fanáticos, montados como robôs e absolutamente nada os intimida. Um
exército de zumbis, regimentos de mortos-vivos, batalhões de suicidas. Nenhum
exército clássico consegue vencer esses combatentes que surgem de repente de um
outro mundo além da realidade.
Labirinto
Seguramente,
a França e o Ocidente têm razão em proclamar que os bárbaros não lhes dão medo.
Muito bem. Mas é uma mentira. Ontem, havia uma multidão na Praça da República,
em Paris, exatamente para demonstrar que não tinha medo. Mas correu um rumor de
que o EI estava atacando novamente. Em um segundo, a praça ficou deserta.
Todas
essas pessoas sem medo fugiram como coelhos, a uma velocidade supersônica. E
como seria diferente? A verdade, na guerra como na paz, é um ingrediente
essencial. A verdade é que o EI causa
medo ao homem, à civilização, à humanidade. Por que mentir? O problema de
fato é saber se conseguiremos superar esse medo.
Tudo
isso para dizer que, se respondermos à guerra com a guerra, é preciso em
primeiro lugar que os dirigentes, os estrategistas e também os soldados
compreendam que nesse episódio da
história enfrentamos um inimigo totalmente enigmático, que não tem o
comportamento, as ideias que, em toda a história, os inimigos mais ferozes
adotavam. É esse o desafio quase desumano que representa o EI.
Essas
observações têm a finalidade de esclarecer o debate que certamente terá inicio
agora e, ao que parece, foi começado pelo G-20 reunido na Turquia, mas de modo
obscuro: teremos de mudar radicalmente
toda a estratégia do Ocidente? Será preciso responder à guerra do EI com a
guerra ou por meio de modificações da Constituição francesa? Eu me abstenho de
responder a essas perguntas. Mas estou certo de que esse debate será iniciado e
ele é necessário.
Traduzido do
francês por Terezinha Martino.
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