Uma solução contra o Estado Islâmico
MUSTAFA AKYOL
THE NEW
YORK TIMES
Escritor
e Articulista
Recuperar milenar conceito islâmico pode ser antídoto
para radicalismo
Os
recentes massacres em Paris e San Bernardino, na Califórnia, demonstraram mais
uma vez a habilidade do autodenominado Estado Islâmico (EI) de conquistar
muçulmanos desiludidos. Usando uma mistura de literalismo textual e superioridade
moral, o grupo extremista consegue persuadir jovens dos dois sexos, do
Paquistão à Bélgica, a jurar lealdade e cometer violência em seu nome.
É
por isso que a ideologia religiosa do EI tem de ser levada a sério. Assim como é errado acusar o pensamento do
grupo de representar o grosso do Islã, como costuma fazer a islamofobia,
também é errado fingir que o EI “não tem
nada a ver com o Islã”, como muitos muçulmanos costumam dizer.
Na
verdade, líderes jihadistas são versados
em pensamento e ensinamentos islâmicos, embora usem seu conhecimento com
finalidades brutais e perversas.
Um
bom começo para se entender a doutrina do EI é ler a revista digital em inglês Dabiq, que o grupo divulga
mensalmente. Um dos mais contundentes artigos que li na revista foi um texto de
18 páginas divulgado em março com o título “Irja – a mais perigosa Bid’ah”, ou
heresia.
Se
você não tiver conhecimento de teologia medieval islâmica, provavelmente não
fará ideia do que irja significa. Literalmente, quer dizer adiamento. Era
um princípio teológico lançado por
alguns teóricos islâmicos durante o primeiro século do Islã. Na época, o
mundo muçulmano vivia uma grande guerra civil, com protossunitas e protoxiitas
lutando pelo poder e um terceiro grupo chamado Khawarij (dissidentes) excomungando e massacrando os dois lados.
Ante esse caos sangrento, os proponentes
da irja diziam que a inflamada
questão de quem era verdadeiramente muçulmano deveria ser “adiada” para a outra
vida. Mesmo muçulmanos que abandonassem toda prática religiosa e pecassem
muito, raciocinavam eles, não poderiam ser denunciados como apóstatas.
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Último livro de Mustafa Akyol - título: "Islã sem extremos: um processo muçulmano para a liberdade" Ainda sem tradução em português. |
Os
estudiosos que divulgaram esse pensamento ficaram conhecidos como “murija” ou, simplesmente, “os adiadores”. A teologia por eles esboçada poderia ter sido a base de um Islã
tolerante, não coercivo, pluralista.
Infelizmente,
eles não tiveram suficiente influência
no mundo islâmico. Sua escola de pensamento desapareceu rapidamente,
sufocada na memória da ortodoxia sunita como uma das primeiras “seitas
heréticas”.
Os murija deixaram sua marca no lado mais
tolerante do Islã sunita, representados pelo hanafi-maturidismo, mais popular
nos Bálcãs, Turquia e Ásia Central. Hoje,
nenhum grupo muçulmano se identifica como murjia.
Então,
por que o EI está tão alarmado com essa
velha “heresia”? A resposta pode ser encontrada no próprio artigo da Dabiq, em que os autores acusam outros
grupos rebeldes islâmicos na Síria de “irja”.
“Essas
facções não seguem a sharia, apesar de seu controle dos ‘territórios
liberados’”, acusam os redatores do EI. Em outras palavras, a acusação é de não matar “apóstatas”, não adotar punições corporais
e não forçar mulheres a se cobrir dos pés à cabeça. Os grupos que o EI
acusa de irja provavelmente não
aceitariam o rótulo.
Também
em seus textos religiosos é provável que irja apareça como heresia. Mas é
preciso reconhecer que, ao “adiar” a
imposição de religião e a punição de pecadores, esses grupos de fato estão
engajados em irja. Talvez não
pelos princípios, mas pelo pragmatismo.
De
fato, há centenas de milhões de
muçulmanos através do mundo também praticando irja, mesmo não familiarizados com o termo. Outros muçulmanos
estão sob influência cultural do liberalismo ocidental. Outros são
influenciados pelo sufismo, o ramo
místico do Islã, que tem mais foco na observância divina do que na estrita
aderência a regras e leis.
Em sua condenação à irja, o EI também visa aos muçulmanos
tolerantes.
Como um desses muçulmanos, convoco os correligionários com ideias semelhantes a
ostentar com orgulho o emblema da irja
– e renovar o conhecimento. Perdemos
essa chave teológica há mais de um milênio, mas hoje precisamos dela
desesperadamente tanto para pôr fim a nossas guerras religiosas quanto para dar
liberdade a todos.
Consciente
de que a irja é o antídoto teológico
contra ele, o EI a apresenta como falta de piedade religiosa. Ela é, porém, piedade verdadeira combinada
com humildade – a humildade que vem de honrar a Deus como o único juiz dos
homens. Na outra ponta, o fanatismo ditatorial do EI, por ele apresentado
como piedade, parece guiado pela arrogância – arrogância de julgar os outros
homens e, em nome de Deus, reivindicar poder sobre eles.
Traduzido do inglês por Roberto Muniz.
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