AQUECIMENTO GLOBAL: SERÁ QUE, AGORA, ACREDITAMOS?
Complacência e
calamidade
LEE SIEGEL*
Do mesmo modo que
facilitamos com o Ebola, continuamos a negligenciar o fantasma do aquecimento
global
Califórnia - nos Estados Unidos - enfrenta uma das piores secas de sua história |
Este pode não ser o momento para pensarmos na questão do
aquecimento global, mas na epidemia de
Ebola que aflige três países da África Ocidental, vem se disseminando pela
Europa e EUA e expôs a grande vilã da
história: a complacência. Foi a complacência que levou as autoridades
americanas a não estabelecer diretrizes para os trabalhadores da saúde
encarregados de casos de Ebola; foi a complacência que fez alguns desses
trabalhadores levarem sua vida como se não tivessem nenhuma proximidade com o
mais perigoso vírus do mundo. E foi por
causa da complacência que - pelo menos neste país - o tema do aquecimento
global foi retirado da agenda nacional.
São infindáveis os efeitos da complacência, como também não
há fim para as crises globais. As secas
continuam a atormentar o Brasil e o sul da Califórnia [nos Estados Unidos],
mas o aquecimento global - e novamente nos EUA - deixou amplamente de ser um
problema de natureza pública importante.
Esse é um fenômeno estranho porque, pela primeira vez, um
órgão governamental declarou que o aquecimento global teve efeitos funestos
imediatos sobre os atuais acontecimentos. Na
semana passada o Pentágono divulgou relatório no qual responsabiliza a mudança
climática, entre outras coisas, pelo surgimento de condições que contribuíram
para o crescimento do EI [Estado
Islâmico – grupo fanático-radical mulçumano], a nova ameaça terrorista do Oriente Médio. Com base no relatório,
climas mais quentes provocaram a seca e
escassez de água que levaram
agricultores sírios a se transferirem para as cidades, dando origem à enorme população de jovens desesperados vulneráveis
à sedução do extremismo político. As autoridades americanas esperam que a
análise alarmante do Pentágono quanto aos efeitos da mudança climática hoje
ajudem a convencer as nações mais poluidoras, onde o nível de carbono é
extremo, a assinar um novo documento para reduzir suas emissões quando se
reunirem no Peru, em dezembro, e depois em Paris, no ano que vem.
À parte a repentina e breve atenção despertada pelo
relatório do Pentágono, o aquecimento global desapareceu quase inteiramente da
agenda nacional nos EUA - ao contrário do Brasil, onde a atenção para o
problema levou o país a se tornar o que mais se empenhou no mundo para combater
a poluição pelo carbono. Uma mudança radical com relação a oito anos passados,
quando o documentário de Al Gore Uma
Verdade Inconveniente transformou a mudança climática num tema de séria
preocupação nos EUA. Hoje, quando as
eleições de meio de mandato para o Congresso [dos Estados Unidos] se aproximam, nenhum candidato que conheço
incluiu o problema do aquecimento climático em sua plataforma.
O problema é que você
não vê o aquecimento global se produzindo. A evidência de que a atmosfera
da Terra vem se aquecendo não pode ser captada por nenhum dos cinco sentidos.
Para cada evento catastrófico que os cientistas atribuem ao aquecimento global
- seca, furacões, etc., - contrapõe-se o argumento de que eventos naturais
sempre ocorreram, muito antes de os cientistas conseguirem medir a que ponto a
atmosfera da Terra está esquentando. As secas e as tempestades de areia que
destruíram a agricultura americana ocorreram na década de 1930 e não nos
últimos dez anos. E os próprios
cientistas só conseguem prever os efeitos do aquecimento global - não podem
afirmar com certeza que ocorrerão.
Lucrécio [1] escreveu certa vez que para muitas pessoas a morte é um boato. O mesmo princípio se aplica
ao aquecimento global. Você não admite
que a Terra seja mortal da mesma maneira que sabe que você mesmo é. E, como
os filósofos sempre recomendaram, mesmo que você esteja plenamente consciente
de sua inevitável extinção, não consegue
aceitar que a própria Terra um dia seguirá seu curso natural para um fim,
do mesmo modo que todas as coisas vivas. In
saecula saeculorum, diz a oração Glória ao Pai - um mundo sem fim. “Se o
inverno chegou, a primavera não estará distante”, escreveu Shelley, o mais
pessimista dos poetas. Conceitos sobre a mortalidade deprimem. A noção de que o
mundo está condenado deixa a existência sem sentido.
Lee Siegel - jornalista |
Assim, há esse aspecto metafísico do aquecimento global, um
assunto concreto. Ele tem um pé nas políticas públicas e nos eventos atuais e
outro na ideia de fim do mundo. As religiões e filosofias tornaram o mundo
objeto de investigação e reflexão. Não importa quão profundamente abordem a
transitoriedade e a mortalidade, assumem que a realidade - nosso mundo, nossa
Terra, nossa atmosfera - aguentará.
Pedir, mesmo às pessoas mais responsáveis, conscientemente
consumidas por pensamentos mortais, para aceitarem a realidade da finitude da
Terra - a Terra, a verdadeira estrutura que torna nossa transitoriedade
suportável - parece ser pedir demais.
Naturalmente, quando
os oceanos inundarem as cidades, quando as colheitas cessarem, quando as
migrações em massa deslocarem as populações, quando irromperem as guerras por
recursos em extinção e hordas desesperadas pegarem em armas - quando tudo isso
acontecer, o aquecimento global terá uma urgência tão extraordinária quanto as
decapitações televisadas. Ele nem mesmo será chamado de aquecimento global,
termo que implica um processo que ainda não se concretizou. Terá outro nome e
será como o Ebola, surgido há quase 40 anos no Congo, para o qual as empresas
farmacêuticas não tinham nenhum incentivo financeiro para desenvolver uma
vacina. O Ebola não mais nos lembra a
África, mas o que pode estar à frente no caminho, ou na porta vizinha. Calamidade é a irmã mais jovem da
complacência.
N
O T A S
[1] Tito Lucrécio Caro (em latim: Titus Lucretius Carus; nasceu cerca de
99 a.C. – faleceu cerca de 55 a.C.) foi poeta e filósofo latino que viveu no
século I a.C..
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO.
*
Lee Siegel, escritor
e crítico cultural americano, é colaborador do jornal New York Times, da revista The
New Yorker e do jornal The Nation.
Autor de “Você Está Falando Sério?”
(Panda Books).
Fonte: O Estado de S.
Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 19 de outubro de 2014 – Pg. E2 –
Internet: clique aqui.
O desafio do
bem-estar
LÚCIA
GUIMARÃES
Se todos os habitantes
da Terra chegassem ao confortável consumo de energia dos americanos haveria
mais 15 EUAs e a temperatura subiria 4°C
NASA afirma que setembro foi o mês mais quente da história |
A Nasa [Agência
Espacial Norte-Americana] anunciou recentemente que o último mês foi o setembro mais quente da história. 2014 será
também lembrado por secas recordes em
São Paulo e na Califórnia. Eventos extremos como esses, além do furacão Sandy, na costa leste americana
em 2012, são fenômenos climáticos mais frequentes e têm sido incorporados à
análise científica do aquecimento do planeta.
Um novo estudo publicado no Boletim da Sociedade Americana de Meteorologia apresenta o elo de causalidade entre as emissões de
monóxido de carbono pós-Revolução Industrial e o aumento da seca na Califórnia,
o maior produtor da agricultura americana. Liderado pelo professor Noah Diffenbaugh, da Universidade Stanford, o estudo utiliza
análise histórica e modelos matemáticos para apontar um futuro de mais secas e
mais perdas econômicas no Estado. Só este ano, a Califórnia enfrenta um
prejuízo de US$ 2,2 bilhões na agricultura e a perda de 17 mil empregos
sazonais e de meio expediente entre trabalhadores rurais.
No caso da Califórnia, há um fenômeno regional de alta
pressão atmosférica no nordeste do Pacífico que tradicionalmente bloqueia as
chuvas. Mas o professor Diffenbaugh diz que seu modelo, somado ao conhecimento
científico de condições regionais específicas, teoricamente pode ser aplicado a
outra regiões e o mesmo Boletim da
Sociedade Americana de Meteorologia apresentou conclusões sobre fenômenos
extremos na Índia. “É muito importante estudar esses fenômenos da meteorologia,
determinar sua raridade no contexto das condições antes e depois do aumento das
emissões de monóxido de carbono”, diz ao Aliás
o cientista.
Diffenbaugh gosta
de comentar que seus amigos o consideram um downer,
mensageiro de más notícias. Mas ele garante que é um otimista. “Quem acredita em termômetro tem que
acreditar no aquecimento do planeta”, costuma dizer no país onde a direita
política despreza a ciência do clima. “A janela ainda não foi fechada”,
continua. “É uma abertura mais estreita,
mas ainda podemos desviar nosso curso para um futuro de uma economia livre de
emissões de carbono nos próximos 50 anos.” O cientista acha que, se os
países se submeterem aos limites impostos pela Organização das Nações Unidas,
de aquecimento abaixo de 2°C, seu otimismo será justificado.
Noah Diffenbaugh - professor da Universidade Stanford - EUA |
Se nada mudar, o
cenário é de aquecimento de 4°C, algo sem paralelo nos últimos 65 milhões
de anos ou quando os dinossauros desapareceram. Nesse cenário, regiões mais quentes teriam verão tórrido o ano todo,
várias espécies de plantas e animais não poderiam sobreviver e delicados
ecossistemas desapareceriam.
Diffenbaugh não
gosta de falar de política, nem mesmo de seu governador, que decretou “áreas de
desastre natural” em 58 municípios na Califórnia, embora ainda não tenha
declarado o estado de seca que vem com um emaranhado de implicações estaduais e
federais. Mas Jerry Brown [atual
governador da Califórnia – EUA], que concorre tranquilo à reeleição no dia 4,
não pode evitar seu papel protagonista em uma das piores secas registrada em
seu Estado, nem tenta convencer a população de que a situação está sob
controle. Se não tivesse 76 anos, Brown talvez pudesse ser recrutado por
caciques democratas para a campanha presidencial de 2016. Vejamos: ele se
elegeu em 2010, no ano em que Obama tomou uma surra dos republicanos nas
eleições intermediárias. A Califórnia, cuja economia é do tamanho da do Canadá,
tinha um déficit de US$ 25 bilhões, que ele, com apoio dos eleitores para
aumentar impostos de quem ganhava mais de US$ 1 milhão por ano, entre outras
medidas, transformou num superávit de US$ 3 bilhões. Brown está em sua segunda
encarnação política. Na primeira grande seca que enfrentou, em 1977, pediu aos
californianos para cortarem 25% de seu consumo de água, sem oferecer recompensa
em dinheiro. Reduziu a pressão do próprio chuveiro e passou a fazer coletivas
com um copo d’água, não uma garrafa, na mesa.
Uma seca é um teste interessante de liderança. É um desastre
que se move aos poucos e, dependendo da colaboração de São Pedro, pode esconder
ou expor a competência de governadores para administrar a escassez de recursos
hídricos. “Governadores não podem fazer
chover”, lembra Jerry Brown, enquanto estuda os próximos passos do governo.
Mas governadores podem liderar.
O problema do aquecimento do planeta, lembra o cientista Noah Diffenbaugh, é que nenhum país
pode viver numa bolha de virtude ambiental. As consequências são compartilhadas igualmente por quem toma medidas
antipoluentes e quem deixa rolar. Mas ele vê no norte da Califórnia um
laboratório de combate ao efeito estufa e cita áreas relevantes de
transformação: “Temos tecnologia e pesquisa para inovar em questões como
infraestrutura urbana, comportamento e design, técnicas de agricultura”.
O professor de Stanford não tem resposta para o que
considera o desafio maior: a privação de
energia que afeta 85% da população do planeta.
Se todos os habitantes da Terra atingissem o nível de
consumo energético dos americanos, lembra, teríamos mais 15 Estados Unidos e o
cenário assustador do aumento de 4°C. “Acesso à energia aumenta o acesso ao
bem-estar”, lembra Diffenbaugh. “Não é
justo pedir aos 85% que abram mão do bem-estar desfrutado pelos 15%.” Esse
é, para ele, o maior desafio da ONU e da comunidade internacional.
Fonte: O Estado de S.
Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 19 de outubro de 2014 – Pg. E2 –
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