São Paulo merece e precisa viver o horror da falta de água
Leonardo
Sakamoto*
Leonardo Sakamoto - jornalista |
Vai ser didático para o paulistano ficar sem água. Não, este
não é mais um daqueles malditos posts irônicos. Eu realmente acredito que a
escassez prolongada terá um efeito transformador na forma através da qual
percebemos as consequências de nossos atos.
Não quero parecer leviano. Sei que hospitais e escolas vão
enfrentar crises, a economia murchará e a vida das pessoas se tornará um
rascunho da titica do cavalo do bandido. Afinal, estamos falando de milhões
concentrados em um pequeno espaço poluído e caótico dependente do sistema
Cantareira.
Mas o ser humano só se mexe mesmo quando está à beira do
abismo. E, às vezes, nem isso.
Vejamos um paralelo: diante da negação por parte de governos
e o setor empresarial, um renomado cientista declarou, pouco antes de uma das
cúpulas globais do clima, que era melhor deixar os fatos tomarem seu curso
natural, o planeta aquecer, refugiados ambientais quadruplicarem, cidades nos
países ricos serem invadidas pelo mar, a fome surgir no centro do mundo,
guerras ambientais ocorrerem. Só assim pessoas e países tomariam atitudes mais
fortes que as insuficientes alternativas atuais, como o mercado de carbono.
Situação que, no Brasil, é vulgarmente conhecida como “a
hora em que a água bate na bunda”. Porém, como não tem mais água por aqui, o
pessoal não se ligou.
O clima mudou por aqui. Não faltou cientista, ambientalista
e jornalista para dizer isso. Poucos ouviram. Não houve conscientização pela
palavra ou pelos dados, então ela será pela pedra. Pois não estamos vivendo uma
situação excepcional. Crises hídricas como essa serão comuns daqui para a
frente. Ou seja, é incompetência e irresponsabilidade mesmo.
O governo do Estado de São Paulo não fez a obras necessárias
para aumentar a capacidade de armazenamento de água, negou-se a racionar por
conta das eleições e, o pior, a debater o assunto abertamente.
Enquanto isso, o grosso da sociedade paulistana, sejam
pessoas ou empresas, ainda acredita no que aprendeu na terceira série do ensino
fundamental: de que o Brasil é um dos campeões mundial de água doce e que ela nunca
vai faltar. E usa o recurso como se a palavra “renovável'' significasse
“eterno''.
Sem contar que o país como um todo, na sanha louca de uma
visão deturpada de “progresso'', talhou tanto a Amazônia (que é a grande fonte
hídrica para a região onde está São Paulo, através do envio de umidade) que
esse fluxo sofreu impacto. O interior de São Paulo, sem ligar lé com cré,
elegeu um rosário de ruralistas que
ajudaram a derrubar o Código Florestal, contribuindo com a diminuição da
proteção ambiental.
Acho bom que falte água.
- Que as torneiras sequem.
- Que as pessoas parem de lavar seus carros três vezes por semana.
- Que a mangueira seja aposentada como vassoura.
- Que os banhos fiquem curtos.
- Que as empresas deixem de desperdiçar.
- Que o preço da água suba – porque só se dá valor para coisa cara por aqui.
- Que o governo deixe de ser negacionista, mas planeje e execute.
- Que se entenda o real valor da água.
Acredito que a São Paulo que se reerguer dessa catástrofe
será mais consciente do que aquela que temos hoje. Porque vai ver o horror de
perto.
Será uma cidade melhor. Mesmo que tenhamos que movê-la para
outro lugar.
*
Leonardo Sakamoto é
jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o
desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão.
Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para
Formas Contemporâneas de Escravidão.
Fonte: Blog do
Sakamoto – 15/10/2014 – 09h09 – Internet: clique aqui.
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