IGREJAS EVANGÉLICAS - COMO ATUAM? O QUE PRETENDEM?
As igrejas
evangélicas a caminho de Brasília
Lamia Oualalou
Jornalista
"Se Marina não
se posicionar até segunda[-feira], na terça será a mais dura e contundente fala
que já dei até hoje sobre um candidato a presidente.” A mensagem, postada
no Twitter pelo pastor Silas Malafaia
no sábado, dia 30 de agosto, tornou-se um dos principais episódios da história
política brasileira recente. Na véspera, Marina
Silva, caída de paraquedas na batalha eleitoral após a morte de Eduardo
Campos (PSB), tinha apresentado seu programa. E quebrado um tabu, propondo
defender uma legislação favorável ao casamento para todos se fosse eleita.
Na realidade, os homossexuais podem se casar desde maio de
2013, após uma decisão do Supremo Tribunal Federal. “Mas se trata de uma
jurisprudência suscetível de ser questionada por juízes conservadores. Enquanto
não temos uma lei, nossos direitos não são protegidos”, explica Jean Wyllys, único deputado federal a
se assumir como homossexual. Naquele dia, Marina pareceu ter ficado abalada e
deixou de encarnar aquela “outra política” que ela promete, e que até então vinha
sendo encantadora. Mais notável ainda é a
candidata se apresentar como membro praticante da Assembleia de Deus, uma
igreja evangélica pentecostal caracterizada por seu conservadorismo social.
[1]
Algumas horas após o
tuíte do pastor, Marina voltou atrás. O entusiasmo deu lugar à perturbação,
depois à indignação. “Você mentiu para nós, você brincou com a esperança de
milhões de pessoas, você não merece a confiança do povo brasileiro”, declarou
então Jean Wyllys, que, embora apoie
Luciana Genro (Psol) na corrida para
a Presidência, tinha saudado o programa marinista. Mas será que Marina é
próxima demais dos evangélicos? Na
verdade, os principais candidatos – a começar por Dilma Rousseff – montaram
“comitês evangélicos” para tentar seduzir esses milhões de vozes que parecem em
perpétuo crescimento.
José Eustáquio Alves - demógrafo da Ence |
Assistimos a uma revolução. Em 1970, 92% da população se
declarava católica segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE); em 2010, estes não passavam de 64,6%. Um colapso. “O Brasil é um exemplo singular: trata-se do único grande país a ter
experimentado uma mutação profunda de sua paisagem religiosa em um lapso de
tempo tão rápido”, destaca José
Eustáquio Alves, demógrafo da Escola Nacional de Ciências Estatísticas
(Ence), do Rio de Janeiro. Na origem do fenômeno, está a expansão das igrejas evangélicas, puxada pelos pentecostais e
neopentecostais, com a parte dos protestantes tradicionais (luteranos,
batistas e metodistas) permanecendo estável. Sua proporção na população passou de 5% para 22% em quarenta anos.
Com 123 milhões de fiéis, o Brasil
continua sendo o maior país católico do mundo. “Mas não por muito tempo”, lança
Alves, que calculou que os dois grupos deverão estar emparelhados até 2030.
A paisagem urbana oferece o melhor exemplo dessa
transformação. No Rio de Janeiro, a Cinelândia, onde ficam o Teatro Municipal e
a Biblioteca Nacional, deve seu nome aos cinemas surgidos ali no início do
século XX. Eles praticamente desapareceram. Em lugar dos cartazes que outrora
exaltavam Marlon Brando e Cary Grant, florescem preces a Jesus em neon e o nome
das igrejas: Igreja Universal, Deus É Amor, Igreja Mundial do Reino do Deus...
Esse é o quadro nos centros de todas as metrópoles brasileiras.
Cesar Romero Jacob - cientista político PUC/RJ |
Nas periferias, brota uma multidão de pequenas salas.
Durante séculos, a geografia das aglomerações latino-americanas se caracterizou
por uma praça central, onde ficavam a prefeitura e a igreja, mas o crescimento
acelerado das cidades, alimentado pelo fluxo de imigrantes, perturbou essa
disposição. Foi a isso que as igrejas evangélicas souberam se adaptar – uma
flexibilidade “da qual os católicos se mostraram incapazes”, sublinha Cesar Romero Jacob, professor de
Ciência Política da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
O mesmo processo se constata na Amazônia, ao longo da
fronteira agrícola em fase de ocupação, um verdadeiro faroeste. Especialista
nas frentes pioneiras brasileiras, o geógrafo francês Hervé Théry, que dá aulas na Universidade de São Paulo, testemunha
o processo de instalação. “A cada vez
que chego a um lugar que acaba de ser ocupado, há três barracos, uma farmácia e
um templo, ou seja, algo com que curar e uma fonte de reconforto moral nessas
regiões difíceis”, conta. O pesquisador encontra a mesma lógica nas
periferias das grandes cidades, esses oceanos de tijolos abandonados pelo poder
público. “Essas igrejas evangélicas
oferecem uma forma de ajuda social, lazer e uma escuta verdadeira, algo que a
Igreja Católica praticamente deixou de fazer. É uma das chaves de seu sucesso”,
completa.
Hervé Théry - geógrafo francês - USP/SP |
Templo
reservado até para os surfistas
No centro da Cidade Maravilhosa, mais de 75% dos habitantes
se dizem católicos, proporção que cai para 30% no subúrbio. No Rio de Janeiro, “é menos a pobreza que a segregação que
está na origem das mudanças”, resume Jacob.
Aqui, o caos orquestra o desenvolvimento. Construídas sem
autorização, as casas são insalubres, os postos de saúde, distantes, os
esgotos, inexistentes. O transporte está nas mãos de uma máfia ligada aos
líderes políticos locais. A segurança depende de narcotraficantes ou de
milícias recrutadas entre membros e ex-membros das forças da ordem.
Além disso, as pessoas se entediam rapidamente. Em
Queimados, na periferia do Rio, Eliana
Souza não tem nenhuma atividade para propor à filha adolescente. Trinta e
dois anos, batizada católica, ela figura entre o número de convertidos da
última década. Doméstica, passa perto de cinco horas por dia no transporte
entre sua casa e o local de trabalho, em Copacabana. Isso lhe permite ver a
praia, “onde muitos, no meu bairro, nunca puseram os pés”. Em seu bairro, ela não tem biblioteca municipal, pracinha, “nem mesmo
uma padaria”, diz. Apenas dois bares minúsculos, onde os homens engolem
seus salários em doses de cachaça.
Para Eliana, o templo evangélico vizinho não é apenas um
lugar que a acolhe no caso de uma situação difícil. Ele é também seu único
local de lazer. Ali são preparadas as apresentações para o Dia das Mães e
para o Natal, cozinha-se junto, as pessoas são encorajadas a retomar os estudos
interrompidos no primário. Ao recrutar a
filha, ela espera também poupá-la do cenário clássico das periferias: uma
gravidez precoce ou uma paixão por um garoto do narcotráfico e o abandono muito
precoce da escola.
Templo evangélico na periferia do Rio de Janeiro (RJ) |
A afluência ao templo reflete um culto atraente, bem
distante das missas repetitivas entoadas por um padre quase sempre ausente das
comunidades. Durante os cultos
evangélicos, as pessoas cantam e escutam testemunhos que têm por função
despertar uma catarse coletiva. E cada um encontra nisso seu remédio.
Enquanto o Vaticano emite uma mensagem
única, transmitida por padres que demoram muito tempo a se formar e obedecem a
critérios de recrutamento – os quais excluem as mulheres e exigem o celibato –,
no campo neopentecostal a flexibilidade
prevalece.
Qualquer um pode se declarar pastor: basta possuir certo
carisma, ter estudado um pouquinho de teologia (três meses é suficiente em
várias igrejas) e ser “chamado por Deus”. As grandes denominações, como a
Assembleia de Deus, impõem certos controles, mas o pastor ansioso para se libertar pode criar seu próprio templo e mirar
determinado grupo social com uma mensagem elaborada sob medida. Alguns
pregam a austeridade, enquanto outros exaltam o enriquecimento. Há inclusive
uma igreja destinada aos surfistas, a Bola de Neve, e a Igreja dos Atletas de
Cristo, que reúne os apaixonados por futebol. “Assistimos a um fenômeno de segmentação que obedece às regras de
marketing”, analisa Mario Schweriner,
especialista nas relações entre religião e economia da Escola Superior de
Propaganda e Marketing (ESPM) de São Paulo.
Mario Schweriner - ESPM (S. Paulo) |
Numa sociedade marcada pelas desigualdades, o apelo ao status
quo da hierarquia católica – ela reprimiu aqueles fiéis que, no seio da teologia
da libertação, raciocinavam em termos de luta de classes – encontra cada vez
mais dificuldade em se impor entre as camadas populares. “Aos discursos que acenam com o paraíso no além em troca dos
sacrifícios do presente, as igrejas neopentecostais opõem um materialismo
hedonista, que promete o sucesso aqui e agora”, explica o sociólogo Saulo de Tarso Cerqueira Baptista,
professor da Universidade Estadual do Pará.
A retórica funciona ainda mais pelo fato de que a maioria
dos políticos abandonou as tentativas de mobilização social diante da
injustiça. “Quando uma sociedade se
considera incapaz de resolver seus problemas pela via social, política e
econômica, ela acaba por lhes conferir um caráter sobrenatural: espíritos
malignos que é preciso exorcizar se instalariam por todos os cantos de nossa
vida”, analisa Baptista. Há o demônio do desemprego, que é repelido
brandindo-se a carteira de trabalho durante o culto, os demônios do álcool, do
fracasso escolar e do adultério, que fogem graças à mão salvadora do pastor.
Jesus curaria até mesmo o câncer e a aids.
No entanto, para
aumentar a benevolência, recomenda-se contribuir todo mês com o dízimo, um
décimo de seus ganhos, para o pastor. E todas as formas de pagamento são
aceitas: em espécie, cheque e até cartão. Uma prova para a maioria dos fiéis.
“Eu sei que, se estou desempregado, um irmão ou uma irmã da igreja vão me
trazer algo para comer e um botijão de gás, e me ajudarão a conseguir um
trabalho”, justifica Eliana. Ela acrescenta que os fiéis são assim levados a economizar em seus vícios, como o álcool e
o cigarro.
Alyson Flores - Joyaly (moda evangélica) |
“Pagar o dízimo equivale a selar um pertencimento, num
contexto de ausência do Estado e desestruturação da família”, analisa Jacob. Os
pastores também atraem habilmente o crescimento de poder de uma nova classe
média (40 milhões de pessoas saíram da pobreza durante a última década). Para Denise Rodrigues, professora de Ciência
Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, “o sucesso material aparece como uma prova de que Deus escolheu a
pessoa. Se um indivíduo ganha cada vez mais em sua vida, ele será tentado a
associar esse progresso à sua igreja e investir cada vez mais nela”.
A integração tem seus códigos, que geram um mercado: as
pessoas se vestem como evangélicos, ouvem música evangélica, assistem à TV
evangélica. Em São Paulo, no bairro popular do Brás, que concentra a indústria
têxtil, a moda evangélica é um sucesso, puxada por uma marca líder, a Joyaly, lançada no início dos anos
1990. “Na época, as fiéis eram obrigadas
a usar saias longas e sem corte. Foi o que levou minha mãe a criar a confecção”,
conta Alyson Flores, que gerencia a
empresa com a irmã Joyce, estilista.
“Há regras: nada de decotes, nada de transparências, e os
ombros devem ser cobertos”, explica esta última, mostrando seus desenhos. “Mas não temos mais de ficar parecendo uma
vovó. Não tem mais essa de cores escuras e roupas mal desenhadas! Eu me inspiro
nas coleções europeias e as adapto às exigências do culto”, acrescenta com
um sorriso. Nos anos 2000, a Joyaly experimentou um crescimento de seu volume
de negócios de cerca de 30% ao ano. Se ele é mais moderado hoje, é porque
trinta concorrentes passaram a disputar esse mercado. “As mulheres evangélicas são cada vez mais numerosas e seguras de si
mesmas: elas querem ser bonitas reivindicando sua escolha espiritual em
público”, celebra Alyson.
A alguns quilômetros dali, na Liberdade, o bairro japonês de
São Paulo, uma rua inteira, a Conde de Sarzedas, consagra-se ao comércio
evangélico. Ali, é possível encontrar camisetas, bonés e xícaras de café que
exaltam Jesus, mas também brinquedos evangélicos. O carro-chefe de vendas
continua sendo a Bíblia, o livro mais vendido do Brasil. “Vários de meus
clientes têm vinte, trinta delas, ou seja, fazem coleção”, explica Antônio
Carlos, o gerente da loja Total Gospel. Grande sucesso, a Bíblia da mulher propõe
preces específicas ligadas à família e ao casamento, enquanto a Bíblia
gigante, toda com dourados, destina-se a ficar exposta na sala.
Eyshila - cantora e compositora evangélica |
Jesus
nas paradas de sucesso
Num país onde a pirataria rola solta, o mercado dos discos
cristãos é uma exceção. Entre os vinte
álbuns mais vendidos, quinze são obra de cantores religiosos, católicos em
alguns casos, mas na maioria evangélicos. Para além do tradicional gospel,
louva-se Jesus ao som de samba, sertanejo, rock e rap. Os intérpretes são pastores
austeros, gordinhos com chapéu de caubói ou ninfetas com ar falsamente sábio.
Todas as gravadoras, que antes esnobavam esse nicho, criaram seu selo “gospel”,
imitando os gigantes Sony e EMI. “Quando
comecei, cantávamos em garagens. Agora todos os estúdios nos cortejam, e há
rádios dedicadas exclusivamente a nós”, destaca Eyshila, 42 anos, que está entre as muitas estrelas do mercado.
Casada com um pastor, ela percorre o país em apresentações que reúnem milhares
de pessoas em torno de seu último hit, “Jesus, o Brasil quer te adorar!”.
Eyshila assinou com a Central Gospel Music, a gravadora do
pastor Silas Malafaia.
“As igrejas evangélicas colocaram em prática uma política de
comunicação a toda prova utilizando a indústria do entretenimento”, analisa Valdemar Figueiredo Filho, professor na
ESPM do Rio de Janeiro: “Os grandes
pastores primeiro têm um templo; depois, uma rádio, uma televisão, uma
gravadora. Uma atividade alimenta a outra, e sua notoriedade aumenta”,
explica.
Edir Macedo - durante a inauguração do "Templo de Salomão" (Brás - S. Paulo) Líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) |
Foi a Igreja
Universal do Reino de Deus que mostrou o caminho. Controlada pelo bispo Edir Macedo, a igreja, que é dona
de duas editoras, uma agência de turismo e uma companhia de seguros, distribui
gratuitamente nas ruas a Folha Universal,
um semanário de qualidade com tiragem de
1,8 milhão de exemplares – contra cerca de 300 mil da Folha de S. Paulo. Acima de tudo, no entanto, ela possui, desde
1989, a Rede Record, o segundo canal de televisão do país. Na
Record, o conteúdo propriamente religioso não se limita aos programas noturnos.
A Universal prefere “alugar” horários em outros canais, prática copiada por
dezenas de igrejas concorrentes. O esquema se repete no rádio: a Universal alimenta desse modo o conteúdo
de mais de quarenta estações.
João Brant - coletivo INTERVOZES |
Figueiredo Filho calcula assim que as igrejas evangélicas controlam mais de um quarto das estações FM
brasileiras e alugam mais de 130 horas por semana de conteúdo em quatro redes
hertzianas nacionais, num nível que por vezes chega a ser caricatural: a
Rede 21, por exemplo, abre-se 22 horas por dia para os pastores. “É uma
distorção do espírito da lei”, indigna-se João
Brant, do coletivo Intervozes, que luta pela
democratização dos meios de comunicação. “Trata-se de concessões públicas, que
as redes alugam sem autorização”, prossegue, lembrando que a Constituição
normalmente não permite isso. “Mesmo que
se considerassem esses programas religiosos como publicitários, eles não
poderiam ultrapassar um quarto do tempo total de programação”, diz. Todos
os anos, o Intervozes vai até o
Congresso para exigir uma clarificação do texto. “E tropeçamos sempre no mesmo
problema: os projetos de lei são bloqueados pelos deputados cristãos”, lamenta
Brant.
Porque o coração do povo evangélico mora no Congresso. Ele
tomou a forma de uma “frente evangélica”
reunindo todos os parlamentares “irmãos de fé”, para além de sua filiação
política. No final de 2014, a frente
reunia 63 deputados (de um total de 513) e três senadores (de um total de 81).
Todas as manhãs de quarta-feira, eles se reúnem em uma sala plenária do Congresso
para orar juntos, com muitos cantos e sermões.
Uma
poderosa atividade parlamentar
Seu crescimento em poder se apoia em particularidades do
sistema eleitoral brasileiro: o número de assentos ocupados por cada formação
política decorre da soma dos votos obtidos pelos candidatos e do voto em
legenda, com o total sendo dividido pelo número de cadeiras alocadas a cada
estado. Concretamente, se um candidato reúne um grande número de votos, ele
permite a seu partido obter mais mandatos. Uma bênção para os líderes
carismáticos, em particular para aqueles que têm acesso à televisão. Eles são
chamados puxadores de voto.
O sistema beneficia
todas as pessoas famosas, para além da área evangélica. Assim, em 2010, o
deputado federal mais votado do país, com 1,35 milhão de votos, foi o
comediante Tiririca, sem nenhuma experiência política. O número elevado de
votos que ele obteve permitiu a eleição de quatro deputados de sua coalizão,
que sozinhos não teriam conseguido. Presentes
na televisão, portanto conhecidos, 270 pastores disputarão este ano um mandato
de deputado federal, batendo o recorde de 2010, quando eles eram 193. Dessa
maneira, eles esperam aumentar sua presença em 30%, para chegar a 95
parlamentares.
Pastor Silas Malafaia - Assembleia de Deus Vitória em Cristo |
Essa lógica facilita a cooptação de religiosos. Até porque
se junta aí outro elemento: a confiança. “Um
irmão vota em outro irmão”, resume Denise
Rodrigues. Um adepto de uma igreja evangélica é visto como mais “confiável”
pelos fiéis. Mais assíduos aos cultos e com frequência menos instruídos, já que
são provenientes de camadas mais populares, como mostram os trabalhos de Jacob
anteriormente citados, os membros das
igrejas evangélicas são mais sensíveis à palavra de seu “guia”.
Malafaia, o líder
da Assembleia de Deus Vitória em Cristo
que fez Marina se dobrar a um mês do primeiro turno, está consciente disso.
Perguntado sobre seu poder, ele responde sem rodeios: “Para mim, ser candidato
não me interessa. Eu gosto é dos corredores da política”, diverte-se. “No âmbito local, impomos o que queremos.
Nas últimas eleições municipais, lancei um ilustre desconhecido para o grande
público, mas importante para os evangélicos: ele esteve entre os que
conseguiram mais votos.” Em todas as eleições proporcionais (as legislativas,
principalmente), o impacto é forte. “Mas
a situação não é a mesma para os mandatos majoritários, já que os evangélicos
estão longe de representar a maioria do país. Ali, é preciso negociar”,
tempera Figueiredo Filho.
É o que os evangélicos esperam fazer. “No segundo turno,
vamos nos sentar à mesa com cada um dos dois candidatos e lhe dizer: ‘Você quer nosso apoio? Então tem de
assinar um documento e se comprometer a recusar esta ou aquela lei’. É esse
o jogo político”, assegura Malafaia.
Qualquer que seja o vencedor, ele deverá em seguida aprender a compor com a
bancada no Congresso.
A cada legislatura, os
deputados evangélicos se encarregam de ocupar postos nas comissões que tratam
de temas de sociedade. Eles têm
assim catorze dos 36 membros da Comissão
de Direitos Humanos, o que lhes permite intervir em projetos de lei
relativos aos homossexuais, ao aborto, às drogas e à educação sexual. De forma
mais discreta, podem ser encontrados na Comissão de Ciência e Tecnologia,
Comunicação e Informática (catorze dos 42 lugares), para bloquear qualquer
lei sobre concessões de rádio e televisão que possa restringir seu poder na
mídia.
Pastor Paulo Freire - preside a "bancada evangélica" Igreja Assembleia de Deus |
“Como ainda representamos apenas 15% dos deputados, fazemos
alianças com outros grupos para impor nossas posições”, explica o pastor Paulo Freire (sem relação com o
célebre pedagogo), que preside a frente evangélica. O apoio mais natural vem dos parlamentares católicos hostis à
liberalização dos costumes. Ele pode também resultar de uma compensação:
troca-se o apoio da frente do agrobusiness hoje pelo voto dos evangélicos de
amanhã. “E às vezes bloqueamos a pauta,
ficando ausentes nos dias de votações importantes para o governo, o que cria
problemas de quórum”, confessa tranquilamente Freire.
Durante o mandato de Dilma, as igrejas evangélicas obtiveram
assim a retirada de circulação de um kit educativo anti-homofobia distribuído
nas escolas, assim como de um vídeo de luta contra a aids destinado ao público
gay e lésbico. Mesma eficácia quanto à questão do aborto. “As feministas
passaram da conquista para a defesa dos magros direitos adquiridos”, assinala Naara Luna, pesquisadora da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Nos
anos 1990, 70% dos projetos de lei que tratavam do aborto iam no sentido da
legalização; nos anos 2000, 78% dos projetos iam no sentido contrário.”
Em 2010, a eleição foi dominada pelo debate sobre o aborto.
Entre os dois turnos, a pressão dos religiosos levou Dilma a publicar uma carta
na qual ela se dizia “pessoalmente” contra a interrupção voluntária da
gravidez. Este ano, é o debate em torno do casamento para todos que predomina.
“Marina Silva está segura de captar uma parte do voto evangélico, mas ela deve
tomar cuidado para não parecer muito dependente dos grupos religiosos. Caso
contrário, a rejeição de outros grupos a impedirá de chegar ao poder”, enfatiza
Figueiredo Filho.
Cortejar as igrejas
evangélicas sem amedrontar os católicos nem os leigos: eis a estratégia de
todos os candidatos. Ela já existia em 2002. Quando Lula tentou pela quarta vez alcançar o comando do país, ele
escolheu José de Alencar como
vice-presidente. O milionário não somente tinha a confiança de uma parte do
mundo empresarial como era membro do PL,
à época um dos partidos mais evangélicos. Depois, a aproximação do PT em
direção aos pentecostais não parou de se intensificar, chegando até mesmo a
associá-los ao governo. O senador
Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal (e sobrinho de Macedo), acabou recebendo a pasta da Pesca no governo
Dilma de 2012 a 2014. Ele nunca conseguiu, no entanto, se impor num mandato
majoritário – tentou ser prefeito e governador.
Dilma Rousseff e Marcelo Crivella - comício de campanha eleitoral Duque de Caxias (RJ) - 19/09/2014 |
Reação
a um país em transformação
Para Figueiredo Filho,
o clamor contra as igrejas evangélicas demonstra hipocrisia. “A intervenção dos católicos antes era
considerável, mas ela era menos visível. O bispo tinha acesso direto ao
governador, enquanto os evangélicos precisavam eleger seus deputados”, diz.
Toda a imprensa destacou a presença de Dilma e dos principais dirigentes do
país em 31 de julho na inauguração do gigantesco Templo de Salomão da Igreja
Universal, em São Paulo. As visitas ao Vaticano, em Roma, por sua vez, foram
banalizadas. “A cultura católica está ancorada na brasileira. Com os
evangélicos, assiste-se a uma mudança de estética ainda mais problemática
quando se pensa que a paisagem religiosa continua a se transformar muito
rapidamente”, conclui Figueiredo Filho.
Maria Luiza Heilborn Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos |
A rejeição da religião na vida política por uma parcela da
população – aquela que será capaz de bloquear Marina às portas do poder se ela
se mostrar mais próxima dos líderes pentecostais – pode igualmente se explicar
pelo crescimento do número de pessoas “sem religião” – que dizem não pertencer
a nenhuma instituição, o que não quer dizer que não possuam uma crença. Eles
eram menos de 1% até os anos 1970, 4,7% em 1991 e 8% em 2010. Um estudo recente
do Instituto Pereira Passos nas
favelas do Rio de Janeiro mostra que um
terço dos jovens de 14 a 24 anos se declara sem religião. No próprio seio
das igrejas evangélicas, o número de fiéis que rejeitam qualquer afiliação a
uma instituição passou de 0,3% para 4,8% entre 2000 e 2010. O fenômeno chama a
atenção dos pesquisadores. “É talvez o sinal de que certos evangélicos não se
identificam com o discurso radical dos líderes”, avança Jacob.
Mesmo que o
conservadorismo permaneça poderoso na sociedade brasileira, as manifestações
que exigem principalmente mais respeito aos direitos das mulheres e dos
homossexuais se multiplicam. As “marchas para Jesus” atraem centenas de
milhares de pessoas no país, mas as paradas gays também – com 3 milhões de
pessoas, a de São Paulo é a mais importante do mundo. Vimos até o surgimento de
igrejas evangélicas “inclusivas”, destinadas aos homossexuais rejeitados pelas
denominações tradicionais. “A violência
dos líderes religiosos, evangélicos e católicos, é também uma reação diante de
um Brasil que muda e se abre, apesar de tudo”, estima Maria Luiza Heilborn, pesquisadora do Centro Latino-Americano em
Sexualidade e Direitos Humanos (Clam), da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Paradoxalmente, é talvez porque o Brasil se torna cada vez mais
complexo que ele se questiona sobre o sentido da laicidade, e que a percepção
da intervenção política dos religiosos assume tanto espaço no debate público.
N O T A
[1] – Ler Regina Novaes, “Au Brésil, les
temples, les votes et les politiciens” [No Brasil, os templos, os votos e os
políticos], Le Monde Diplomatique,
abr. 2005.
Fonte: Le Monde
Diplomatique Brasil – Ano 8 – Número 87 – Outubro 2014 – Pgs. 7-9 –
Internet: clique aqui.
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