POR QUE FALTA ÁGUA?
O jorro do hidronegócio
SÉRGIO AUGUSTO
Como as irmãs do
petróleo, seis empresas controlam a sua,
a minha, a nossa água
Se não começar a chover em abundância a partir da próxima
semana, os paulistanos terão de pedir água de presente a Papai Noel. Se a chuva só cair sobre a capital e não na
cabeceira dos rios que abastecem o Sistema Cantareira, 6,5 milhões de pessoas
poderão ficar sem água em suas torneiras. A fonte está secando, e a culpa é menos de São Pedro que de São
Paulo; ou, melhor dito, da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico de São
Paulo), que subestimou os estragos que
as mudanças climáticas, a poluição e a extração descontrolada de recursos
hídricos vêm causando ao consumo de água, aqui e lá fora.
Revelou-se há dias que a
Sabesp sabia do risco de desabastecimento no Sistema Cantareira desde 2012, mas
só começou a encarar o problema oito meses atrás, quando criou aquele bônus
para quem economizasse água. Em 2012, limitou-se a alertar investidores da
Bolsa de Nova York para a estiagem prevista e seu impacto nas finanças da
empresa. Ainda segundo o promotor público Rodrigo
Sanches Garcia, a Sabesp captou mais
água que o autorizado para não prejudicar, acima de tudo, o valor de suas ações.
Ou seja, tratou a água como “um
negócio”, não como um bem coletivo, acusou o procurador.
O Sistema Cantareira responde por 73% da receita da Sabesp,
cujos gestores, aliás, não são os únicos culpados pela crise em curso. Haja
vista as ações civis também impetradas contra a ANA (Agência Nacional de Águas) e o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica), coniventes com o
descaso.
Enquanto rezam para São Pedro e lamentam que Joe Btfsplk,
aquele impronunciável personagem dos quadrinhos de Ferdinando que vive com um
permanente cúmulo-nimbo sobre a cabeça, não possa visitar a Bacia do Rio
Piracicaba, os paulistanos e seus vizinhos mais próximos podem fazer sua
catarse baixando da Amazon a versão
kindle de um livro esclarecedor sobre a crise da água: The Price of Thirst (O preço da sede), de Karen Piper (University of Minnesota
Press, 296 págs., US$ 14,99), lançado na semana passada. Seu subtítulo (Global
Water Inequality and the Coming Chaos = Desigualdade
e a Chegada do Caos) resume em sete palavras o caos que a má distribuição e
exploração comercial da água deverão causar em escala mundial caso nada seja
feito para sustar a ganância do hidronegócio.
Como o ar que
respiramos, a água é um bem essencial, um direito humano, reconhecido como tal
pela ONU, não uma mercadoria, uma commodity.
O que não impediu que, na semana passada, um juiz tenha secado as torneiras de
dezenas de milhares de residentes em Detroit sem grana para pagar a conta de
água, que a Sabesp tenha demorado a repassar aos clientes o que seus acionistas
já sabiam há dois anos e, pior ainda, que 20% do planeta continue sem acesso a
água potável. Assegurar a todos água
limpa e saneamento básico gratuitos é uma obrigação, um compromisso com a
sobrevivência da humanidade. Se nada mudar, daqui a uns dez anos dois
terços da população mundial terão de comprar água limpa daqueles que há tempos
sacaram que a água é o petróleo do século 21.
Água é o que não
falta. A Terra ainda dispõe da mesma quantidade de H²O do tempo dos
dinossauros; o que mudou foi sua
localização, alterada por mudanças climáticas e pela exploração do solo. Faltam sim reservatórios, açudes e
aquíferos que não estejam quase exclusivamente a serviço da agricultura ou
administrados por corporações internacionais, que se comportam como se
explorassem minerais, madeira e energia solar.
Seria ótimo se fosse possível desviar água do Solimões para
as tubulações da Grande de São Paulo. Ainda que fosse, custaria uma fortuna
incalculável. Mais fácil mover as pessoas, inventar um novo urbanismo,
construir prédios compactos e ecologicamente inteligentes, observa Karen Piper.
Isso, porém, não faz parte da agenda do Banco Mundial e do FMI, que “vendem
outros modelos de urbanização” e facilitam a prosperidade do hidronegócio, hoje comandado por
corporações sem a visibilidade da Shell, Exxon, BP, Petrobrás, mas, no seu
setor, igualmente poderosas e sedentas de lucro:
- Suez [francesa],
- Veolia [francesa],
- Thames [inglesa],
- American Water [norte-americana],
- Bechtel [norte-americana],
- Dow Chemicals [norte-americana] (sim, aquela mesma que fabricava bombas de napalm e agente laranja usadas na Guerra do Vietnã).
Juntas controlam mais de 70% da água
“privatizada”.
O New York Times
cantou a pedra em 2006. “Sede dá lucro”
alardeava o título de uma reportagem (“There’s money in thirst” = “Há dinheiro na sede”), com informações
inéditas sobre o mercado hídrico,
que àquela altura já valia centenas de bilhões de dólares. “Mais promissor que a exploração de petróleo”, concluía a
reportagem.
Amparada por quatro bolsas de estudo, Piper passou uma década viajando e recolhendo dados para seu livro.
Viu de perto como funcionam o Conselho
Mundial de Água (World Water Council) e seu fórum trienal (World Water
Forum), com representantes da ONU, especialistas em desenvolvimento, ministros
de minas e energia, chefes de Estado e, dominando a cena, os mandachuvas de
multinacionais que exploram recursos hídricos nos cinco continentes. Os fóruns
são uma espécie de Davos da água. Sempre em países diferentes, e já de algum
tempo também hostilizados por um Fórum Alternativo Mundial da Água
(Fame, na sigla em francês), que adotou um slogan em inglês: “Water for life,
not for profit”, água é vida, não é negócio.
O primeiro fórum foi em Marrakesh, em 1997. O próximo, ano
que vem, será na Coreia, e o seguinte, em 2018, em Brasília. Nada mais justo,
pois o Brasil, este paraíso hídrico cuja maior cidade está ameaçada de ficar
sem água no próximo ano, tem representação expressiva no World Water Council. Pelo relato de Piper, os fóruns não
resolvem nada. São um blá-blá-blá pomposo, regado a champanhe e caviar. Com
muita água mineral de graça para os abstêmios matarem a sede.
Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 12 de outubro de 2014 – Pg. E8 – Internet: clique aqui.
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