POLÍTICA DA DESCONSTRUÇÃO
MARIA SYLVIA
CARVALHO FRANCO*
O recurso à mentira e
à repetição persuasiva
são a tônica das
atuais campanhas eleitorais
Profa. Maria Sylvia Carvalho Franco Departamento de Filosofia USP e UNICAMP |
Em todos os tempos a violência - assassinatos, perfídias,
traições, calúnias, fraudes, maledicências de toda sorte - tece a história das
instituições políticas, culminando com as tiranias, campo por excelência da
injustiça. Modernamente, os especialistas em desmoralizar o adversário são os spin doctors, sombrios personagens encarregados de criar e difundir boatos no intuito
de “desconstruir” (no jargão moderno) o
antagonista. Sem dúvida, essa
técnica surte efeitos positivos para seus manipuladores.
No cerne dessa rede publicitária está a falácia dos
argumentos repetidos ad nauseam [até
provocar náuseas, isto é, cansar], fundados no pressuposto de que, quanto mais reiterados, mais corretos parecem e
mais eficazmente são incutidos no ânimo do cidadão, sejam verazes ou falsos.
Um bom exemplo dessa operação é oferecido pela publicidade mercantil americana,
focalizado em romance e filme da década de 1940 no qual um magnata delineia as
bases da boa propaganda: “Uma simples e
boa ideia repetida até que o público esteja tão irritado que compre sua marca
porque não consegue esquecê-la”. A seu ver, os profissionais da propaganda
temeriam perder clientela, mas, ao contrário, diz ele, “o público gosta disso
se você souber como fazê-lo relaxar e divertir-se.” (Vance Packard, The Hidden Persuaders). Note-se a
sequência: um estado de tensão, de desgosto, sanado pela experiência prazerosa.
Foi a esse modelo - a
publicidade comercial norte-americana - que Goebbels disse reportar-se ao
conceber a propaganda nazista. Com efeito, associada ao relato acima, a frase
atribuída a Goebbels, “a mentira
repetida mil vezes torna-se verdade”, insere-se em um circuito complexo de
emoções conduzindo ao consentimento. Ironicamente, foi Edward Bernays, judeu austro-americano conselheiro de Woodrow Wilson, que forneceu a Goebbels a engenharia
psicossocial que orientou suas bem-sucedidas campanhas. Ao recurso espalhafatoso das grandes reuniões e discursos ruidosos ele
associou técnicas sutis de persuasão, valendo-se da imagem, da música, do
esporte, de mensagens indiretas. Note-se que Bernays, assim como seu
associado Lippmann, partiam da
premissa de que os indivíduos, na multidão, abstraem inibições, abandonam
padrões morais, perdem a capacidade crítica e racional, tornam-se altamente
emotivos, descambam para a violência (Le Bonn). Por isso mesmo, as massas, por
meios de estímulos e reflexos (Pavlov), precisariam ser condicionadas por um
conjunto preciso de opiniões e juízos predeterminados pelos “virtuosos”. Para esses pioneiros da propaganda moderna
- pasme-se! -, tais controles seriam essenciais para preservar a democracia.
Indiferente à mentira ou à verdade, o objetivo, vender sabonetes ou eleger
políticos, é atingir o âmago do público e dirigi-lo para os fins estabelecidos.
Edward Bernays (1891-1995) |
Goebbels conhecia e admirava essas técnicas de controle e,
doutor em filosofia, estava bem preparado para acioná-las. Para ele, assim como para Hitler, os atributos das massas populares -
falta de memória, estupidez, reduzida capacidade de compreensão, intensa
emotividade - as tornavam propícias à persuasão e acarretavam a necessidade de
dirigi-las. Poucas ideias simples e essenciais devem ser intensamente
repetidas até que o último obtuso as compreenda e delas se lembre.
Nessa linha de argumentos, os métodos de Bismarck foram também objeto de interesse para Goebbels, tal como a utilização de “turmas especiais de boateiros” (Gerüchtemacher), não tardando ele em
organizar dossiês contra adversários e preparando-se para usá-los e distorcer
os “fatos” no momento azado. O insulto
insere-se nessas técnicas de desmoralização perversa.
Todos esses recursos
permanecem vivos nas práticas políticas. A avalanche de imagens insidiosas
e de impropérios - mentiroso, corrupto, incompetente, hipócrita - é espantosa e
escapa ao mínimo de civilidade.
O arcabouço teórico e as linhas de ação exploradas
atualmente pela propaganda política não têm sequer o mérito da novidade.
Descontando-se o rude despudor, as distorções estereotipadas e as premissas
diferentes, o recurso à mentira e à
repetição persuasiva pode ser rastreado por vários milênios. Platão constitui o ápice desse ideário,
embora, antes dele, a tragédia e a historiografia gregas o tenham explorado.
Seu tratamento da questão reporta-se especialmente ao adestramento do guardião,
o jovem de escol destinado a tornar-se “demiurgo da liberdade”. Sua educação
parte da constatação de que, numa polis belicosa, faz-se necessário formar o
guerreiro que, em sua gênese, deve unificar predicados contraditórios: doçura
para com os de casa, hostilidade com estranhos, articulados ao desejo de
conhecimento. O modelo dessa natureza aparentemente impossível é encontrado no
cão. A humanidade é parte da physis,
dos movimentos constitutivos do universo, ordenados e estabilizados na
composição do cosmos pelo demiurgo divino (Timeu), participando de sua dinâmica
geradora, entretecida nas coisas e nos indivíduos, em seus corpos e almas, em
suas percepções, desejos, saberes, em suas vozes e atos.
Apesar dos fortes vínculos que o unificam, a formação
compósita do cosmos abre-se para a possibilidade de sua ruptura, donde a
necessária e constante atenção a sua “sustentabilidade”. No caso do guardião, é
preciso cuidar para que não se transforme de cão de guarda em lobo devorador.
Essas figuras não formam apenas uma alegoria; elas projetam-se na própria
natureza humana, em sua efetiva lhanura e selvageria inatas, passíveis de serem
dirigidas.
Joseph Goebbels Ministro da Propaganda do Reich na Alemanha nazista (1897-1945) |
O poder das palavras, suas implicações sensíveis e seu
controle racional, o impacto que desferem ou sofrem, o modo como se cruzam e se
fecundam, determinam a retórica, circunscrevendo o enquadramento necessário à
discussão socrática sobre a escrita (inerte) e a oralidade (potente), ao mister
de operar racionalmente com esses poderes e não apenas de modo empírico. Além
do reconhecimento preciso de seu campo de atuação, definindo tanto as almas
visadas quanto as forças capazes de atingi-las, o retórico precisa regular o poder da palavra, discernindo a
oportunidade para acioná-lo ou retê-lo, contraponteando fala e silêncio,
manobrando-o eficazmente.
Esse horizonte físico-político determina a oposição
socrática entre monólogo grafado e conversa falada e também define os todos
emergentes na linguagem: esses não se formam, se desenvolvem e se mantêm a
partir de uma imperturbável teleologia inerente aos sistemas, anterior e superior
às suas partes, mas são gerados, compostos e alterados pelo jogo dinâmico dos
“poderes” que nele se entrecruzam. Nesse contexto, que envolve certa margem de
indeterminação, torna-se imprescindível a arte - política ou medicina ou
retórica- enquanto controle racional dessas forças, baseado no acúmulo e
transmissão de conhecimentos.
A importância essencial da linguagem falada atravessa o
longo percurso do treinamento do guardião, de recém-nascido a jovem militar
especializado. Assim como Sócrates se propôs formar uma polis “em palavras”,
também o guardião será produzido “em palavras”. No contexto acima lembrado, a
dinâmica produtiva operando na retórica, nem a cidade nem o guardião constituem
ficções, mas construções sociais e políticas efetivas. Não por acaso, esse adestramento inicia-se pela fiscalização das
histórias contadas às crianças por mães e amas, pelas restrições a poetas, a
Homero e Hesíodo, aos temas que poderiam, por exemplo, incutir o medo da morte
em indivíduos destinados a serem guerreiros. Nessa exposição, a insistência
no poder produtivo da palavra conjuga-se ao vocabulário das artes plásticas com
variantes de moldar, pintar, produzir.
Dessa complicada e muito discutida censura lembrarei apenas
um aspecto, a mentira. Após discutir
como ela é inútil aos deuses perfeitos, afirma que, aos homens ela pode ser vantajosa, como forma de remédio. Platão joga aí com a polissemia do
medicamento - to pharmakon -, ao
mesmo tempo remédio e veneno, cuja
administração, restrita ao médico, é interditada ao homem comum. Com isso, sua
assertiva abre-se tanto para o caráter reversível do mito, pode ser veraz ou
falso, como para o monopólio da mentira,
prerrogativa da razão de Estado: o
estadista pode mentir acertadamente para o benefício da cidade, mas não o homem
comum, réu do maior e mais destrutivo dos erros. Com tal privilégio, maquinam-se enganos oportunos, “nobre
mentira”, para persuadir mesmo os governantes (resta perguntar quem o
persuade).
A essa célebre passagem segue-se uma saga de difícil crença:
Sócrates propõe que os guardiães suponham que sua educação tenha sido
imaginária, como em sonho, mas que, na verdade, durante todo o tempo estivessem
debaixo da terra, sendo aí moldados e nutridos. Quando prontos, nasceriam da
terra, a qual, como sua mãe, seria defendida, sendo os compatriotas vistos como
irmãos. A essa tradição sobre a autoctonia e unidade ateniense segue-se o mito
sobre os componentes da cidade, com a reinterpretação do mito hesiódico das três raças, de ouro, prata e ferro. Diante dessas
proposições, o interlocutor de Sócrates pergunta se há algum modo de fazer com
que esses mitos sejam acreditados ao que ele admite que a presente geração não
o fará, mas sim seus filhos, sucessores e o resto da humanidade, guiados pela
fala reiterativa. Aí está a semente da
operação repetitiva da propaganda. Resta indicar que esse automatismo é invocado por razões de Estado e não para
interesses privativos, sendo estabelecidas cautelas, por exemplo, contra a
corrupção pelo dinheiro.
Resta indicar que a analogia do sonho e do processo
educativo tem desdobramentos que nos remetem novamente à exploração
publicitária comercial e política tendente a atingir o mais profundo dos
processos físicos, psíquicos e sociais, tendo o desejo por alvo. Introduzindo a
dinâmica da alma na exposição sobre a gênese do tirano, Platão destaca os
desejos desnecessários, ativados nos sonhos, quando a parte racional sucumbe no
sono e a parte bestial emerge e satisfaz seu próprio modo de ser,
desavergonhado, mentiroso, sanguinário. Ao contrário, o homem sóbrio, saudável,
prudente, aplaca sua parte selvagem e desperta a racional com belas palavras e
pensamentos, dormindo com visões e sonhos conformes as leis e costumes. Se a
concepção platônica dos sonhos antecipa a freudiana, inclusive na questão da
censura acima assinalada, é questão alheia a essas notas. Entretanto, vale
lembrar que o nexo entre sua concepção
de sonho e educação evidencia que os procedimentos nesta preconizados visam a
chegar, podemos sugerir, até ao inconsciente. Não será talvez ocioso indicar que Bernays... era sobrinho de Freud.
*
Maria Sylvia Carvalho Franco
é professora titular do Departamento de Filosofia da USP e da UNICAMP.
Fonte: O Estado de S.
Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 12 de outubro de 2014 – Pg. E3 –
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