«Quando devemos fazer uma escolha e não a fazemos, isso já é uma escolha.» (William James [1842-1910]: filósofo e psicólogo norte-americano)

Quem sou eu

Jales, SP, Brazil
Sou presbítero da Igreja Católica Apostólica Romana. Fui ordenado padre no dia 22 de fevereiro de 1986, na Matriz de Fernandópolis, SP. Atuei como presbítero em Jales, paróquia Santo Antönio; em Fernandópolis, paróquia Santa Rita de Cássia; Guarani d`Oeste, paróquia Santo Antônio; Brasitânia, paróquia São Bom Jesus; São José do Rio Preto, paróquia Divino Espírito Santo; Cardoso, paróquia São Sebastião e Estrela d`Oeste, paróquia Nossa Senhora da Penha. Sou bacharel em Filosofia pelo Centro de Estudos da Arq. de Ribeirão Preto (SP); bacharel em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. S. da Assunção; Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma (Itália); curso de extensão universitária em Educação Popular com Paulo Freire; tenho Doutorado em Letras Hebraicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realizo meu Pós-doutorado na PUC de São Paulo. Estudei e sou fluente em língua italiana e francesa, leio com facilidade espanhol e inglês.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O QUE HÁ ALÉM DA MORTE DE REFUGIADOS NA EUROPA?

O que não vimos

Gabriel Zacarias*

Força da foto que chocou o mundo está no que ela oculta:
Aylan era curdo e morreu porque era curdo
O pequeno Aylan Kurdi, 3 anos, jaz morto sobre uma praia
de Bodrum, na Turquia.

Foto: Nilufer Demir / REUTERS

Qual força possui a imagem do sofrimento alheio? Mostrar o horror seria mesmo o meio mais adequado para impedir que ele se repita? Polêmica antiga, presente ao menos desde que a fotografia passou a documentar os campos de batalha, e que foi repertoriada com muito talento pela ensaísta americana Susan Sontag no último livro que publicou antes de falecer, Diante da Dor dos Outros, de 2003. Motivada em parte pelo escândalo das fotos de iraquianos torturados nas prisões de Abu Ghraib, fotos divulgadas pelos próprios soldados americanos, Sontag se mostrou à época bastante cética quanto a qualquer possibilidade emancipadora da imagem fotográfica. Posição mais esperançosa demonstraram aqueles que sustentaram, nos últimos dias, a importância de se divulgar a fotografia de Aylan Kurdi, 3 anos, encontrado morto na praia de Bodrum, na Turquia. Difundida pela agência Reuters, a fotografia estampou as capas de alguns dos principais jornais do mundo, e se alastrou pelas redes sociais. Logo se seguiu uma viva polêmica sobre a pertinência ou não da publicação, julgada por alguns demasiadamente ofensiva. A aparente polarização elide o fato de que uma mesma premissa subjaz às argumentações de ambos, implícita e não questionada. Quer os que são a favor, quer os que são contra a publicação da imagem partem do pressuposto de que a fotografia mostra algo em excesso. Para os que se opõem, trata-se de uma exposição obscena da morte alheia - obscenidade acrescida por se tratar de uma criança. Os que defendem a publicação insistem na necessidade de mostrar a realidade, por mais dura que seja. Em comum acordo quanto ao caráter revelador da imagem, ambas as posições erram o alvo. A força da imagem, como tentarei argumentar, não está naquilo que ela revela, mas naquilo que ela oculta.

O que vemos, de fato, na fotografia divulgada essa semana pela agência Reuters? A imagem mostra uma criança pequena caída de bruços à beira do mar, enquanto um homem uniformizado, de costas para a câmera, parece tomar notas. O rosto da criança é muito pouco perceptível, enquanto o do homem é praticamente invisível. Não é difícil perceber que se trata de uma criança morta e de um policial que registra o ocorrido. Porém, que se trate de uma criança curda refugiada, que pereceu na tentativa de atravessar a fronteira turca com a Grécia, essa já não é uma informação contida na imagem, e que pode apenas se tornar conhecida por outros meios. Isso não altera em nada o efeito de choque da imagem, que não depende de seu contexto. Pelo contrário, a força da fotografia está, em grande parte, ligada a seu caráter genérico, no sentido forte da palavra, isto é, não apenas genérico enquanto pouco definido, mas genérico na acepção que se dava a essa palavra em filosofia, enquanto “essência genérica”, ou seja, aquilo que remete ao gênero humano.

A imagem do garoto caído à beira-mar evoca, em primeiro lugar, a dor da perda de uma criança, morte que é sempre sentida como mais injusta. Em consequência, evoca também a empatia com a perda de um filho, sentimento que é fortalecido particularmente pela posição na qual se encontra a criança, uma posição em que bebês comumente dormem. É difícil imaginar um pai ou uma mãe que possam ficar impassíveis diante dessa foto, que deixem de associar a imagem com a lembrança de seu próprio filho dormindo de bruços no berço. Muitas pessoas, incomodadas com a divulgação da imagem, mas sensibilizadas pelo fato, preferiram compartilhar nas redes sociais uma ilustração que sintetizava de maneira clara essa identificação: nela víamos o garoto curdo representado na mesma posição da foto, só que deitado em um berço [ver foto abaixo].
Desenho do menino curdo Aylan Kurdi, morto na Turquia, inspirada na famosa foto
que a imprensa mundial divulgou.
Autor: Steve Dennis via Twitter

O fato de que o rosto do garoto não estivesse visível na foto é um dado fundamental para compreender sua eficácia, pois torna a identificação tanto mais fácil. Se nela víssemos um garoto de traços étnicos específicos, uma parte do público já não mais se identificaria com ela - sobretudo porque o garoto não era caucasiano. Pode-se questionar se o europeu, principal público visado pela foto, teria nesse caso demonstrado a mesma comoção, ou se teria reagido da mesma forma caso o garoto estivesse trajado com uma indumentária típica de uma etnia não “ocidental” - como tantas outras crianças que perecem periodicamente em tentativas de travessia do mesmo mar Mediterrâneo, e cujas fotos não chegam à primeira página dos jornais.

Vemos, assim, que a própria noção de gênero humano comporta já implicitamente uma hierarquia, a empatia sendo proporcionalmente maior para com aqueles que são “como nós” do que para com aqueles que são diferentes. O que importa aqui, porém, não é fazer uma acusação de hipocrisia. Pretendo apenas sublinhar o quanto a força da imagem está relacionada à sua falta de especificidade, o que vai na contramão da argumentação padrão daqueles que, ao longo dos últimos dias, defenderam a publicação da fotografia. Para estes, seria fundamental divulgar a imagem por sua força de revelação: ela daria a ver uma realidade desconhecida, ou mesmo ocultada.

Essa argumentação reavivou alguns dos mais antigos lugares-comuns acerca da fotografia. O primeiro é aquele concentrado no adágio de que “uma imagem vale mais que mil palavras”. Assim, tudo o que havia sido escrito até então sobre a crise dos refugiados foi considerado inócuo se comparado a essa imagem, tida como muito mais significativa do que as frias estatísticas. Mas é necessário frisar essa palavra: as imagens são, de fato, significativas; e os significados que elas veiculam dependem da interação de seus elementos, bem como de seu contexto. Apesar dessa evidência, no debate público parece predominar ainda a velha crença na imagem como revelação.
Particular da famosa foto que deu o giro no mundo, retratando Aylan Kurdi de 3 anos
morto por afogamento na praia de Bodrum (Turquia)

Foto: Nilufer Demir / REUTERS

O que essa imagem mostra, porém, é justamente o contrário. Se ela tem de fato uma capacidade, maior do que a dos textos e das estatísticas, de mobilizar o público leitor em torno do drama dos refugiados sírios, tal não se deve àquilo que ela revela, mas sim àquilo que ela oculta. Ela não é uma “imagem forte” no sentido em que se emprega essa expressão no senso comum. Ao contrário do que afirmam aqueles que se opõem à publicação da foto, ela não é uma imagem explícita. Tantas fotos muito mais explícitas de crianças vítimas do conflito sírio circulam na imprensa e nas redes sociais desde que esse começou, sem lograr, contudo, o mesmo impacto.

Portanto, insisto, a fotografia que tomou as capas dos jornais tira sua força justamente daquilo que ela oculta. Ela oculta o específico. Ela oculta o fato de que aquele garoto é curdo. Ela oculta o fato de que Aylan morreu porque era curdo.

Aqueles que defendem a divulgação da foto com a nobre intenção de mobilizar as pessoas em torno do drama vivido na Síria parecem não perceber esse lado perverso. A imagem funciona como instrumento de propaganda - mesmo que para uma boa causa - precisamente porque esvazia a biografia de Aylan, porque o disfarça de garoto ocidental. A contradição é justamente que, se Aylan fosse ocidental, não teria morrido na travessia. Cai assim também outro lugar-comum bastante presente na argumentação dos que sustentaram a difusão da fotografia, e que postula seu valor epistemológico. A fotografia seria um meio de conhecimento, ela permitiria às pessoas conhecer uma realidade que ignoram, ou que não podem compreender devidamente apenas com textos e estatísticas.

Entretanto, como vimos, a fotografia é extremamente pobre em informações. Se dependêssemos apenas da imagem, não saberíamos quase nada sobre o ocorrido, e muito menos sobre a situação calamitosa na Síria. Não saberíamos que a família de Aylan Kurdi fugiu de Kobani, cidade síria tomada pelo Estado Islâmico antes de ser reconquistada pelo YPG, a milícia popular ligada ao Partido Trabalhista Curdo (PKK). Nem saberíamos que o YPG, que se provara até então o mais eficaz inimigo do Estado Islâmico na região, está agora sendo bombardeado pelo exército turco do primeiro-ministro Recep Erdogan, que, pretendendo-se um aliado do Ocidente na luta contra o Estado Islâmico, aproveita-se para, com o aval da Casa Branca, despejar mais uma vez suas bombas sobre os curdos.
Gabriel Zacarias - sociólogo
Autor deste artigo

Todas essas questões são conhecidas e, não obstante, não logram mobilizar a opinião pública da mesma forma que a foto de Aylan. É preciso, contudo, evitar a crença, um tanto ingênua, de que esse sucesso se deva a uma força intrínseca da fotografia, à sua capacidade superior de revelar a verdade, e encarar o lado menos nobre dessa mobilização. A comoção em torno da foto não se compreende se não atentarmos para o terrível esvaziamento que ela opera da alteridade de Aylan. Com efeito, Sontag propunha, no livro já citado, que as imagens atrozes comunicam pouco, justamente porque aqueles que as veem, não tendo vivido experiências atrozes, não podem compreender integralmente aquilo que elas representam.

Se a fotografia de Aylan Kurdi é tão provocadora e parece dizer tanto, talvez seja porque, na verdade, ela nos fale simplesmente da dor genérica da morte, do medo da perda de um filho, sem que por isso possa comunicar a devastadora experiência da guerra.

* GABRIEL ZACARIAS é doutor em estudos culturais pelas universidades de Perpignan (França) e Bergamo (Itália), membro do programa Erasmus Mundus, da União Europeia, e pós-doutorando em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 6 de setembro de 2015 – Pgs. E2-E3 – Internet: clique aqui.

O mundo fora dos trilhos

Entrevista com Francis Wolff

Andrei Netto

Enquanto mercadorias atravessam fronteiras com extrema facilidade,
os muros entre os homens estão cada vez mais intransponíveis
Francis Wolff - filósofo francês

No 10º distrito de Paris, próximo às estações de trem Gare du Nord e Gare de L’Est, zona conhecida - de forma pejorativa - como Little India, vivem milhares de estrangeiros provenientes de países como Sri Lanka ou Bangladesh e, em menor escala, da Índia e do Paquistão. Eles compõem, em sua maioria, uma massa de refugiados e asilados políticos que encontraram na França, suposta “terra de acolhimento e dos direitos humanos”, um porto para recomeçar suas vidas em meio ao desenvolvimento econômico europeu.

Nessa região “guetoizada” e onde é difícil cruzar com um “francês de origem” vive o filósofo Francis Wolff. Professor da Escola Normal Superior (ENS) de Paris, este discípulo de Louis Althusser fez parte entre 1980 e 1984 de uma linhagem de pensadores franceses que passaram pela cátedra permanente no Departamento de Filosofia da USP sucedendo Gilles Gaston Granger e Gérard Lebrun. Especialista em filosofia antiga e em Aristóteles, Wolff trabalha temas como a metafísica e o político, alimentando-se da antropologia e do humanismo para construir sua obra. No Brasil, publicou Sócrates, Aristóteles e a Política; Dizer o Mundo e Nossa Humanidade - De Aristóteles às Neurociências e participou em agosto do ciclo Mutações: O Novo Espírito Utópico, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo.

Nessa conferência, Wolff abordou o tema das Três Utopias da Modernidade, uma oportunidade para retornar à ideia de utopia, tema que motivou desde paixões políticas a ideologias cegas a totalitarismos sanguinários que marcaram o passado recente, em especial na Europa. Dentre essas três utopias, explicou, está sua preferida: a que chama de “humanismo cosmopolita”, marcada por um mundo sem fronteiras.

Em entrevista ao Aliás concedida na sexta-feira [04/09/2015] em sua residência, Wolff analisou à luz da utopia do humanismo cosmopolita a tragédia da crise imigratória na Europa, agora eternizada pela foto de Nilufer Demir, jornalista de 29 anos da agência turca DHA. Na imagem, vê-se o corpo do pequeno Aylan Kurdi, uma das vítimas do naufrágio de um barco que trafegava na faixa marítima entre Bodrum, na Turquia, e a ilha de Kos, na Grécia.

Segundo o filósofo, os engajamentos assumidos pela comunidade de nações no pós-guerra, como a liberdade de circulação e o direito ao refúgio e ao asilo político, são violados pelos mesmos Estados que os estabeleceram ao incluí-los na Declaração Universal dos Direitos do Homem. “Os engajamentos são tão pouco respeitados”, relembra Wolff, “que as autoridades de todos os países, em especial os europeus, cogitam, publicamente e sem reservas, com o mais perfeito cinismo, destruir os barcos dos que tentam exercer seus direitos”. Ou seja: ilegais não são os imigrantes em fuga de guerras, da fome ou em busca de oportunidades de trabalho - mas os países que não cumprem tratados internacionais. 
Família de refugiados se protege de policiais na estação ferroviária na cidade de Bicske, Hungria.
A composição seguia para a fronteira com a Áustria.

Foto: Laszlo Balogh / REUTERS 

A seguir, a síntese da entrevista.

Qual a sua reação após ver a foto da criança morta na praia da Turquia?

Francis Wolff: Minha reação é mais uma reflexão sobre o poder da imagem do que sobre a realidade. É a imagem da vergonha que a Europa deve sentir neste momento. Mas tudo o que foi dito há meses sobre a realidade é ainda pior do que essa imagem e não teve o mesmo efeito. Milhares de palavras, de descrições, de estatísticas… tudo foi impotente frente ao impacto dessa foto. Uma criança é a encarnação da fragilidade, da inocência. Nessa imagem ela também encarna a solidão. Espero que tenha o efeito que milhares de discursos não tiveram.

E o que a crise imigratória lhe inspira?

Francis Wolff: A minha primeira observação é que estamos em meio a uma globalização econômica e financeira:
  • As mercadorias nunca atravessaram as fronteiras com tamanha facilidade.
  • Em segundo lugar, vivemos uma uniformização cultural profunda, na qual a informação e a grande mídia também são globais. Não digo que essa uniformização seja total, porque a civilização chamada ocidental não é mundial. Mas todas as pequenas culturas estudadas ao longo de muito tempo pela etnografia estão se dissolvendo em um mundo sem fronteiras culturais nítidas.
  • Em terceiro lugar, os grandes conflitos são cada vez mais transnacionais. Ou seja: vivemos de certo modo em um mundo sem fronteiras.

Mas, ao mesmo tempo, algumas fronteiras físicas entre Estados-nação, nascidos em geral no século 19 ou 20, são cada vez mais altas. Eis o grande paradoxo.

Como esse paradoxo se traduz?

Francis Wolff: No século 19 era mais fácil atravessar o Atlântico do que hoje o Mediterrâneo. No início do século 20, em 1903, mais de 12 mil pessoas chegavam por dia ao porto de Staten Island, de Nova York. Hoje sabemos que algumas fronteiras são mais difíceis de atravessar - para as pessoas, claro, não para as mercadorias. A invenção do passaporte é recente. A noção de fronteira nítida também só aparece na modernidade. As pessoas que podem viajar viajam e circulam cada vez com mais facilidade. Para elas, as distâncias são cada vez mais curtas. Mas há outras para as quais existem fronteiras. Esse é o paradoxo e o drama que estamos vivendo, em especial na Europa, embora exista o mesmo problema em outras partes do mundo, como entre o México e os Estados Unidos. É um drama absoluto.

Logo há pessoas que têm o direito de se deslocar, e outras não.

Francis Wolff: Minha revolta é contra essa dificuldade do humanismo prático nos nossos dias. Existe uma única humanidade. A maior parte dos sonhos e das reivindicações políticas sempre foi feita em nome de um Estado. Desde Aristóteles, todos os teóricos da Justiça imaginam a República com suas fronteiras. Mas hoje não poderíamos mais pensar a Justiça que não fosse de forma internacional, transnacional, sem fronteiras. Temos todas as condições para pensar assim, mas será cada vez mais difícil aplicar esse pensamento. Essa é a grande lição, a meu ver, do que está se passando nessa crise na Europa.

Na Europa há o princípio da livre circulação, mas não para quem vem de fora.

Francis Wolff: A noção da construção da União Europeia desde a 2ª Guerra é um projeto muito bonito à medida que as nações que foram o foco do mais importantes conflitos da história, França e Alemanha em especial, decidiram acabar de forma progressiva com as fronteiras. Mas uma grande parte da população europeia esqueceu que nós o fizemos para acabar com conflitos seculares. Hoje a maior fronteira que existe é entre a Europa e seus confins, entre a Hungria e a Sérvia, por exemplo. Essa crise, além do desastre humanitário, pode ter mais uma consequência nefasta: retornar ao mundo com fronteiras - o que para mim seria não o fim de uma utopia, nem de um sonho, mas de uma realidade construída passo a passo após a 2ª Guerra.

Isso é impulsionado pela reação de grupos identitários, contrários à globalização, como a Frente Nacional, na França, ou o Ukip, no Reino Unido?

Francis Wolff: Eles não são dois movimentos contrários; são um só. As populações que se sentem mais inseguras na Europa reagem assim por não mais perceberem a existência de fronteiras, sejam elas reais ou metafóricas. É uma insegurança cultural, religiosa, econômica que gera um populismo de extrema-direita, instrumentalizador da noção de identidade. Para boa parte da classe operária, por exemplo, os sindicatos, as organizações sociais de base, as redes de solidariedade, o pertencimento a um partido político não existe mais. Tudo isso está desaparecendo, e essas pessoas se sentem nuas frente a uma globalização considerada a grande culpada.

Essa reação é de uma minoria que grita mais forte por se sentir oprimida?

Francis Wolff: Há casos diferentes em regiões diferentes. Em países que estão nas fronteiras da Europa, como os antigos membros do bloco soviético, as opiniões são muito mais contrárias ao fluxo de imigrantes, em parte por terem o sentimento de serem o primeiro front. Em outros países, como a França, infelizmente, a Inglaterra, a Holanda, a Itália, há movimentos de extrema-direita muito fortes, enquanto na Espanha e Grécia os núcleos são populistas de extrema-esquerda. De uma forma geral, a fraqueza da Europa é não ter uma política bem definida do que significa a ideia europeia. Ela tinha um fundamento universalista. Hoje, essa mensagem parece estar se perdendo.

Talvez por ser um projeto político inacabado? Uma certa ideia de Europa pressuporia o caminho em direção a um governo europeu sólido.

Francis Wolff: A União Europeia foi um pouco construída pelo avesso. Fizeram uma Europa econômica e financeira, com o euro, antes que as condições de transferência de riqueza de uma região para outra estivessem criadas. As redes de solidariedade e o sentimento europeu ficaram para trás na construção europeia. 
Refugiados à espera de trens com destino à Áustria/Alemanha na estação de Budapeste, Hungria.
Foto: Attila Kisbenedek / AFP

A Europa se perdeu em seu humanismo?

Francis Wolff: Valores foram compartilhados quando as populações tinham o sentido do progresso, quando o futuro parecia belo. Mas, a partir do momento em que se estabelece a ideia de que o futuro será bem pior do que o passado, então já se entra em uma espiral de defesa da sua identidade, de seus bens, etc.

O senhor mencionou em uma conferência no Brasil duas utopias que ocupam o vácuo das grandes utopias do século 19, fracassadas. Estas desmoronaram e abriram um vazio filosófico e moral?

Francis Wolff: Exatamente. O que podemos ver com clareza é que alguns movimentos hoje não existem em nome de uma classe social, por exemplo, mas sim em nome de uma utopia que eu chamei de biosférica. Na Califórnia, a utopia máxima é o transumanismo. Nos campos americanos, é a apologia ao animalismo, ao vegetarianismo - o vegano -, cada vez mais forte, com uma moral que põe no mesmo plano o homem e os animais. Essas duas utopias parecem profundamente morais. Toda moral é por conceito universalista. Mas o que constatamos é que a verdadeira universalização hoje é econômica, e não moral. A utopia animalística, que faz do homem um animal como os outros, e a utopia transumanista, que pretende fazer do homem um ser imortal, são ambas perigosas. Deveríamos pensar uma nova utopia, que eu chamo de utopia humanista, ou seja, a reflexão sobre o mundo a partir da ideia de homem. Essa é a utopia do sem fronteiras.

A expressão "utopia" foi no último século muito associada às ideologias, grande parte delas autoritárias ou totalitárias. Mas o senhor faz parte de um grupo pequeno de intelectuais que recupera essa expressão. Por quê?

Francis Wolff: A utopia é a maneira de criticar o presente sem os limites do realismo, ou seja, sem precisar procurar os melhores meios para chegar ao fim desejado. Não estou defendendo a utopia em geral ou a ideia de que a partir de agora devemos defender novas utopias. Muito menos estou defendendo as utopias passadas ou que estão se desenvolvendo hoje. O que estou dizendo é: se realmente queremos uma utopia, a coisa mais desejável e mais impossível é o mundo sem fronteiras. Se desejamos um ideal sem consideração do possível, então a mais bela, a mais impossível, a mais racional e mais difícil de se atingir seria o mundo sem fronteiras.

O senhor define utopia como algo que não tem um projeto de realização. Mas, se classificarmos um mundo sem fronteiras como utópico, então não seria desejável construir esse mundo sem fronteiras. É isso?

Francis Wolff: Tomemos o exemplo do Estado Islâmico. Esse grupo carrega consigo um projeto político sem consideração alguma pelas fronteiras. Eles não consideram os limites entre a Síria e o Iraque porque acreditam que a única distinção que faz sentido é entre os muçulmanos e os não muçulmanos, entre xiitas e sunitas e, entre sunitas, aqueles que fazem uma leitura literal do Corão. Portanto, é um projeto político, não uma utopia. Assim como o imperialismo, o colonialismo, o comunismo, o socialismo o foram no passado, o Estado Islâmico é um projeto político transfronteiriço, que não reconhece fronteiras nem os Estados históricos. É um projeto construído em nome de uma certa definição religiosa do homem, mas eles não estão fundados na ideia do homem. Existem atualmente projetos políticos totalitários - muito diferentes daqueles do século 19 ou 20 - que procuram todos os meios de se tornarem reais, e muitas vezes se realizam pela força. Algo diferente é a utopia. Eu não defendo nenhuma utopia. Apenas digo que a mais desejável e mais impossível é o humanismo cosmopolita.

Em muitos ambientes hostis, em guerras ou em campos de refugiados, fica claro que não só pessoas desesperadas pelos conflitos ou pela fome estão deixando seus países em busca de liberdade e segurança, mas também os que o fazem por razões econômicas, porque querem participar de um certo Ocidente onde buscarão emprego, desenvolvimento e acesso a bens de consumo.

Francis Wolff: Sim, concordo que ela existe e é forte. Minha primeira observação sobre isso é de que a pobreza se transforma em miséria quando se tem consciência de que seria possível viver sem pobreza em outro mundo - que pode ser um outro país ou um outro continente. Uma situação que não necessariamente seria vivida como miséria, mas como pobreza, passa a ser vivida como miséria a partir do momento em que se pensa que poderia existir acesso aos bens de consumo. Na Idade da Pedra não havia miséria, mas pobreza. Nessa época, havia poucas coisas, mas não havia o sentimento de que poderia haver muito mais, ou de que algumas pessoas têm muito mais do que outras. Podemos verificá-lo em pequena escala em sociedades tribais que nunca haviam vivido em situação de miséria, mas sim de pobreza. No momento em que se deparam com os bens de consumo, passam a se sentir em situação de miséria. Esse é um lado da globalização. Hoje, em quase qualquer lugar do planeta, as pessoas têm a informação de que seria possível viver em um lugar no qual haveria acesso a bens de consumo, e isso cria uma consciência de sua miséria. E esse sentimento de miséria não se limita a um sentimento, mas se transforma em miséria real, alimentado pelas sensações de desigualdade, de injustiça, de impotência, da falta de respeito a si mesmo, combustíveis de novos conflitos e novos movimentos migratórios.

Fonte: O Estado de S. Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 6 de setembro de 2015 – Pgs. E2-E3 – Internet: clique aqui.

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