COM O FIASCO DO GOVERNO DILMA, EIS O QUE SURGE...
O bloco e o eu sozinho
TALES AB’SÁBER*
Mistura de Severino
Cavalcanti e Marco Feliciano que deu certo,
Eduardo Cunha se
tornou rapidamente o homem que a direita procurava
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EDUARDO CUNHA - Deputado Federal e Presidente da Câmara: Antirreforma política: Com requintes de arbítrio, Cunha tentou aprovar a Reforma que lhe convinha |
Eduardo Cunha, do
PMDB do Rio de Janeiro, assumiu a presidência
da Câmara dos Deputados em 1º de fevereiro de 2015. Sua vitória, por 276
votos contra 136 de Arlindo Chinaglia, o candidato do governo, foi a primeira
das várias derrotas que a partir de então, em ritmo vertiginoso, ele passaria a
promover no Congresso contra temas, pautas e princípios do governo petista de
Dilma Rousseff. A organização pessoal de
Cunha, e de seus interesses conservadores amplos, imediatamente ganhou
nítido contraste com a dissolução geral da política petista que acontecia ao
seu redor.
Apesar da vitória para a Presidência e de conquistar a maior
bancada no Congresso, o Partido dos
Trabalhadores pareceu ter saído das urnas em 2014 simplesmente derrotado. A
crise de corrupção na Petrobras - envolvendo possíveis propinas do cartel que
controlava a empresa endereçadas a PT, PMDB e PP e a 17 políticos investigados,
entre eles Eduardo Cunha e Renan Calheiros, além de um senador do PSDB - e o
acirramento da oposição que levou Aécio Neves a meros 3% de distância da
presidente reeleita marcaram de maneira negativa o espírito do novo governo. O desgaste total da sua política
econômica, que manteve o pleno emprego no Brasil, mas gastou todas as fichas
disponíveis no limite da responsabilidade fiscal e não conseguiu promover
crescimento no último ano e meio, levou o ânimo e a autoconcepção do governo
petista à lona. O governo só parece fazer política na plena posse de seu
modelo de economia - uma espécie de socialdesenvolvimentismo, ou capitalismo
social, se olharmos daqui ou dali -, e ter de realizar cortes fortes nos gastos
públicos, de tipo neoliberal, desorientou definitivamente a bússola governista
para a própria política. Além disso, logo a nova organização social à direita,
a nova paixão política à direita, prosseguiu sua feroz crítica ao governo nas
ruas, criando um fator de forte instabilidade que o PT não conhecia.
O quadro de:
·
fraqueza
de governo,
·
de falência
de projeto,
·
de falta
de predomínio sobre a própria base,
·
além da velha
inapetência para a política parlamentar petista - uma agremiação viciada no
seu bonapartismo lulista -,
não foi criado por Eduardo Cunha, mas é o setting [contexto, ambiente] que
permitiu a força e o colorido de sua atuação surpreendente. E desde o primeiro
segundo ele soube ler com grande acuidade a situação: “Eu acho pouco provável o sucesso de uma candidatura do PT em qualquer
disputa contra qualquer um, e não vejo dentre os deputados do PMDB nenhuma
vontade de apoiar uma candidatura do PT [à presidência da Câmara] (...) Até para a governabilidade é melhor que se
tenha alguém que seja representativo de uma maioria, que tenha capacidade de
discussão e que esteja completamente distante do centro da polarização
eleitoral que aconteceu”.
Buscando legitimidade, como nome da maioria informe em nome
da sua independência e como mediador da grande polarização eleitoral de 2014, ele se elegeu presidente da Câmara, contra
um movimento político ligeiro e desorgânico do governo. Imediatamente
declarou que só passando sobre seu cadáver o tema do aborto - e o da regulação
da mídia - seriam pautados na casa presidida por ele. Aliás, de modo acintoso,
e sinalizando claramente seu vínculo com um grande sistema de poderes, também
afirmou que “regulação econômica de mídia já existe no Brasil, você não pode
ter mais de cinco geradoras de televisão”. As declarações deixavam claro, no
mundo da vida e das grandes aspirações e perspectivas de poder, a posição de
compromissos de Cunha e, ainda mais, a sua
forte vontade de exercer ao máximo o seu poder, empenhando simbolicamente o
próprio corpo. Ele assumia a
responsabilidade por sua pauta conservadora, ainda mais à direita do grupo
em geral voraz de parlamentares que passou a liderar, dar cérebro e coluna,
conhecido historicamente como centrão.
Sobre o aborto, a sua posição já era tradicional. Homem
ligado ao movimento político de massas das Igrejas Evangélicas brasileiras -
mais precisamente à Assembleia de Deus, ministério Madureira -, em 2011 ele se
tornou conhecido pela excentricidade e desfaçatez de propor o projeto de lei do
“dia nacional do orgulho hétero”,
para defender a “maioria discriminada”, segundo ele próprio. Após a novela da
Globo Amor à Vida exibir em seu
último capítulo o muito aguardado beijo gay entre Felix e Nico, ele se
manifestou pronta e assertivamente, como é sua característica, agora no
Twitter: “Estamos vivendo a fase dos
ataques, tais como a pressão gay, a dos maconheiros e abortistas. O povo
evangélico tem que se posicionar”. Não se pode negar que Cunha seja um
político em busca de ação. Ele se baseia
na força social real da massa de evangélicos, popular e moralista, e expressa
para esse povo que o sustentou até agora uma espécie pós-moderna de amplo
populismo conservador, meio religioso, meio moral, meio midiático, que,
como se tornou comum comentar a seu respeito, não esconde o vínculo entre o
desejo de ocupar espaço na política, o caráter conservador e a ação afirmativa,
muitas vezes autoritária.
Quanto aos negócios em grande escala de monumentos voltados
à ascensão da sua própria classe média, Eduardo Cunha é também explicitamente
ativo. Além de se preocupar pessoalmente com a limitação de cinco geradoras de
televisão por cidadão brasileiro, assim que assumiu a mesa diretora da Câmara
deu início ao processo de construção de um novo conjunto de prédios ligados ao
Congresso nos quais estão previstos maiores gabinetes, estacionamento, um
auditório, um novo plenário, mais amplo e para mais deputados, desbancando o
prédio icônico e tombado, patrimônio da arquitetura mundial, de Oscar
Niemeyer?, e um shopping de luxo para os congressistas e suas mulheres. O valor
total do empreendimento imobiliário, que envolverá muitas das empreiteiras que
investiram forte nas campanhas dos próprios deputados, está orçado em R$ 1
bilhão. Os luxos e os mimos de Cunha aos
seus pares deverão ser construídos no período de maior aperto fiscal e
orçamentário do País dos últimos 15 anos, que atingirá em cheio a vida
econômica e a classe trabalhadora brasileira. Eles dão indício do tipo de
responsabilidade e comprometimento em jogo. O governo de Cunha para o Congresso
se expressa na máxima brasileira do político conservador, sob suspeição, que
justifica e legitima sua prática social meramente ao fazer construções de
imenso porte. E as obras, agora, são
gabinetes de luxo e shopping center particular, no mundo dos chiques entre si
do parlamento brasileiro. Trata-se de um sintoma mais que perfeito do
tempo. E, além do negócio imobiliário bilionário para o maior conforto da
própria classe, há indícios importantes,
segundo promotores públicos, com declaração explícita do delator Alberto
Youssef na Operação Lava Jato, de Eduardo Cunha ter recebido propinas e tentar
chantagear a empresa japonesa Mitsui & Co. quando os pagamentos,
ligados aos grandes desvios acontecidos na Petrobrás, cessaram.
Eduardo Cunha é, portanto, uma mistura de Severino
Cavalcanti e pastor Marco Feliciano que deu certo. Hábil com a linguagem,
sempre de prontidão e com imenso gosto pelo poder, mais estruturado em sua
bases, ele se tornou rapidamente, voando
baixo sob a ruína da política petista, o homem de que a direita brasileira
havia muito tempo não dispunha. Uma verdadeira liderança, produtiva para os
próprios interesses de classe, com um aceno conservador nítido ao novo público
político produzido nas igrejas, nas rádios e nas televisões evangélicas. É egresso dessa nova elite, popular,
telerreligiosa, empreendedora, ativa e pós-moderna.
Politicamente, em dois meses de direção da Câmara, liderou
duas derrotas históricas, em velocidade de blitzkrieg
[1], que sinalizaram claramente a atual alienação política do governo dito de
esquerda:
·
a aprovação na Comissão de Constituição e
Justiça da proposta de diminuição da
maioridade penal no Brasil e
·
a aprovação em plenário de uma ampla lei de terceirização do trabalho no
Brasil, produzindo a maior derrota nas leis trabalhistas brasileiras desde
a sua instauração por Getúlio Vargas.
Em uma frente, a pauta conservadora visava à sociedade civil
e noutra, se articulava aos maiores interesses empresariais, que aproveitaram o
homem muito disposto no Congresso e a falência do governo para tramitar da
noite para o dia, sem debate, um projeto de imenso impacto social, parado havia
11 anos. Cunha valeu-se do vácuo de
governo para governar o Brasil, desde o Congresso.
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Tales Ab'Sáber - psicanalista e ensaísta - autor deste artigo |
Na última semana, com
requintes de arbítrio, tentou fazer o mesmo com a reforma política: aprovar
a da sua preferência, sem discussão. Pela primeira vez foi derrotado, em parte.
Havia mais interesses em jogo do que a sua liderança agressiva podia dar conta.
Sua política acelerada e afirmativa, que já enfiou vários gols no time do
governo perdido em campo, é também um modo de colocar no ataque os interesses
dos seus políticos denunciados na Lava Jato, entre eles ele próprio e Renan
Calheiros; não apenas frente ao Planalto, para quem pretendem transferir toda a
responsabilidade das próprias possíveis propinas, mas também, agora, frente ao
Ministério Público e a Justiça, que estão na mira dos canhões da Casa. Há algo de rei nu em Cunha. Daí,
também, tanta movimentação.
E é apenas o elemento da virtual Justiça democrática, com a
novidade radical no panorama brasileiro que é o juiz Sérgio Moro, o dado que diferencia hoje a situação de um
político como Eduardo Cunha de outros políticos brasileiros da mesma estirpe,
desde um Bernardo Pereira de Vasconcelos, no Império, até um Carlos Lacerda, no
pré-64. Seria realmente interessante, e
importante, vermos um dia a Justiça brasileira julgar alguém como ele, quando
houver motivos, com a mesma diligência e rigor com que se julgou José Dirceu e
a cúpula petista no episódio do mensalão.
Apenas para, como costuma dizer o nobre deputado, garantir a
plena autonomia dos poderes no Brasil.
NOTA
[ 1 ] –
O Blitzkrieg (termo alemão para
"guerra-relâmpago") foi uma
doutrina militar em nível operacional que consistia em utilizar forças móveis
em ataques rápidos e de surpresa, com o intuito de evitar que as forças
inimigas tivessem tempo de organizar a defesa. Seus três elementos essenciais
eram o efeito-surpresa, a rapidez da manobra e a brutalidade do ataque, e seus objetivos
principais eram: a desmoralização do inimigo e a desorganização de suas forças
(paralisando seus centros de controle). O arquiteto desta tática militar foi o
general Erich von Manstein. A
"guerra-relâmpago permitiu também à Alemanha dominar quase toda Europa (Fonte: Wikipédia).
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TALES AB’SÁBER é psicanalista e ensaísta, autor de Lulismo,
carisma pop e cultura anticrítica (Hedra) e, junto com outros autores,
do recém-lançado Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua
superação (Boitempo).
Fonte: O Estado de S.
Paulo – Suplemento ALIÁS – Domingo, 31 de maio de 2015 – Pg. E2 – Internet:
clique aqui.
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